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18 de Junho de 2024
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    Reinterpretando o art. 102 da LOMAN

    O texto legal deve gozar de estabilidade, todavia ele deve ser prolífero na possibilidade de orientações para a conduta dos homens, com vistas à sua aplicação na regulação das situações contemporâneas que demandam regramento. Revelar-se-ia desgastante e de eficácia duvidosa se a todo tempo tivéssemos que editar leis sempre que se mudasse a orientação da sociedade a respeito de determinado fato social.

    Geralmente, quando não se encontra uma solução adequada para uma dada questão que se ergue diante de uma nova conjunção social, não é o texto que lhe serve de base jurídica que perdeu força para discipliná-la, mas a incapacidade do intérprete em obter dela a norma apropriada para a contemporaneidade. Por conseguinte, a dificuldade real para se orientar de forma diversa as condutas sociais, reside na incapacidade do intérprete de enxergar no texto legal a norma adequada. O mais comum é reclamar pela edição de um novo texto jurídico para enfrentar a situação social, sob a alegação de que o atual encontra-se defasado.

    Assim, desde que o intérprete tenha consciência dos novos elementos sociais a ensejar mudança de posição a qual era definida de uma forma, mas se exige agora outra direção, e, principalmente, tenha uma boa formação jurídica, o texto legal que suporta a situação, mesmo de larga idade, ainda será eficaz para responder às questões atuais que se apresentem para serem solucionadas.

    Um bom exemplo do que se diz se ilustra com o texto do art. 62, § 6, da Constituição Federal. Essa disposição há algum tempo, no âmbito legislativo, era interpretada como determinante de forma absoluta do trancamento da pauta do Poder Legislativo, em função das sucessivas edições de Medidas Provisórias (MPs). Nos dias de hoje, esse mesmo texto constitucional fora reinterpretado e se obteve norma que relativizou o trancamento. Assim, permitiu-se que projetos de lei de iniciativa dos parlamentares fossem examinados, ainda que MPs não fossem votadas. Por essa nova norma as MPs editadas somente trancariam a pauta de projetos normativos contendo assuntos que lhes são afetos, não impedindo o tráfego de projetos contendo assuntos de outras espécies. Os assuntos afetos às MPs são aqueles elencados no art. 62, § 1º da Constituição Federal. Como se observa, o texto normativo em um momento orientou o procedimento da edição de MPs. de uma forma e, passado algum tempo, com o advento de novos protagonistas sociais, a disciplina passou a ser de outra forma com base no mesmo texto.

    A situação é nova não porque o fato atual seja diferente do anterior (edição de MPs) e sim em razão de serem diversos os homens que a protagonizam. Eles não entendem aquela situação sob a mesma ótica da dos seus antecessores. A orientação da regulação jurídica mudou, porém, sem que se alterasse o texto legal que lhe serve de base. O intérprete atual tomou posição diferente da do intérprete antigo para resolver um problema interno do sistema procedimental legislativo, de forma inteligente, econômica e socialmente importante para permitir a atividade parlamentar. Uma nova leitura foi feita do texto para revitalizá-lo e com isso encaminhar um novo regramento a essa situação. Logo, caímos no lugar comum de que a interpretação confere vigor aos textos legais, tornando-os eficazes para a vida moderna.

    Nessa linha de raciocínio, tomando o lugar comum acima referido como autoevidente e ainda considerando que existem novos atores na carreira da magistratura com formação diferente da geração anterior, adentro no tema desta exposição. A seguir tentaremos em apertada síntese defender a idéia de que o texto legal que regula a democracia no âmbito interno dos tribunais de justiça dos estados merece ser reinterpretado. Os seus novos protagonistas exigem nova orientação desse texto, para adequá-lo aos novos tempos dos homens e mulheres que ocupam a posição de juízes de direito em benefício da comunidade a que pertencem.

    Com efeito, o Poder Judiciário estadual nas múltiplas unidades federativas do Brasil, ao longo dos anos tem baseado a eleição dos seus dirigentes no texto legal do art. 102 da Lei Complementar 35/1979, a seguir transcrito:

    Art. 102 - Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de antiguidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição.

    Esse é o documento legal que confere a orientação para a escolha dos dirigentes dos tribunais de justiça estaduais. A alta administração do Poder Judiciário estadual é composta pelos cargos de presidente, vice-presidente e corregedor, sendo possível o acréscimo de dois vice-presidentes e dois corregedores (art. 103, § 1º e § 2º, da Lei Complementar 35/1979), cada qual provido por um juiz de direito de segundo grau. Essa composição é comumente designada pela expressão mesa diretora, e seus integrantes atuam conforme dispõe os documentos normativos pertinentes. A mesa diretora administra o poder judiciário, sujeitando a todos os juízes de direito (de primeiro ou de segundo grau) aos efeitos das decisões adotadas pelos seus membros diretores.

