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26 de Maio de 2024
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    Do sujeito trabalhador ao sujeito criminoso: notas sobre desemprego, sistema punitivo e criminalização da pobreza

    há 7 meses

    1. Introdução

    A concepção jurídico-normativa de “sujeito de direitos” é decorrente de um ideal positivista e republicano que institui o cidadão – ser universal – como portador de garantias abstratas (direitos) e obrigações de fazer perante a sociedade e os demais sujeitos, como se imiscuído em uma espécie de contrato.

    Entretanto, em que pesem as diversas críticas ao conceito supramencionado, fato é que a economia política dita o tratamento conferido ao sujeito jurídico. Com o advento do capitalismo industrial e o surgimento de uma classe trabalhadora em escala global, a urgência do Direito se deu para constituir e legalizar o funcionamento desta classe fundamental às engrenagens do sistema capitalista.

    Nesse sentido, nos ensina Pachukanis (2017) que, a partir do capitalismo industrial, houve um movimento nos demais países pela criação de códigos civis e penais, legislações trabalhistas e constituições, assegurando a venda da principal mercadoria efervescente do período: a força de trabalho. O sujeito trabalhador, que vende sua força de trabalho em troca de um salário, é engendrado por uma forma jurídica e social chamada “forma-mercadoria”. (Mascaro, 2013) Sobre essa forma, avalia-se que é a responsável por intermediar as relações sociais no capitalismo.

    Ainda, o que se verifica, a partir da formação e constituição da classe trabalhadora e do trabalho, em si, como meio de reprodução da vida e da organização social, é a formação de uma gama de trabalhadores alheios à produção, à venda da força de trabalho. Esse contingente populacional de sujeitos que, pela conjuntura ou por fatores biopsicológicos, se encontram desempregados, formam aquilo que Marx denominou “exército industrial de reserva” (Marx, 2016).

    Em contextos de desemprego, em sociedades marcadas pela troca de mercadorias e pelo tensionamento de classes, há, invariavelmente, como restará comprovado, o aumento da criminalidade econômica, do cometimento de crimes ligados à propriedade privada e à pauperização. O sujeito, outrora trabalhador, é qualificado como criminoso.

    Nesse sentido, a prisão, como instituição repressora própria do período em que o capitalismo tomou escala industrial (Foucault, 1997), foi fundamental na sustentação do modelo de punição atualmente consagrado, em que pese as mais diversas mudanças conjunturais dentro dos ciclos econômicos próprios do capitalismo.

    De acordo com a socióloga e ativista americana, Ângela Davis:

    A prisão se tornou um buraco negro no qual são depositados os detritos do capitalismo contemporâneo. O encarceramento em massa gera lucros enquanto devora a riqueza social, tendendo, dessa forma, a reproduzir justamente as condições que levam as pessoas à prisão. Há, assim, conexões reais e muitas vezes complexas entre a desindustrialização da economia – processo que chegou no auge na década de 1980 – e o aumento do encarceramento em massa [...] (Davis, 2020, p. 17-18).

    2. Neoliberalismo e punição “à brasileira”

    Resta evidente que a punição social é imbricada à estrutura e organização do trabalho, bem como da cadeia produtiva. A economia brasileira, em sua fase neoliberal que perdura até hoje, tardou por desmantelar as bases (frágeis) de proteção social do trabalhador até então constituídas.

    A desindustrialização em massa motivada pela privatização, pela introjeção massiva do capital financeiro na economia, pelo aumento do terceiro setor na dinâmica de circulação do Capital, bem como a formação a nível nacional de um modelo econômico meramente primário-exportador delinearam um aumento expresso do número de sujeitos desempregados e com trabalhos precários.

    Quanto à estrutura da proteção laboral, houve um crescimento exponencial da terceirização, da informatização e da extração mais violenta por parte da classe burguesa da mais valia absoluta – decorrente da possibilidade ofertada pela baixa proteção social ao trabalhador (Alemany, 2019).

    De acordo com Alemany:

    Há uma lógica no exercício da punição, que a orienta prioritariamente contra os estratos estagnados do exército industrial de reserva, ou seja, os trabalhadores excluídos do emprego formal que transitam entre o desemprego e o subemprego e a busca pela sobrevivência no trabalho informal ou autônomo, cruzando, em muitos casos, a barreira da legalidade e se projetando para o interior das economias criminais, cujo principal exemplo na atualidade é o comércio varejista de drogas (Alemany, 2019, p. 302).

    O gráfico a seguir disciplina a relação de desemprego ao longo dos últimos anos marcados pelo neoliberalismo

    Fonte: Elaboração FGV IBRE com dados da Pnad e da Pnad Contínua

    Ademais, em que pese a elevada taxa de desemprego, para aumentar o nível de precarização social do trabalhador, Abdala (2023) nos mostra que o Brasil, em 2022, obteve o maior índice de trabalhadores na informalidade – 38,8 milhões.

    Paralelamente, é possível observar para onde foram encaminhados os trabalhadores precarizados brasileiros:

    População prisional brasileira 1954-2018. Fonte IBGE e INFOPEN

    Para completar o cenário de barbárie institucional, pesquisa do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) informa que o Brasil terminou o ano de 2022 com a marca de 832.295 pessoas encarceradas, com destaque para o contingente de cerca de 45 mil mulheres presas, o maior número da história do país. Ainda, em 2020, ano em que o índice de desemprego alcançou marca recorde, o Brasil chegou a ter mais de 900 mil pessoas presas, segundo o CNJ (Abbud, 2022).

