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6 de Maio de 2024

Habeas data e o acesso a informações constantes de bancos de dados privados

Publicado por Sabrina Sabino
há 3 anos

Sabrina Oliveira Silva Sabino[1]*

João Antônio Lima Castro[2]**

RESUMO

O habeas data é remédio repressivo insculpido na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, com fins à proteção individual, de modo a possibilitar o conhecimento e retificação de informações subjetivas armazenadas em bancos de dados. A partir do processo de informatização tecnológica, a coleta de dados pessoais passou a ser gerida em grandes proporções pelo setor privado que, inclusive, começa a atuar em colaboração com o Estado. Diante de tal cenário, deflagram-se mecanismos infraconstitucionais para o acesso à informação e a proteção de dados. Como ação constitucional que repreende à negativa ao acesso à informação personalíssima, o habeas data deve ser relido à luz das novas demandas sociais. Nesse diapasão, o presente texto discute a possibilidade de impetração do habeas data para garantia de acesso a informações personalíssimas que se encontram sob a tutela de entidades privadas, utilizando como metodologia a pesquisa bibliográfica exploratória e análise qualitativa e delimitando o conceito de “caráter público”, mencionado no texto constitucional e na Lei nº 9.507/1997, que deve ser interpretado de maneira ampla. Considera-se, ao final, que o sentido de caráter público não pode se confundir com o ente que mantém as informações pessoais, devendo se relacionar com os próprios dados. Ademais, a configuração do caráter público não deve se restringir à transmissão dos dados a terceiros, evitando-se visão reducionista do remédio constitucional. Por fim, o habeas data deve ser concebido como garantia e direito fundamental em si.

Palavras-chave: Direitos subjetivos. Banco de dados. Informação.

ABSTRACT

Habeas data is a repressive remedy inscribed in the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, for the purpose of individual protection, in order to enable the knowledge and rectification of subjective information stored in databases. From the process of technological computerization, the collection of personal data started to be managed in large proportions by the private sector, which even begins to work in collaboration with the State. Faced with such a scenario, infraconstitutional mechanisms for access to information and data protection are triggered. As a constitutional action that rebukes the denial of access to very personal information, habeas data must be reread in the light of new social demands. In this tuning fork, the present text discusses the possibility of entering habeas data to guarantee access to very personal information under the tutelage of private entities, using as methodology the exploratory bibliographic research and qualitative analysis and delimiting the concept of “public character”, mentioned in the constitutional text and in Law 9.507 / 1997, which must be interpreted in a broad way. In the end, it is considered that the sense of public character cannot be confused with the entity that maintains personal information, and must relate to the data itself. Furthermore, the configuration of the public character should not be restricted to the transmission of data to third parties, avoiding a reductionist view of the constitutional remedy. Finally, habeas data must be conceived as a guarantee and a fundamental right in itself.

Keywords: Subjective rights. Database. Information.

INTRODUÇÃO

Há algumas décadas, as principais informações pessoais dos indivíduos eram armazenadas e geridas pelo Estado que, por vezes, utilizou e distorceu dados para fins indevidos.

Os modelos de Estado não democráticos propiciavam o uso imoral e irrestrito de informações individuais, acarretando violações a direitos de ordem subjetiva. Com a instituição da democracia, notadamente após a promulgação da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), o Estado detém o compromisso de concretizar direitos fundamentais, efetivando as diretrizes insculpidas no texto constitucional, dentre elas a proteção aos direitos de personalidade, a honra, a imagem, a privacidade e a igualdade. Nesse sentido, todas as normas do ordenamento jurídico, bem como os atos praticados pela Administração Pública em sentido amplo, devem corresponder aos ditames constitucionais.

Especialmente em razão da necessidade de proteção aos direitos subjetivos, o legislador constituinte inseriu no arcabouço de direitos e garantias fundamentais (artigo e seguintes da CRFB/88) uma ação específica, nomeada como habeas data, a fim de assegurar à qualquer indivíduo o livre acesso às informações existentes em registros ou bancos de dados governamentais ou de caráter público relativas à sua pessoa.

Ocorre que, com o avanço dos meios tecnológicos e o surgimento dos registros digitais, um grande leque de informações ligadas à esfera individual, passaram a ser gerenciadas por instituições privadas.

