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3 de Maio de 2024
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    Parâmetros para julgamento de furtos, em especial de baixa ofensividade

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Furtos de shampoo. Furtos de peças de carne em supermercados. Furtos de barras de chocolate. Muitas vezes tentados, ou com bens posteriormente restituídos às vítimas. Todos sabemos o quanto casos como estes, embora de pequena (ou pequeníssima) ofensividade, não raro, acabam necessitando de decisões definitivas das mais altas Cortes de nosso país.

    Em geral, a discussão é travada a partir dos limites da aplicação do princípio da insignificância; ou no que venha a ser “pequeno valor”, nos termos da minorante do art. 155, § 2º, CP; e até que ponto a reincidência do acusado ou apenado não incrementaria o grau da lesão provocada por sua conduta. Nesta questão, precisamos de mais propostas e novas perspectivas.

    Nesse sentido, a ideia do presente artigo é, justamente, sugerir soluções jurídicas (e judiciárias) mais equilibradas para casos de furto, que resguardem qualquer valor ou qualidade que se atribua à pena ou ao papel do Judiciário e do Ministério Público diante da sociedade, e que, ao mesmo tempo, não afetem em demasia a liberdade e a dignidade daqueles eventualmente sujeitos ao sistema penal brasileiro, tudo isso com eficiência.

    Se furtar custa a alguém, punir custa muito (e mais) a muito mais gente, e os casos e a forma com que se pune este delito compõem um retrato representativo da responsabilidade social e política que o Judiciário e o Ministério Público demonstram em relação ao jurisdicionado. No caso brasileiro, um retrato consideravelmente desagradável e, ao mesmo tempo, perigoso, considerando o contexto nacional de hiper encarceramento, no qual boa parcela ainda se deve a delitos patrimoniais não violentos.

    Por isso, o texto será o mais simples, direto, claro e objetivo possível: sem notas de rodapé, citações ou referências bibliográficas, certos “academicismos” que, se são importantes em espaços próprios para debates mais profundos, mostram-se pouco produtivos para nossos propósitos mais modestos, limitados e urgentes. Apresentaremos nossa posição e nossos argumentos, sem pretensão de oferecer soluções definitivas para o furto (especialmente o de baixa ofensividade), mas apenas linhas de interpretação que podem ser úteis para soluções finais mais razoáveis.

    Comecemos com as indagações correntes de magistrados e promotores diante de casos de furto pouco expressivos, independente de qualquer crítica de hermenêutica filosófica ou de teoria da argumentação, ou qualquer teoria decisória mais refinada (que deveriam dominar). Elas poderiam ser formuladas das seguintes maneiras: “a vítima foi ressarcida?”, “esta pessoa pode voltar a furtar de novo?”, “o que o Judiciário ou MP dirá à sociedade se esta pessoa não for acusada ou punida”?

    Parece que uma solução adequada para estes casos começa a partir da definição de um referencial decisório – um norte interpretativo. No caso do furto, esta linha mestra deve ser o ressarcimento de vítimas concretas e atuais. Isso traz um conjunto de implicações e propostas que irão demandar do intérprete certa irreverência dogmática:

    (i) primeiro e mais importante, é a reparação daquela vítima daquele delito que ocorreu o objetivo que deve prevalecer em casos de furto;

    (ii) consequentemente, a reincidência do agente (que poderia sugerir risco incerto de dano “difuso” a vítimas incertas) e mesmo algumas hipóteses de qualificação do furto tornam-se fatores dispensáveis, ou, no máximo, secundários, mas de baixíssimo peso para a decisão final;

    (iii) indo mais além, talvez até mesmo um furto tentado, isto é, que não chegou a ser consumado com a subtração do bem, sequer mereça a atenção da justiça criminal.

    Um problema pode ocorrer se a vítima falecer. Neste ponto, propõe-se uma solução semelhante àquela que toca as ações penais privadas ou o direito de representação: transmite-se para cônjuge, ascendente, descente e irmão o interesse na reparação do dano sofrido. E se não houver qualquer pessoa para suceder a vítima original? Este seria um ponto bastante controvertido: radicalmente, propõe-se o término de eventual ação penal ou processo criminal.

    Nosso norte principiológico é a reparação de vítimas concretas e atuais: o Estado não possui qualquer legitimidade para se substituir às vítimas de um conflito patrimonial não violento.

    Caso a vítima já não manifeste interesse em obter reparação, ou já tenha sido reparada ou o bem restituído, encerra-se a jurisdição penal, independente de sua vontade individual. Uma pretensão de justiça que resiste apesar de reparada materialmente, ou é vingança – e por isso, impossível de tutela criminal -, ou pertenceria a outra seara – danos morais ou imateriais, próprios da esfera cível.

    Todas estas considerações orbitam em torno do fator “interesse da vítima”. Por certo que o furto é crime de ação penal pública incondicionada, e, nesse sentido, é impensável o emprego de categorias relativas à persecução processual penal nestes casos. Porém, a concepção de uma causa supralegal de extinção da punibilidade, embora possa causar estranheza, não seria de todo impossível: primeiro, porque a doutrina, de forma unânime, concebe a renúncia ou a decadência do direito de representação como causa de extinção da punibilidade não expressa; se assim é, cabível se pensar na reparação da vítima (ou na ausência de seu interesse para tal) da mesma forma. E segundo, se em situações de pagamento de tributos se enseja extinção de punibilidade para delitos fiscais, que, em grosseira aproximação, também envolvem subtração, mas de patrimônio público, por que não se admite extinção da punibilidade por reparação do dano também para o furto? Consequentemente, a reparação da vítima se traduziria em termos jurídico-penais ou como causa para arquivamento ou rejeição da denúncia (por carência de justa causa ou punibilidade concreta), ou como causa de absolvição, por extinção da punibilidade.

