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27 de Maio de 2024

A aplicação da ultra vires doctrine no direito brasileiro

Publicado por Daniel Haddad Bertini
há 7 anos

As sociedades empresárias devem ser integradas por uma ou mais pessoas físicas, com a atribuição de, no plano interno, administrar a empresa e, no plano externo, manifestar a vontade da pessoa jurídica (Fabio Ulhôa Coelho, 2012)

Nestes termos, é estritamente necessário que uma sociedade empresária se organize de forma a definir, expressamente, a pessoa (ou pessoas) do seu administrador. O gerenciador da empresa poderá ser propriamente um sócio ou um terceiro contratado para gerenciá-la, a depender do tamanho e necessidade da sociedade empresária.

Encontra-se no artigo 997 do Código Civil Brasileiro as cláusulas necessárias do Contrato social da empresa, qualificado como contrato constitutivo da sociedade empresária. Entre elas, especificamente, merece registro os incisos II e VI do referido artigo.

Prescreve o artigo 997, inciso VI que:

Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:

VI - as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições;

Dessa forma, o Código é expresso no sentido de que deve estar constante, já no contrato social, o administrador da sociedade. Contudo, tal inciso pode ser relativizado, tendo em vista a possibilidade de ser determinado o administrador por ato próprio (Fabio Ulhôa Coelho, 2012)

É possível, ainda, que ocorra a denominada administração disjuntiva, na qual todos os sócios são considerados administradores para fins legais, e é uma possibilidade indesejável para empresas que pretendem alcançar grande porte no sentido econômico e organizacional. Determinado o administrador da empresa, é imperativo observar a responsabilização deste e da sociedade empresária em relação aos seus atos praticados pelo gerenciador.

Ainda em relação ao contrato social, prevê o inciso II do artigo 997 do Código Civil que deve estar expresso o objeto social da sociedade empresária. O objeto social pode ser interpretado como objeto parasocial (instrumental) relacionado a atividade meio da empresa para atingir seus objetivos e o objeto social propriamente dito, que se trata da atividade fim da empresa (principal). Portanto, no contrato social deve constar todo o objeto social da sociedade, de tal forma que englobe a atuação e atividade da sociedade.

Imprescindível demonstrar que o objeto social deverá ser o mais completo possível, de forma a considerar qualquer movimentação financeira ou ato a ser representado pela empresa, sob pena do administrador ser responsável pessoalmente pelos atos praticados que extrapolem o objeto social. Em outras palavras, qualquer ato praticado pelo administrador que não esteja previsto expressamente no contrato social (como objeto social) será de responsabilidade pessoal do administrador (com seu próprio patrimônio e não da sociedade).

A previsão está expressa no artigo 47 e 1015, §ú, III do Código Civil:

Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.

Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.

Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:

III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

Portanto, conforme se extrai do artigo 47 do Código Civil, a pessoa jurídica restará obrigada pelos atos dos administradores, desde que exercido no limite do que está definido no ato constitutivo (leia-se: determinado no objeto social que está definido no contrato social da sociedade empresária).

A teoria, que responsabiliza o administrador pelos atos praticados fora do objeto social da empresa, exposta acima, é denominada ultra vires doctrine, que passará a ser analisada detidamente a seguir:

Com origem em 1855, na Inglaterra, objetivando evitar desvios de finalidade na administrações das sociedade, teve como paradigma o caso Ashtray Railway Carriage and Iron Company Ltd v. Riche, de forma que demonstrou a preocupação da Corte Britânica com as novas sociedades empresárias surgidas na época, e considerou nulo toda atitude tomada fora do objeto social.

Cumpre ressaltar que, inicialmente, no Direito Inglês a teoria ultra vires (que pode ser traduzida como “além” – ultra; e “força” – vires) considerava nulo todo ato realizado fora do objeto social. Inicialmente, a preocupação primordial das cortes britânicas se devia pela recém possibilidade de criação de empresas com responsabilidade dos sócios limitadas ao patrimônio da sociedade empresária, e, por mais que seja uma prática rotineira e comum no Direito hodierno, no momento da liberação criou diversas controvérsias e zelo por parte das Cortes tendentes a impedir qualquer tipo de prejuízo direto à economia do país.