Se, no passado, a grande preocupação pairava sob o uso de dados apenas pelo aparato estatal, atualmente, o debate se amplifica em face de todos aqueles que detém meios para o armazenamento de informações, seja na seara pública ou privada. Seguindo a tendência mundial de informatização, cada vez mais, será necessário a criação de regramentos, que se dediquem à regulamentação do tratamento de dados e que tenham comandos preventivos e repressivos para garantir a preservação dos direitos fundamentais.

É nesse diapasão que se vislumbra a necessidade de releitura do habeas data. Com a evolução das máquinas, da inteligência artificial e do acesso amplo por diversos coletores, as mais diferentes informações individuais foram modificando a vida humana, as formas de relacionamento e interação, e, no caso tratado neste estudo, do armazenamento e gestão de dados pessoais[3].

Atualmente, os dados coletados pelo setor privado são utilizados para os mais diversos fins, sendo inclusive repassados ao Estado, o que torna a discussão acerca do direito à informação e das finalidades do habeas data, relevante e pertinente.

O presente estudo, tem a intenção de esgotar a problemática exposta, objetivando traçar linhas gerais e pontos importantes. Trata ainda, da possibilidade de manejo do remédio constitucional em comento, para o acesso à informações constantes em bancos de dados privados.

O legislador constituinte condicionou a concessão do habeas data, quando os dados pleiteados pelo interessado estivessem em registros ou em bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. Interpreta-se, então, o vocábulo “caráter público” para a compreensão do âmbito de cabimento do habeas data.

O trabalho concentra o exame da inserção do remédio constitucional em comento na CRFB/1988 e a necessidade de seu aprimoramento para acompanhar as evoluções da sociedade, contemplando a análise doutrinária e jurisprudencial acerca do tema.

HABEAS DATA E SEUS CONTORNOS

O habeas data é um dos chamados remédios constitucionais e está elencado no bojo dos Direitos e Garantias Fundamentais constante na Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988). É uma ação constitucional que inovou o ordenamento jurídico, considerando que o referido remédio não estava presente nas Constituições anteriores do Brasil e nem tampouco encontra correspondência idêntica no direito comparado.

Destina-se a assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes nos registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, sendo a via eleita, ainda, para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo, nos termos do artigo , inciso LXXII, da CRFB/1988.

Além do regramento constitucional, a Lei do habeas data (Lei nº 9.507/1997), em seu artigo , inciso III, prevê uma terceira hipótese de cabimento da ação, sendo legítima a sua propositura, para a anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre um dado verdadeiro, mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável.

Assegurar o acesso pleno a informações personalíssimas, traduz a necessidade de proteção de direitos subjetivos e, primordialmente, uma resposta ao passado vivenciado pelo Estado brasileiro nos regimes anteriores, muitas vezes de base não democrática. Conforme aduz Luís Roberto Barroso (1998, p. 149), “(...) na crescente patologia das ditaduras desgastadas, o uso indevido de informações comprava o silêncio e a adesão dos dissidentes do próprio regime, sob a ameaça de escândalos familiares e de publicidade de fatos da vida privada”.

A violação à honra e à privacidade em proporções demasiadas justificou, então, a concepção de um remédio específico em prol da segurança de tais direitos, o intitulado habeas data. Como ensina José Joaquim Gomes Canotilho (2018, p. 519), “O habeas data, que surgiu pela primeira vez no Texto Constitucional de 1988, foi disciplinado em seu art. , LXXII. Seu étimo advém da palavra latina habeas, cujo significado é tenhas em tua posse, e data, que denota o sentido de base de dados.”.

Nesse sentido, como o próprio nome sugere, a ação visa assegurar que dados coletados em sistemas de armazenamento, estejam acessíveis aos titulares das informações nele contidas. Para José Afonso da Silva (2010, p. 453), o remédio constitucional tem por objeto:

(...) proteger a esfera íntima dos indivíduos contra: (a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; (b) introdução nesses registros de dados sensíveis (assim chamados os de origem racial, opinião política, filosófica ou religiosa, filiação partidária e sindical, orientação sexual etc.); (c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei.

