A falta da medida administrativa pelo agente de trânsito gera nulidade do auto de infração?
O objetivo do presente texto é fazer uma análise da falta de aplicação da medida administrativa nas infrações de trânsito, tendo em vista a divergência existente entre os operadores do Direito de Trânsito, se isso anularia ou não o ato administrativo de aplicação de multa.
Para se atingir o objetivo proposto analisaremos a finalidade a ser alcançada pela lei, verificaremos as penalidades e medidas administrativas contidas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), passaremos a uma breve análise do processo administrativo de trânsito, vinculação ou discricionariedade do Auto de Infração de Trânsito e Medida administrativa, citaremos exemplos para elucidar o tema e, por fim, o Princípio da Motivação.
O poder punitivo do Estado advém do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e, consequentemente, do seu Poder de Polícia. Assim, o Direito Administrativo Sancionador, como costuma ser chamado, em nome do interesse público, tem por escopo o bem-estar coletivo. Com o intuito deste bem-estar, a Supremacia do Interesse Público também é conhecida como Princípio da Finalidade Pública.
O Código de Trânsito Brasileiro, por sua vez, reza que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito. Já o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito explica que ações de fiscalização influenciam diretamente na segurança e fluidez do trânsito e o papel do agente de trânsito é desenvolver atividades voltadas à melhoria da qualidade de vida da população, atuando como facilitador da mobilidade urbana ou rural sustentáveis.
Desse modo, vemos que a finalidade pública detrás dos regramentos de trânsito se baseia na segurança de todos e fluidez do trânsito. Isto posto, para que se atinja esta finalidade a administração pública dispõe de ferramentas como a educação e as penalidades. Assim, as penalidades aplicadas pelo Estado, ante seu poder punitivo, nada mais é do que um meio para se alcançar a finalidade, sendo que, ocorrendo desvios de tal finalidade, a atuação administrativa se torna ilegal.
Dentre as penalidades previstas no Código de Trânsito Brasileiro estão a advertência por escrito, multa, suspensão do direito de dirigir, cassação da Carteira Nacional de Habilitação, cassação da Permissão para Dirigir e frequência obrigatória em curso de reciclagem.
As medidas administrativas, consoante o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, são providências de caráter complementar, exigidas para a regularização de situações infracionais, sendo, em grande parte, de aplicação momentânea, e têm como objetivo prioritário impedir a continuidade da prática infracional, garantindo a proteção à vida e à incolumidade física das pessoas, e não se confundem com penalidades.
Estão previstas no artigo 269 do CTB, sendo elas: I - retenção do veiculo; II - remoção do veículo; III - recolhimento da Carteira Nacional de Habilitação; IV - recolhimento da Permissão para Dirigir; V - recolhimento do Certificado de Registro; VI - recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual; VII - (VETADO); VIII - transbordo do excesso de carga; IX - realização de teste de dosagem de alcoolemia ou perícia de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica; X - recolhimento de animais que se encontrem soltos nas vias e na faixa de domínio das vias de circulação, restituindo-os aos seus proprietários, após o pagamento de multas e encargos devidos. XI - realização de exames de aptidão física, mental, de legislação, de prática de primeiros socorros e de direção veicular.
A controvérsia existente entre os operadores do Direito de Trânsito acontece em relação à vinculação da execução da medida administrativa quando o agente de trânsito está diante do cometimento de uma infração. Assim, paira a dúvida: a ausência de cumprimento da medida administrativa deve invalidar o auto de infração de trânsito?
Para analisarmos tal hesitação, primeiramente cabe esclarecer que a aplicação das penalidades previstas no CTB devem ser precedidas de um processo administrativo, que por óbvio é composto por vários atos administrativos.
A lavratura do Auto de Infração de Trânsito (AIT) é o ato que dá início ao processo de aplicação da punição prevista para a conduta infracional praticada. Ele é um ato vinculado, ou seja, não cabe ao agente de trânsito qualquer margem de subjetividade se deve ou não lavrar o auto de infração de trânsito. Por expressa determinação legal, ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração (CTB - artigo 280).
Da mesma forma, o artigo 269 do mesmo diploma, não dá margem à discricionariedade do agente ao dizer que: “A autoridade de trânsito ou seus agentes (...) “deverá” adotar as medidas administrativas”. Destarte, a palavra “deverá”, impõe uma obrigação, ou seja, uma vinculação na atuação dos agentes.
Todavia, sabe-se que a própria legislação de trânsito pode conter expressões aparentemente contraditórias em seu próprio texto, ou até mesmo inconstitucionais. Devido às aparentes contradições, é que podem surgir as divergências entre aqueles que atuam no Direito de Trânsito, sejam os órgãos do Sistema Nacional de Trânsito ou os defensores de condutores. Por isso, é oportuno trazer à baila, novamente, a finalidade da norma. Dessa maneira, a medida administrativa como um ato administrativo dentro de um procedimento administrativo, deve ser vista como um meio para se alcançar o escopo da segurança e fluidez do trânsito, contribuindo para a efetiva mudança de comportamento dos usuários da via e propiciando a eficácia da norma jurídica.