Inicialmente a teoria trouxe diversos problemas para o Direito Inglês, em razão de contratos primitivos ostentarem uma lista imensa e variada de atividades econômicas, para que não se aplicasse a referida doutrina, anulando-se o ato praticado pelo administrador (Davies, 1954:203 apud Fabio Ulhôa Coelho, 2012).

Ao longo do século XX, com o natural abrandamento da aplicação da ultra vires doctrine, podemos determinar três consequências graduais da doutrina ultra vires:

1. O ato praticado fora do objeto social era considerado nulo;

2. Posteriormente, o ato passou a ser inimputável a pessoa jurídica, de forma a se responsabilizar o administrador da sociedade (TEORIA ADOTADA NO DIREITO BRASILEIRO).

3. Em vindoura evolução começou a se observar a boa-fé do contratando, conferindo-lhe, assim, o direito de exigir da própria sociedade o cumprimento do contrato extravagante, em caso de desconhecimento da cláusula delimitadora do objeto social e reconhecida boa-fé do contratante. Constitui a consagração da teoria da aparência, que não imputa a responsabilidade àquele que presumidamente desconhecia o contrato social da empresa. (Farrar-Hannigan, 1985: 107 apud Fabio Ulhôa Coelho 2012).

Trata-se de um abrandamento e até inutilização dessa doutrina por parte dos países Britânicos e dos Estados Unidos da América. O Brasil, conforme demonstrado acima, adota uma teoria mista, responsabilizando o administrador pelos atos praticados fora do objeto social. (Arts. 47 e 1.015 do Código Civil de 2002).

Relevante é a informação de que só entrou em vigor com o Novo Código Civil, de 2002, de forma que em todo o século XX (auge da utilização da doutrina fora do país) não fora aplicável tal doutrina no Brasil.

Em que pese a previsão expressa no Código de que a ultra vires doctrine deve ser aplicável, de forma a responsabilizar o administrador, tem sido relativizada, pela jurisprudência, a sua eficácia. Confira-se decisão no Recurso Especial nº 704.546 – DF (2004), com relatoria do Min. Luis Felipe Salomão: “[...] A partir do Código Civil de 2002, o direito brasileiro, no que concerne às sociedades limitadas, por força dos arts. 1.015, § único e 1.053, adotou expressamente a ultra vires doctrine[...]”, “[...]No caso em julgamento, o acórdão recorrido emprestou, corretamente, relevância à boa-fé do banco credor, bem como à aparência de quem se apresentava como sócio contratualmente habilitado à prática do negócio jurídico. Não se pode invocar a restrição do contrato social quando as garantias prestadas pelo sócio, muito embora extravasando os limites de gestão previstos contratualmente, retornaram, direta ou indiretamente, em proveito dos demais sócios da sociedade fiadora, não podendo estes, em absoluta afronta à boa-fé, reivindicar a ineficácia dos atos outrora praticados pelo gerente”.

Trata-se, claramente, da relativização da ultra vires doctrine permitindo a adoção de cláusulas gerais, tais como a boa-fé, além da incidência de teorias modernas, tais como a teoria da aparência, de tal sorte que possam fazer parte da análise do magistrado se a referida doutrina deve ou não ser aplicada no caso em concreto. É a mais moderna aplicação da teoria em todo o mundo.

É elogiável o posicionamento tomado pelo tribunal e o abrandamento da teoria ultra vires, tendo em vista a desproporcionalidade de se obrigar, logo no contrato social, os contratantes idealizarem todos atos possíveis a serem praticados pela empresa e seu administrador, em razão de se resguardar das possíveis infringências ao patrimônio pessoal. Ainda que esteja positivada a referida doutrina, o judiciário tem, através da razoabilidade, aplicado o que há de mais moderno a respeito da ultra vires doctrine.

Referência:

COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. V.2 – sociedades. 16ª ed. Saraiva: São Paulo-SP, 2012.


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