    Na hipótese de a vítima, possuindo interesse, não ter sido reparada, de alguma forma seu ressarcimento deverá ser buscado, abrindo-se então a possibilidade de se analisar a proporcionalidade entre o dano causado e o patrimônio da vítima concretamente considerada. Se é um tanto intuitivo que furtar galinhas de um pequeno agricultor do sertão é, para ele, um dano considerável, não se pode dizer o mesmo do furto de sabonetes praticado contra uma grande loja de departamentos.

    O individualismo e a propriedade privada precisam ceder diante de considerações de igualdade material e eficiência estatal: se é justificável utilizar a justiça criminal para, de algum modo, reparar o dano daquele pequeno agricultor que luta por sua sobrevivência e de sua família, é vergonhoso gastar-se dinheiro público em um processo criminal e na execução de uma pena em favor da reparação de um ente empresarial que nada sofreu ou perdeu com a subtração de alguns poucos bens de consumo, normalmente segurados.

    A mesma solução deve prevalecer em relação a vítimas, pessoas concretas, com muito patrimônio, ou com a capacidade de, em alguma medida, resgatar as perdas econômicas do objeto subtraído. Nestas situações, a baixa ofensividade enseja ou arquivamento ou rejeição da denúncia por atipicidade material (ausência de ofensa a bem jurídico) ou absolvição, pela mesma atipicidade.

    A pergunta que se faz agora é: como reparar o dano da vítima, se isto não aconteceu até aquele momento? A solução exige algum nível de criatividade processual e penal:

    (i) Se o réu tem o direito de não produzir prova contra si mesmo e de ficar em silêncio – em outros termos, inércia processual – por que não teria o direito de, mais que produzir prova, contribuir para a extinção de sua própria punibilidade? Assim, não parece haver qualquer óbice para ou o réu se manifestar nos autos pleiteando a realização de reparação (ou composição) do dano, ou o juiz intimá-lo a, querendo, fazê-lo;

    (ii) Não havendo qualquer interesse do réu em reparar (ou compor) o dano à vítima, poderia ser ele obrigado a isto? Evidentemente, se ele poderia, em tese, ser punido com uma pena, uma sanção que restringe sua liberdade, por que não ser obrigado a ressarcir?

    (iii) Sobre a obrigação de ressarcir: se “pena” e “delito” não forem considerados entidades intrinsecamente ligadas uma a outra, se o cometimento de um crime puder ensejar não uma reprimenda penal formal, mas outras soluções (que satisfaçam o interesse patrimonial da vítima e preservem o réu de uma punição excessiva ou que marque seu histórico; e, ainda, otimizem recursos e orçamento do Judiciário e MP), abre-se as portas para uma autônoma reparação do dano. Alguns dispositivos embasariam esta solução: art. 91, I, CP, efeito da condenação que torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime e art. 387, IV, CP, que fixa valor mínimo para a reparação de danos considerando o prejuízo causado pelo ofendido (e note-se que é um dispositivo distinto do art. 387, III, que fala da aplicação de pena; se o caput, o inc. III e o inc. IV forem lidos com outras lentes, veremos alguma margem para a concepção de uma sentença – penal – condenatória sem pena, mas exclusivamente com reparação).

    (iv) E se, caso a vítima tenha interesse na reparação do dano, o acusado não possuir meios para isso, ou for hipossuficiente – como, aliás, é a grande maioria dos casos que chegam à justiça criminal? A princípio, pode-se cogitar de uma solução de “meio termo”: em certos casos, a desproporção entre a lesão sofrida pela vítima e o sofrimento a ser infligido ao acusado para reparar o dano sugeriria uma decisão tendente à absolvição, por aplicação do princípio da humanidade das penas, de índole constitucional e convencional; em outros, sendo possível uma reparação por outros meios (por exemplo, realização de horas-extras não remuneradas num caso de furto praticado por funcionário de estabelecimento comercial), pode-se cogitar da aplicação analógica do art. 45, § 2º, CP, que permite a substituição da prestação pecuniária por prestação de outra natureza.

    Todas as sugestões acima, claro, sem que a sentença deflagre efeitos secundários contra o acusado, como reincidência ou antecedentes criminais.

    Assim, estas são apenas ideias preliminares e provisórias para um problema bastante complexo, que ainda promove grandes controvérsias seja no meio acadêmico, seja entre as próprias instituições – Judiciário, MP e Defensoria, as quais, notadamente, possuem proeminência na elaboração de diretrizes mínimas para casos de furto. Porém, procurou-se oferecer, para além de críticas ao atual estado de coisas (que certamente não satisfaz a ninguém), proposições concretas, parâmetros decisórios que possam contribuir (ou pelo menos tentam apontar) para mudanças reais no sistema penal brasileiro.

    Direitos fundamentais, direitos das vítimas, direitos dos acusados, e um Judiciário e MP mais eficientes – e, tudo considerado, mais democráticos: é nossa reflexão (e esperança) que oferecemos para nossos operadores jurídicos.

    Hamilton Ferraz é mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.

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