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3 de Maio de 2024

STF 2023 - Nulidade da Prova Por Abuso de Autoridade - Tortura

há 2 meses

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 233.154 GO IÁS

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de Goiás em favor de Marcelo Paiva dos Santos contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça no HC 180.401/GO, assim ementado:

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ELEMENTOS DE PROVA SUFICIENTES. ABUSO DE AUTORIDADE. DIREITO AO SILÊNCIO. INCURSÃO EM CONTEÚDO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO." (eDOC 4, p. 1)

A Defensoria Pública narra (eDOC 1) que o recorrente foi condenado pela prática dos crimes dos arts. 129, § 13º (lesão corporal); 155, caput (furto); 163, parágrafo único, III (dano qualificado); e 329 (resistência), todos do Código Penal

Aduz que, "os elementos de convicção que levaram à prisão e à denúncia do paciente foram obtidas a partir da violação de sua integridade física e do seu direito ao silêncio, devendo ser excluídos do processo". (p. 3)

Acrescenta que, "Como se não bastasse a tortura, da análise dos depoimentos, fica claro que os agentes não informaram ao paciente seu direito constitucional de permanecer em silêncio (Aviso de Miranda), ou seja, de não produzir prova contra si, seja no momento da abordagem policial, seja na delegacia de polícia ou mesmo em juízo" . (p. 6)

Argumenta que, "De forma escancarada, é possível constatar que os elementos de informação (notadamente, os indícios da materialidade delitiva) que possibilitaram a prisão e a denúncia em desfavor do paciente somente foram angariadas a partir da violação, por parte dos referidos agentes públicos, da integridade física e psíquica do paciente e do seu direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere)".(p. 8)

Pleiteiam a concessão da ordem de habeas corpus para determinar a suspensão da ação penal.

Inicialmente, no âmbito do STJ, a PGR se manifestou pela concessão da ordem. (eDOC 2, p. 194-200). Em manifestação posterior, o Parquet manifestou-se pela denegação da ordem. (eDOC 10).

É o relatório.

Decido.

As razões merecem acolhimento.

Para melhor compreensão da controvérsia colho do ato coator:

"O presente agravo não comporta provimento.

Consoante registrado na decisão agravada, a denúncia revela a existência de elementos suficientes para a deflagração da ação penal, apartados daqueles que teriam supostamente sido obtidos com abuso de autoridade. Confira-se:

Na hipótese, a denúncia revela a existência de elementos suficientes para a deflagração da ação penal: o registro de ocorrência, os termos de declarações dos policiais, da acusada e do médico plantonista. denunciado subtraiu para si um capacete (marca LS2, colorido, com adesivo Tribal) pertencente à vítima XXXXXXXXX SOUZA. Segundo apurado, no dia e horário mencionados, a vítima estacionou sua motocicleta nas proximidades do estabelecimento retromencionado, onde trabalha, deixando o capacete junto ao veículo. O denunciado, aproveitando-se do referido contexto fático, aproximou- se e sorrateiramente subtraiu para si o capacete da vítima, evadindo-se do local em seguida, em posse do objeto. Após o ofendido, momentos depois, retornar ao local onde havia estacionado sua motocicleta, tomando assim conhecimento acerca do furto de seu capacete, foram verificadas as imagens do circuito de segurança das proximidades, oportunidade em que foi possível verificar as características do autor do delito (magro), bem como a vestimenta que este utilizava (calça jeans, camisa verde de manga comprida e boné vermelho) . Consta que uma equipe da Polícia Miliar realizava patrulhamento de rotina na Vila Oliveira, nesta cidade, quando foi abordada pela vítima, informando acerca do furto sofrido, bem como mostrando as imagens da ação delitiva. Diante do noticiado, das imagens e características informadas, a guarnição empreendeu diligências e logrou êxito em localizar o denunciado nas proximidades da Avenida Diamante, situada na Vila Oliveira, sendo que, ao notar a presença da equipe policial, este ainda demonstrou nervosismo. Assim que entrou em uma esquina, ele, no intuito de tentar despistar os policiais, virou pelo avesso a camisa que usava e guardou seu boné dentro da calça. Entretanto, acabou sendo abordado e diante das evidências, confessou o furto do capacete, conduzindo os policiais até onde o havia escondido. Destaca-se que o denunciado é reincidente específico em crimes de natureza patrimonial, consoante certidão de antecedentes criminais e relatório da situação processual executória juntada aos autos. (e-STJ, fls. 74-76; grifou-se.)

A acusatória encontra-se baseada em suporte probatório suficiente acerca da materialidade e da autoria delitiva, constatadas por meio das imagens de circuito de segurança da localidade, e da confissão do acusado, com a indicação de onde a res furtiva se encontrava escondida, não havendo que se falar em ausência de justa causa para a ação penal.