    Analisa-se, pois, que, com o início da neoliberalização da economia, a partir de meados da década de 1980, houve um crescimento exponencial do índice de desemprego e de encarceramento no Brasil.

    Conclui-se, ao observar os dados referentes à distribuição produtiva no país (com o aumento da informalização do trabalho e da economia) e à relação de trabalhadores com vínculos de emprego e ao aumento da punição – mais especificamente da punição direcionada aos marginalizados – que a baixa proteção social está imbricada à superlotação carcerária.

    3. O tripé roubo, furto e crimes da Lei de Drogas

    Em que pesem as mais diversas transformações na estrutura produtiva com o advento do neoliberalismo no Brasil, fato é que a estrutura da punição também se transformou. O aumento da superexploração do trabalho, a flexibilização do instituto do emprego e a baixa proteção social fizeram com que os crimes se voltassem à busca pela propriedade privada – mais objetivamente propriedade privada de bens móveis não-duráveis – e à circulação daquela que se tornou a maior economia periférica do país, o comércio varejista de drogas.

    Alemany (2019) ensina que a improdutividade face ao sistema capitalista reserva ao Estado, através de seus órgãos repressivos, o direito de punir e castigar, bem como dever de aprisionar. Atualmente, no Brasil, cerca de 74,4 % dos presos estão privados de liberdade por crimes relacionados à Lei de Drogas (Brasil, 2006), roubo e furto (Senado, 2022). Ademais, aproximadamente 45% dos presos são provisórios, isto é, estão presos cautelarmente enquanto aguardam julgamento.

    O furto, previsto no Código Penal (Brasil, 1940) em seus artigos 155º e 156º, possui pena máxima, em seu caput, de 4 anos. No entanto, pode-se notar grande incidência no Judiciário de furtos qualificados, previsto no artigo 155º, § 4º, § 4-A, § 4-B, § 4-C, § 5º, § 6º e § 7º, todos do Código Penal (Brasil, 1940), com penas elevadas, podendo chegar até a 10 anos.

    Repise-se que o furto é um crime sem violência à pessoa; o bem jurídico estritamente protegido é a propriedade privada (salvo algumas de suas modalidades qualificadas).

    Por sua vez, o roubo simples, disciplinado no artigo 157º do Código Penal (Brasil, 1940), possui pena máxima cominada em 10 anos. O referido tipo penal possui causas de aumento de pena previstas nos §§§ 2º, 2-Aº e 2-B do artigo mencionado, bem como possui duas modalidades qualificadas, quando da violência resultar morte ou lesão corporal grave.

    Ainda, os crimes previstos na Lei de Drogas (Brasil, 2006), quais sejam, tráfico ilícito de entorpecentes e associação para o tráfico, possuem elevadas penas e, geralmente, devido à distribuição espacial do comércio da droga, são aplicados em conjunto, mediante o regime de cúmulo material (mais gravoso).

    A pena máxima do crime de tráfico de drogas prevista no caput do artigo 33º da supracitada lei é de 15 anos, ao passo que a prevista no caput do artigo 35º, delito de associação para o tráfico, é de 10 anos. Ademais, o tráfico de drogas é crime equiparado a hediondo, portanto, incide em maior dificuldade para a consecução de medidas como a liberdade condicional e a progressão de regime.

    4. Considerações finais

    Tornou-se evidente que a política de guerra às drogas se traduz em uma política de guerra aos pobres, à medida que superdimensiona o controle policial nas comunidades e aumenta o índice de operações destes órgãos – que resultam, invariavelmente, em mortes.

    O controle biopsicossocial realizado pela classe dominante ao criminalizar os crimes previstos no tripé mencionado é fulcral para entender a relação simbiótica entre estrutura produtiva e punição. No capitalismo, principalmente no capitalismo neoliberal, uma é dependente da outra, retroalimentando-se constantemente.

    Nesse ínterim, evidente se faz que os crimes que mais encarceram atualmente no sistema penal-punitivo brasileiro são delitos com baixa ou ínfima lesividade. Em regra, protegem a propriedade privada e a incaracterizável “saúde pública”. São, evidentemente, a (i) legítima expressão da criminalização da pobreza.



    Bibliografia

    ABBUD, Bruno. Pandemia pode ter levado Brasil a recorde histórico de 919.651 presos. Brasília, 05 de Junho de 2022.

    ABDALA, Vítor. Agência Brasil - Trabalhador sem carteira assinada atingiu número recorde em 2022. 28 de Fevereiro de 2023. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-02/trabalhador-sem-carteira-assinada-atingiu-.... (acesso em 06 de Agosto de 2023).

    ALEMANY, Fernando Russano. Punição e estrutura social brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado - USP, 2019.

    BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, 1988.

    —. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 1940.

    —. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 1940.

    —. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Brasília, 2006.

    DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2020.

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes Ltda, 1997.

    JUNIOR, José Coutinho, e Isabela MENEDIM. Brasil de Fato: Eleições 2022: apenas 3% dos presos provisórios pôde votar. 10 de Outubro de 2022. https://www.brasildefato.com.br/2022/10/10/eleicoes-2022-apenas-3-dos-presos-provisorios-pode-votar#.... (acesso em 08 de Agosto de 2023).

    MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: WMF Martins Fontes - POD, 2016.

    MASCARO, Alyson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

    PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

    Pública, Fórum Brasileiro de Segurança. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo, 2023.

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