Com a evolução dos meios tecnológicos e das relações do próprio Estado com os particulares, garantir o acesso apenas a informações constantes de bancos de dados geridos pelo Estado já não é bastante para a efetividade dos direitos fundamentais. Na atualidade, o Estado frequentemente atua com o setor privado para atingir o interesse público e os ditames constitucionais. Parte-se do pressuposto de que a Administração Pública não é autossuficiente e pode contar com os particulares, privilegiando a busca por resultados e pela eficiência[4].

Empresas privadas, dessa forma, coletam e armazenam informações dos indivíduos, de modo a constituir bancos de dados privados que são úteis para os mais diversos fins, inclusive para apoio à Administração Pública na prestação de seus serviços. Nesse sentido, o setor privado, com o manuseio de informações pessoais, também pode, na atualidade, promover usos abusivos de dados, introduzir “dados sensíveis” em seus cadastros ou mesmo conservar dados inidôneos.

Diante de tal cenário, a legislação ordinária começa a tratar e já vem avançando no tocante ao acesso à informação e à proteção de dados. O mesmo ocorre quanto aos Tribunais brasileiros que, cada vez mais, deparam-se com discussões relativas a informações pessoais.

A Lei de Acesso a Informacao (Lei nº 12.527/2011) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), são os principais diplomas destinados à garantia das informações e a proteção dos dados. A primeira dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso às informações.

A segunda, por sua vez, recentemente introduzida no ordenamento jurídico e ainda em período de vacatio legis, dispõe, nos termos de seu artigo 1º, “sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade (...)”.

Como ensina Patrícia Peck (2018, p. 49-50):

A LGPD surge com o intuito de proteger direitos fundamentais como privacidade, intimidade, honra, direito de imagem e dignidade. Pode-se pontuar também que a necessidade de leis específicas para a proteção dos dados pessoais aumentou com o rápido desenvolvimento e a expansão da tecnologia no mundo, como resultado dos desdobramentos da globalização, que trouxe como uma de suas consequências o aumento da importância da informação. Isso quer dizer que a informação passou a ser um ativo de alta relevância para governantes e empresários: quem tem acesso aos dados, tem acesso ao poder.

O novo diploma infraconstitucional certamente constitui importante avanço no campo do acesso à informação e proteção de direitos individuais intrínsecos ao ser humano. Seguindo a tendência de informatização, cada vez mais serão necessários regramentos para conduzir e acompanhar o processo tecnológico de armazenamento de dados, sendo também, nesse contexto, ante à evolução social pela tecnologia, necessária a releitura do habeas data.

Como mecanismo repressivo à negativa de acesso à informação personalíssima, é imperioso que a ação constitucional, tão importante para concretização de direitos subjetivos e o exercício de diversos outros direitos fundamentais, seja reinterpretada em face das novas demandas sociais. A escolha insigne do legislador constituinte por um instrumento específico de salvaguarda ao direito à informação não pode ser olvidada. Com o passar dos tempos as relações sociais são modificadas demandando novas interpretações para o atendimento dos direitos fundamentais.

LEGITIMIDADES E CONTROVÉRSIAS ACERCA DAS HIPÓTESES DE CABIMENTO DO HABEAS DATA

A Lei nº 9.507/1997, como outrora mencionado, trata do habeas data, sendo a legislação infraconstitucional que delimita e estabelece diretrizes procedimentais para seu manejo. Insta registrar que, embora o regramento legal seja louvável, ele não era necessário à eficácia dos efeitos do remédio constitucional em comento, haja vista que, por se tratar de norma definidora de direito e garantia fundamental, o habeas data têm aplicação imediata.

Conforme salienta Cassio Scarpinella Bueno (2013, p. 80):

Dada a previsão constitucional do habeas data, bem assim, e, em rigor, a desnecessidade de sua regulação infraconstitucional para ser efetivo e concreto, qualquer estrangulamento no atingimento de suas finalidades constitucionalmente traçadas por norma de escalão inferior é inegavelmente violadora do “modelo constitucional” e, como tal, deve ser afastada pelo intérprete e aplicador do direito. Trata-se, aqui também, de evidenciar que nenhuma lei ou ato infraconstitucional pode pretender restringir o atingimento das finalidades traçadas, isto é, impostas pela Constituição Federal. É este o verdadeiro conteúdo e a verdadeira abrangência do referido art. 5º, § 1º, daquela Carta. (BUENO, 2013, p. 80-81).