    Nos anos que se seguiram à edição da referida lei, se cristalizou o entendimento de que a expressão membros efetivos dos tribunais, para efeito de votar em candidatos que disputam posições para comporem a mesa diretora dos tribunais estaduais, seriam apenas os juízes de segundo grau. Contudo, o dispositivo legal em questão não se refere especificamente a membros efetivos de tribunais como sendo apenas os juízes de segundo grau. Esse entendimento se obtém quando se separa os magistrados membros do tribunal de justiça na categoria de desembargador e de juiz. O que na nossa visão, para efeito de eleição da mesa diretora, é errôneo, como a seguir se verificará.

    Como se sabe, o valor maior da democracia é o voto exercido pelo eleitor para a escolha dos seus dirigentes. Esse valor deve ser observado em todas as instituições que se encontrem dentro da área de circunferência do Estado brasileiro. Caso contrário seria paradoxal que o Estado democrático agasalhasse, em seu interior, instituições não-democráticas. O Poder Judiciário estadual, diferentemente das outras instituições políticas do nosso país, e aqui nos referimos ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo, não se legitima externamente pelo voto popular. O que importa, com maior razão, que, ao menos no aspecto da sua democracia interna, se desenvolvam valores democráticos à exaustão. A escolha dos integrantes da sua alta administração mediante amplo colégio eleitoral, em que não apenas os juízes de direito de segundo grau exerçam o voto, mas também o juiz de direito de primeiro grau é a única forma de se obter essa exaustão.

    A democracia, onde quer que ela seja praticada, para ser exercida de forma legítima, importa em se ter um colégio eleitoral abrangente. Logo, quanto maior o colégio eleitoral, maior a quantidade de votos que se pode dele extrair, o que confere maior legitimidade para os eleitos que exercerá sua atividade em prol da maioria que o elegeu. A legitimidade de um instituto democrático está na aprovação do maior número de pessoas que sofrerão os seus efeitos.

    O Poder Judiciário estadual, representado pelo Tribunal de Justiça, é uma organização complexa, pois em seu conjunto se estabelecem órgãos coletivos e monocráticos que expressam esse poder. Não obstante, podemos identificar com uma única expressão: magistrado, o elemento básico formador dessa complexa organização manifestada em suas diversas categorias. Em outras palavras, o Tribunal de Justiça se compõe por todos os magistrados a ele vinculados.

    Contudo, se reserva o exercício da democracia no âmbito interno do Poder Judiciário somente para um grupo reduzido de magistrados: àqueles que exercem jurisdição de segundo grau. Como já referido, o texto legal expresso pelo art. 102 da Lei Complementar 35/1979 é interpretado de forma a excluir o juiz de direito de primeiro grau do colégio eleitoral para a escolha dos membros da mesa diretora. Certamente, a opção pela interpretação restritiva, com reduzida força democrática interna, em lugar de outra, ampliativa e legitimadora da democracia interna da instituição, pode ser atribuída ao momento histórico da edição da referida lei. Na época, o País se encontrava num contexto político em que a democracia, de um modo geral, não era exercida em sua plenitude. Com o advento da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu novo fundamento para as instituições brasileiras, conferindo-lhes valores democráticos, a mudança de orientação no entendimento do referido art. 102 da LOMAN é algo incontornável, se quisermos coerência desse dispositivo com os valores da Constituição Federal. A interpretação tradicional do dispositivo em questão, portanto, deve ser abandonada, vez que não recebe mais sustentação constitucional.

    Como já ressaltado, existe no entendimento tradicional do dispositivo legal referido, e que não é mais possível se aceitar do ponto de vista democrático, a idéia de uma nítida divisão entre o juiz de direito de primeiro grau, que não seria membro efetivo do Tribunal de Justiça, e o juiz de direito de segundo grau, que seria qualificado como tal. Não obstante, o juiz de direito de primeiro grau não integraria o Tribunal de Justiça ao qual está vinculado, apenas para o efeito de votar na mesa diretora, sendo considerado integrante para outros efeitos.

    Entendemos que essa divisão não é lógica. Afinal, ela separa quantidades iguais, quando vistas por um mesmo prisma (no caso o administrativo). Com efeito, no âmbito administrativo todos os juízes de direito, de primeiro grau ou de segundo grau, estão submetidos à administração da mesa diretora em igualdade de condições. Todos são magistrados. Logo, são quantidades iguais.

    Considerar o contrário é admitir, por exemplo, que existiria algum elemento essencial do ponto de vista administrativo que serviria para sustentar a separação, o que até o momento não identifiquei. Por exemplo, o juiz de segundo grau é processado disciplinarmente da mesma forma como é o juiz de primeiro grau. No caso, outros exemplos poderiam ser relacionados, como o direito às férias, licenças etc., que são rigorosamente iguais para todos os juízes de direito, seja de primeiro ou segundo grau.

    Não deveria, portanto, prevalecer o pensamento que separa os juízes de direito de primeiro e segundo graus quando vistos administrativamente. Se existisse critério essencial a distingui-los nesse campo, as normas reguladoras do tratamento dispensado para cada um deles seriam evidentemente diferentes. A diferença só se justifica se ela se basear em critério funcional, na medida em que as funções que cada um deles exerce são evidentemente diversas. Acreditamos que as distinções administrativas artificiais entre juízes de direito de primeiro e segundo graus ou acabariam ou seriam bem reduzidas se aqueles influíssem na escolha dos membros da mesa diretora.