Observando-se as aparentes contradições no CTB, o artigo 271, § 9º, diz que não caberá remoção nos casos em que a irregularidade puder ser sanada no local da infração. Assim, mais uma vez o CTB vincula o agente com as palavras “não caberá”. Mas será que este enunciado vincula ou concede discricionariedade ao agente?
Analisando-se alguns artigos do CTB podemos tirar algumas conclusões:
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro.
Neste caso, teria o agente a opção de deixar de realizar o recolhimento do documento de habilitação sob sua análise da situação em concreta (discricionariedade)? Por óbvio que não poderia, a não ser que o condutor não esteja portando a CNH, sob pena de se questionar o próprio cabimento da lavratura do auto de infração de trânsito, visto que deixar o condutor do veículo com sua CNH permitiria “em tese” que voltaria a dirigir e causar risco à segurança do trânsito.
Também poderia o agente de trânsito deixar de reter o veículo entregando-o para o próprio condutor alcoolizado? Claro que também não! Mais uma vez, vemos que a medida administrativa é um ato vinculado, pois caso libere o veículo para o próprio condutor estará colocando em dúvida a própria necessidade da autuação, visto que não se deve liberar um veículo a um condutor alcoolizado.
Vejamos agora o art. 175. Utilizar-se de veículo para demonstrar ou exibir manobra perigosa, mediante arrancada brusca, derrapagem ou frenagem com deslizamento ou arrastamento de pneus:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (dez vezes), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo;
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e remoção do veículo.
À vista disso, o agente tem a opção de deixar de realizar o cumprimento das medidas administrativas? Analisando-se legalmente a situação, o agente só pode deixar de remover o veículo se a irregularidade for sanada no local, conforme dito acima. Cabe observar que existe uma imposição legal diante do termo “não caberá”, por isso o agente não pode remover o veículo caso a infração seja reparada, ou seja, deve realizar a aplicação da norma ao caso em concreto não havendo discricionariedade quanto à conveniência e oportunidade da remoção.
O recolhimento do documento de habilitação também é necessário, pois, do contrário, não se estará atingindo a finalidade da norma que é a segurança no trânsito.
Isto posto, a maior certeza que temos, é que sendo possível ou não a realização das medidas administrativas, o agente de trânsito deve descrever no campo de observações do AIT toda a situação ocorrida, atendendo o Princípio da Motivação dos atos administrativos, principalmente se deixar de cumprir a medida administrativa, sob pena de invalidade do auto de infração de trânsito.
A motivação dos atos administrativos é a demonstração, por escrito, de que os pressupostos de fato realmente existiram, já que, para punir, a administração deve demonstrar a prática da infração. A motivação já foi objeto de debate se deveria ser aplicada apenas nos atos discricionários ou se deveria também ser realizada nos atos vinculados.
Para a professora Maria Silvia Zanella Di Pietro, o Princípio da Motivação
“está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutiam se a sua obrigatoriedade alcançava só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.” (DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19 ed. Atlas, 2006, p. 97)
Assim, quando o agente de trânsito deixa de motivar o ato por meio do campo de observações, ele está colocando em dúvida a legalidade de seu ato, impedindo que tanto a autoridade de trânsito quanto o administrado tenham meios para conhecer e controlar a legitimidade dos motivos que levaram o agente a aplicar ou deixar de aplicar a medida administrativa.
O Princípio da Motivação está insculpido na Constituição Paulista de 1989 e também na Lei que regulamenta o processo administrativo federal (Lei 9.784/99). Esta, por sua vez, antevê tal princípio em seu artigo 2º e, em seu artigo 50, assinala as hipóteses nas quais a motivação é obrigatória, dentre elas, a imposição ou agravamento de deveres, encargos e sansões.
Por derradeiro, podemos concluir que por expressa determinação legal, a medida administrativa é um ato vinculado só podendo o agente deixar de aplicá-la quando autorizado pela própria lei, ou então, na impossibilidade de fazê-la, sempre com objetivo de atender a finalidade da norma, sob pena de nulidade. Da mesma forma, independentemente de ser um ato vinculado ou discricionário, o agente de trânsito deve esclarecer a situação observada no campo de observações do Auto de Infração Trânsito, sob pena de violação do Princípio da Motivação, tornando o ato nulo. Além disso, a medida administrativa, como parte do processo administrativo de imposição de multa é capaz de anular todo o processo caso não seja devidamente observada.
4 Comentários
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Boa tarde excelente artigo muito esclarecedor!!!!Caso saibam né respondam: Pode o agente de trânsito fazer verificação do chassi de uma moto parada em seguida liberar e mesmo assim multar por falta de capacete e contramão?....Pode esse mesmo agente arquivar os dados desse veículo para multas futuras por ele mesmo ou por outros agentes? continuar lendo
Excelente conteúdo!!!! Pode me tirar uma dúvida??? Pode um agente da autoridade de trânsito realizar alguma medida administrativa mas sem fazer a autuação??? Por exemplo: Remover a moto sem preencher o AIT? continuar lendo
Excelente artigo, muito didático! Sou pós-graduando em Direito de Trânsito pela Faculdade Legale seu artigo esclareceu minhas dúvidas. Obrigado! continuar lendo
Obrigado pelo feedback. Abraço. continuar lendo