Dessa forma, qualquer interpretação dada ao habeas data deve parametrizar a impossibilidade de redução das finalidades concebidas a ele. Não há óbice ao alargamento dos fins a que se destina o remédio constitucional, que pode ser compreendido de maneira mais ampla, como ocorreu na citada Lei nº 9.507/1997. O que não se pode conceber é a sua limitação, sendo essa a premissa basilar para se discutir as legitimidades e hipóteses de cabimento.

Com tais considerações, passa-se à análise das questões procedimentais propriamente ditas.

Inicialmente, quanto à legitimidade ativa para a proposição da demanda, verifica-se que ela não comporta maiores digressões, estando atrelada ao interesse subjetivo do impetrante em ter acesso a seus dados. Ora, sendo as informações, cujo conteúdo se pretende ter acesso e/ou proceder retificação, de interesse restrito ao próprio impetrante, a ele deve ser concedida com exclusividade a possibilidade de ver seus direitos subjetivos concretizados.

Nesse sentido, José Joaquim Gomes Canotilho (2018, p. 519) salienta que, “possuem legitimidade ativa para sua impetração, que se configura na pertinência subjetiva da ação, pessoas físicas, nacional e estrangeira, e pessoas jurídicas desde que preencham os requisitos exigidos como condição de ação e os pressupostos processuais.”.

Desse modo, independentemente se, pessoa física ou jurídica, havendo interesse personalíssimo em obter informação constante de bancos de dados, inclusive para retificações ou anotações, desde que o seu conhecimento tenha sido negado, nos termos da Súmula nº 2 do Superior Tribunal de Justiça (1990), poderá ser impetrado o remédio constitucional em comento.

Ressalte-se que a doutrina e a jurisprudência admitem, de modo a excepcionar a regra geral, a proposição do remédio constitucional pelos herdeiros ou sucessores do de cujus, haja vista a proteção de seus dados pessoais (CANOTILHO, 2018, p. 519-520).

Por outro lado, em sentido diametralmente oposto, ao perfilar as nuances que circundam a titularidade passiva da ação, vê-se que ela apresenta discussões sensíveis, confundindo-se com o próprio cabimento do remédio constitucional.

A CRFB/1988 consignou a possibilidade, por meio do habeas data, de conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público (artigo 5º, inciso LXXII, alínea a).

O artigo , parágrafo único, da Lei nº 9.507/1997, por sua vez, descreveu como de caráter público “todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações”. Pois bem.

Da dicção constitucional, não há dúvidas de que o remédio constitucional é plenamente hábil, a fim de combater a recusa do Estado em fornecer informações relacionadas ao próprio indivíduo em sua subjetividade, que estejam inseridas em bancos de dados geridos pelo próprio Estado em sentido amplo.

Entretanto, o ponto controverso reside na perspectiva da aplicabilidade do habeas data para o conhecimento de informações personalíssimas constantes de bancos de dados privados, ou seja, cujo armazenamento é feito por entidades privadas, mas que detenham, seja pelo conteúdo agregado ou pela capacidade de transmissão à terceiros, o denominado caráter público.

O debate se intensifica considerando que, na atualidade, os dados pessoais de cada indivíduo são comumente armazenados por empresas privadas, as quais, muitas vezes, se negam a disponibilizar tais dados, alegando privacidade e sigilo.

Realizando uma interpretação gramatical do texto constitucional, parcela da doutrina se manifesta no sentido de que o vocábulo “caráter público” retoma a personalidade jurídica da entidade responsável pelo banco de dados e, portanto, que a CRFB/1988, teria restringido o alcance de cabimento do habeas data e a legitimidade passiva às instituições públicas e às entidades privadas quando possuem caráter público, sendo essas as legitimadas passivas da lide.

Nesse diapasão, José Joaquim Gomes Canotilho (2018, p. 520) anota que “como sujeitos passivos são passíveis de habeas data as instituições públicas, da administração direta e indireta, e as instituições privadas que tenham caráter público, sendo este caracterizado quando elas disponibilizem suas informações a terceiros”.

No mesmo sentido estão as considerações feitas por Geisa Rodrigues (2014, p. 61), quando assevera que:

A Constituição Federal é expressa ao considerar as entidades governamentais como legitimadas passivas. Essas entidades seriam, obviamente, as pessoas jurídicas de direito público que integram a administração direta e aquelas de direito privado que prestam serviços públicos e que detenham, por algum motivo, um conjunto de informações sobre as pessoas.