Como bem ressaltado no acórdão recorrido, a nulidade da confissão por suposta tortura policial depende de incursão em conteúdo fático-probatório dos autos. E ainda que devidamente comprovada a prática de tortura, com a desconsideração da confissão do acusado, a inicial acusatória fez referência a outros elementos de prova suficientes para a deflagração da ação penal.

A jurisprudência deste Tribunal Superior entende que, para o oferecimento da denúncia, exige-se apenas a descrição da conduta delitiva e a existência de elementos probatórios mínimos que corroborem a acusação. Provas conclusivas da materialidade e da autoria do crime são necessárias apenas para a formação de um eventual juízo condenatório.

[...]

Ressalte-se que os elementos de prova obtidos na fase inquisitiva servem apenas como suporte para viabilizar a instauração da ação penal, reservando-se ao Poder Judiciário, no momento da instrução criminal, a sua devida valoração.

A alegação de que o recorrente não foi alertado do seu direito ao silêncio, além de não ter sido examinada no acórdão a quo, também exige incursão na seara fático-probatória dos autos, inviabilizando a sua análise perante esta Corte, até porque consta no auto de prisão em flagrante que o conduzido foi alertado de seus direitos individuais previstos no art. 5º da Constituição da Republica (e-STJ, fl. 16).

Sendo assim, diante dos indícios de autoria e materialidade, e devidamente"(eDOC 4)

Verifico que o ato coator destoa da jurisprudência desta Corte. No seu parecer, quando aberta a vista dos autos pelo Superior Tribunal de Justiça, a Procuradoria-Geral da República se pronunciou pela concessão da ordem nos seguintes termos:

"O artigo 157 do Código de Processo Penal dispõe que são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.’

O réu afirmou, em solo policial e em juízo, que foi agredido pelos PM’s que efetuaram sua prisão em flagrante, versão dos fatos compatível com o laudo de corpo de delito às fls. 55-56, e-STJ e abraçada pelo Órgão Ministerial em primeira instância ao requerer o arquivamento do inquérito com relação aos delitos de dano e de resistência (e-STJ, fls. 77-80):

[...] Em contrapartida, conforme previamente ressaltado em manifestação2 da Defensoria Pública, o indiciado, ao ser interrogado3 em sede policial, apesar de admitir a autoria do furto, relatou que ‘(...) foi agredido pelo policial militar TELES, pois não informou seu CPF, sendo espancado pelo policial. Esclarece que foi agredido com murros e chutes na cabeça, boca, braços e costela.

Informa que se as lesões do policial são em decorrência de ter espancado o conduzido e que ele estava algemado, sendo impossível ter praticado qualquer tipo de lesão contra o policial.’

Denota-se que o relato ut supra encontra ressonância no relatório médico do denunciado4 , no qual, além de fotos, fora constatado, de forma expressa, a presença de edemas e escoriações no dorso nasal, na mucosa oral, na região do tórax e nas pernas, havendo, pois, fortes indícios de prática de violência policial. Infere-se, pois, que as lesões atestadas, sobretudo as localizadas na mucosa oral (região interna) e na região do tórax do indiciado, não se mostram verossímeis e compatíveis com a dinâmica dos fatos descritos pelos policiais, em especial, de que teriam sido produzidos pelo próprio denunciado no momento em que danificava internamente a viatura policial.

Ademais, da narrativa dos policiais acima transcrita, não é possível extrair informações claras acerca da ordem cronológica em que os fatos teriam ocorrido.

Afinal, o que se deu primeiro: a suposta destruição interna da viatura ou as agressões contra o policial XXXXXXXXXXXXX RIBEIRO? Aliás, a lesão sofrida pelo referido policial limita-se a uma ‘(...) escoriação medindo 0,5 cm na face dorsal da 5a articulação metacarpofalangeana da mão direita’ 5 , incomparavelmente mais leve do que aquelas sofridas pelo denunciado6 . A situação torna-se mais nebulosa, porque mesmo tendo confessado o furto aos policiais e apontado onde estava a res furtiva, teria ocorrido uma pretensa ‘mudança de comportamento’ do denunciado, quando da sua apresentação na Central de Flagrante da Polícia Civil, local sabidamente movimentado pela natureza das atividades ali desenvolvidas sendo que sequer constam possíveis testemunhas que ratifiquem tal versão.

Malgrado as declarações dos policiais, em razão da fé pública, não serem, a priori, dignas de descrédito, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, conforme descrito alhures, não lhes confere verossimilhança para alicerçar uma ação penal contra o denunciado no tocante aos artigos 129, § 12 e artigo 163, parágrafo único, inciso III, ambos do Código Penal.

Por todo exposto, não sendo necessário maiores digressões, não marca presença a chamada justa causa, considerada por parte da doutrina como uma das condições da ação penal e que só pode ser validamente ajuizada se a parte autora lastrear a inicial com um mínimo probatório que indique os indícios de autoria, da materialidade delitiva, e da constatação da ocorrência de infração penal em tese (art. 395, III, CPP).