    O que nos leva a entender que o termo Tribunal de Justiça agasalha duas acepções. A primeira corresponde ao poder organizado com todos os seus órgãos e funções. Nesse caso, entendem-se como seus membros efetivos, todos os juízes de direito que o integram (os magistrados). Esse é o sentido amplo dessa expressão. A segunda definição do termo corresponde ao sentido estrito de órgão revisor. Nesse caso se compõe apenas dos juízes de direito de segundo grau. Esse é o sentido estrito da expressão Tribunal de Justiça (os desembargadores).

    Por conseguinte, quando se trata de escolher os membros da mesa diretora do Tribunal de Justiça estadual, se está laborando no domínio administrativo e não na seara jurisdicional. O termo Tribunal de Justiça deve ser entendido em sua acepção lata. Pensar o contrário seria aceitar que o juiz de direito de primeiro grau não é membro efetivo do tribunal e, portanto, não seria magistrado, o que colidiria com os fatos que indicam justamente o contrário.

    Ora, esse entendimento separatista, ainda que tradicional, não pode mais prevalecer, conforme acima se ressaltou. Os antigos juízes consideravam-no razoável, existia um contexto político que reforçava essa idéia. Contudo, estamos vivenciando um novo tempo. E os novos juízes de direito certamente não perfilham esse entendimento tradicional.

    A proposta que se faz é não mais reafirmarmos esse pensamento que separa administrativamente o juiz de direito de primeiro grau e o juiz de direito de segundo grau. Há que evoluirmos essa idéia para um nível condizente com a realidade democrática do pPaís. A plena democratização interna do Poder Judiciário.

    Nessa direção de interpretar democraticamente o referido texto do art. 102 da LOMAN, devemos reconhecer quatro premissas. A primeira é a de que o juiz de direito de primeiro e segundo graus são iguais e devem ser tratados igualitariamente no campo administrativo, resgatando com isso a idéia da unidade, já referida. Se ambos pertencem à categoria de magistrados de um mesmo Tribunal de Justiça, não se sustenta qualquer idéia que implique considerar que uns magistrados são mais efetivos do que outros, para efeito de eleger os membros da mesa diretora que é comum a todos. A segunda diz respeito ao termo Tribunal de Justiça. Há que ficar assente que essa expressão contida no referido dispositivo legal não se entende como órgão revisor. A mesa diretora vai gerenciar o Poder Judiciário em sua inteireza, desempenhar atividade que não se confunde com função jurisdicional. Ela vai definir a sorte de todos os seus membros em sentido amplo, juízes de direito de segundo e de primeiro graus. Ela vai organizar a atividade dos magistrados do tribunal ao qual está vinculada. A terceira consiste em se firmar o vínculo do magistrado ao tribunal, para efeito de exercer o direito de voto. A efetividade de um juiz de direito de primeiro ou segundo grau não reside, é bom que se diga inicialmente, no nome do cargo que ele ocupa (desembargador ou juiz) e sim na sua capacidade de jurisdição. Logo, o termo juiz efetivo de tribunal se diz do magistrado que esteja no exercício regular de suas funções. Nesse passo, o magistrado afastado ou o aposentado, embora vinculado ao Tribunal de Justiça de origem, não é efetivo, pois não está exercendo jurisdição. A quarta , e última premissa, afirma que o universo de candidatos elegíveis se componha dos juízes de direito de segundo grau mais antigos no exercício da função. Afinal, supõe-se que esses magistrados tenham mais experiência, atuando na capital do seu Estado, e haurindo nesse tempo, expertise para melhor gerenciar o Poder Judiciário a que está vinculado.

    Por conseguinte, fixadas essas premissas, a conclusão é inelutável. O referido dispositivo legal comporta norma de amplo alcance democrático. A eleição da mesa diretora do Tribunal de Justiça estadual se faz a partir de colégio eleitoral integrado por todos os juízes de direito efetivo desse tribunal. Entendendo efetivo como sendo todos os magistrados que estejam exercendo efetivamente a jurisdição. A norma a ser extraída poderia ser assim expressa:

    Os membros do poder judiciário estadual que exercem efetiva jurisdição têm o direito de eleger dentre seus juízes de segundo grau mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção os titulares destes.

    Para a efetiva aplicação dessa norma não há necessidade de edição de leis. Como sublinhado no início desse ensaio, basta que os novos protagonistas da magistratura estadual conscientizem-se dessa possibilidade e reivindiquem o direito ao exercício do voto nos candidatos à mesa diretora do Tribunal de Justiça. O texto legal em questão não se altera, extrai-se dele apenas a nova orientação.

    Marcelo Brandão

    Juiz de Direito em Salvador

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/reinterpretando-o-art-102-da-loman/3193164

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