[...]

Assim, inexistindo acervo probatório minimamente hábil a sustentar a instauração de ação penal, tampouco diligências a serem possivelmente requisitadas e cumpridas visando sua apuração, não resta alternativa ao Ministério Público senão requerer o arquivamento do presente inquérito policial, exclusivamente com relação aos delitos tipificados pelos artigos 129, § 12 e artigo 163, parágrafo único, inciso III, ambos do Código Penal, aplicando-se o artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, de modo analógico ao caso.

Por fim, informa o Parquet que, no exercício do controle externo da atividade policial (artigo 129, VII da Constituição Federal), providenciará a extração integral de cópia destes autos e seu posterior encaminhamento à Corregedoria da Polícia Militar visando instauração de procedimento investigativo para apurar a conduta dos policiais militares envolvidos neste episódio.[...]

Inobstante não haja juízo definitivo acerca da efetiva prática de tortura contra o recorrente, tampouco há que se falar em prova de materialidade suficiente para deflagrar a ação penal com relação ao delito de furto, tendo em vista que a legalidade da própria localização da res furtiva, bem como da confissão ofertada pelo réu pendem de exame pelo Poder Judiciário.

Assim, da análise dos elementos circunstanciais e acidentais presentes nos autos, é forçoso se concluir pela insuficiência, ao menos até o momento, de indícios mínimos de materialidade do delito imputado ao acusado, considerada a possível nulificação das provas de autoria e de materialidade do furto.

Ausente, por ora, justa causa para a ação penal, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal.

[...]

Assim, merece ser provido o recurso para que seja reconhecida a ausência de provas de materialidade para a propositura de ação penal.

Posto isso, opina o Ministério Público Federal pelo provimento do recurso ordinário em habeas corpus.

É o Parecer, s.m.j." (eDOC 2, p. 194-200)

Da simples leitura dos documentos anexados a estes autos e nos termos do parecer da Procuradoria Geral da República, tudo indica a possível prática de violência policial. Os relatórios médicos do paciente (eDOC 2, p. 44- 49) demonstram diversas escoriações: "além de fotos, fora constatado, de forma expressa, a presença de edemas e escoriações no dorso nasal, na mucosa oral, na região do tórax e nas pernas, havendo, pois, fortes indícios de prática de violência policial."(eDOC 2, p. 79). O relatório médico do policial que atuou no flagrante declara a presença de "escoriação medindo 0,5 cm na face dorsal da 5a articulação metacarpofalangeana da mão direita".

Ademais, os laudos corroboram o depoimento do paciente em sede policial. Veja-se:

[...] Relata que foi agredido pelo policial TELES, pois não informou seu CPF, sendo espancado pelo policial. Esclarece que foi agredido com murros e chutes, na cabeça, boca, braços e costela. Informa que as lesões do policial são em decorrência de ter espancado o conduzido e que ele estava algemado, sendo impossível ter praticado qualquer tipo de lesão contra o policial. [...]."

Cabe ressaltar que essa versão do paciente foi uniforme em todas as instâncias em que teve oportunidade de se manifestar.

Sobre o tema veja-se jurisprudência desta Corte:

"Agravo regimental na reclamação. 2. Penal e Processual Penal. 3. RE 603.616/RO. Tema 280. 3. Inviolabilidade de domicílio. Art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. 4. Análise do caso concreto. 5. Entrada sem mandado e sem autorização. 6. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 7. Falta de justa causa. 8. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 9. Negado provimento ao agravo regimental."(Agr no Rcl 49.010/GO, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 18.2.2022)

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSO PENAL. OMISSÃO. ACÓRDÃO QUE REGISTROU APENAS A ÍNFIMA QUANTIDADE DE DROGA COMO FUNDAMENTO PARA O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXISTÊNCIA DE UM SEGUNDO FUNDAMENTO NAS RAZÕES DE DECIDIR. A ILEGALIDADE DA BUSCA E APREENSÃO DA SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE NO INTERIOR DO DOMICÍLIO, SEM MANDADO JUDICIAL PRÉVIO E AUSENTE QUALQUER INDÍCIO DE OCORRÊNCIA DE FLAGRANTE DELITO. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA . EMBARGOS PROVIDOS."(ED no HC 138.565, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 3.9.2018)

Portanto, considerada a possível nulidade das provas de autoria e de materialidade do furto, o trancamento da ação penal é medida que se impõe.

Ante o exposto, concedo a ordem para determinar o trancamento da ação penal. (art. 192, caput, RISTF)

Publique-se.

Comunique-se ao Juízo de primeiro grau e ao TJGO.

Publique-se.

Brasília, 27 de outubro de 2023.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

Documento assinado digitalmente

(STF - HC: 233154 GO, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 27/10/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27/10/2023 PUBLIC 30/10/2023)

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