Noutro giro, alguns doutrinadores entendem que a expressão “caráter público” está ligada ao próprio banco de dados (a natureza das informações coletadas), razão pela qual é possível a utilização do habeas data como meio para o seu conhecimento independentemente da entidade responsável pelo armazenamento do conteúdo, seja ela pública ou privada.

Conforme aduz Elpidio Donizetti (2014, p. 185):

O termo caráter público não se relaciona à personalidade jurídica da entidade, mas sim às informações que se pretende conhecer, corrigir ou aditar. Assim, se uma entidade de direito privado guarda consigo informações a respeito de determinada pessoa, as quais podem ser divulgadas a terceiros, presente estará́ o “caráter público” das informações, pressuposto de cabimento do habeas data (...).

No mesmo sentido, Daniel Amorim Assunpção Neves (2013) aduz que “(...) a melhor doutrina bem aponta que o caráter público das informações não se confunde com a natureza pública do órgão que as mantém em cadastro.”. De acordo com o referido autor, o caráter público diria respeito “(...) à possibilidade de as informações se tornarem públicas, no sentido de chegarem ao conhecimento de terceiros. ” (2013).

Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2018, p. 893-894) apontam que:

O legitimado passivo é a pessoa jurídica a que se encontra vinculado o registro ou banco de dados. Pouco importa se pessoa jurídica de direito público ou de direito privado. O que interessa é que o registro ou banco de dados tenha “caráter público” – isto é, que os dados “possam ser transmitidos a terceiros”. A autoridade coatora – tal como ocorre no processo de mandado de segurança – é fonte de prova no processo de habeas data. Não é a legitimada passiva.

Nota-se, contudo, que mesmo quando se considera a hipótese de cabimento do habeas data em face de bancos de dados privados, a doutrina condiciona o manejo do remédio constitucional à capacidade de transmissão das informações à terceiros, levando-se em consideração o texto legal contido no artigo , parágrafo único, da Lei nº 9.507/1997.

A justificativa para tanto reside no fato de que, sendo as informações mantidas de forma lícita, sem que haja divulgação externa, elas serão utilizadas apenas pelo órgão que as detém e, via de consequência, não tem o condão de ferir a privacidade dos indivíduos, restando descaracterizada a pretensão a que se dirige o habeas data.

Independentemente de se considerar que o caráter público, trata dos próprios dados armazenados ou dos órgãos ou entidades produtoras ou depositárias das informações, limita-se a sua abrangência à transmissão à terceiros, e a não da utilização privativa pelo gerenciador do banco de dados.

Entretanto, se uma instituição bancária, exemplificativamente, reúne dados que interessem primordialmente ao próprio cliente e este os utilize posteriormente em atos que repercutem em sua esfera particular, não teria ele o direito subjetivo/constitucional e, portanto, público, de acessar as informações aplicadas para o aperfeiçoamento do ato?

Sendo positiva a resposta, considerando que o habeas data é remédio constitucional destinado ao combate do uso indevido de informações concernentes à pessoa do impetrante, constituindo assim, garantia ao direito fundamental para a efetivação do acesso aos dados personalíssimos e sua retificação, se for o caso, não seria a ação constitucional a via oportuna para o questionamento da negativa de conhecimento das informações armazenadas também por instituições privadas em bancos de dados privados no contexto ora delineado?

Sob o prisma da jurisprudência brasileira, já foi assentada a possibilidade da impetração de habeas data em face do SPC – Serviço de Proteção ao Crédito e do Serasa, dada a propagação corriqueira dos dados mantidos pelas instituições. Nesse sentido: TJMG, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 1.0702.06.283404-1/001, Rel. Des. Guilherme Luciano Baeta Nunes, data do julgamento: 16/10/2007.

Outrossim, no ano de 2015, um caso emblemático foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal, abrindo precedente para um novo olhar sob o âmbito de cabimento do habeas data. Cuida-se do Recurso Extraordinário nº 673.707/MG, que teve como Relator o Ministro Luiz Fux.

Na origem, foi impetrado habeas data objetivando o conhecimento de todas as informações relativas a débitos cadastrados em nome da impetrante, “Regliminas Distribuidora Ltda”, e os pagamentos efetuados que constavam dos bancos de dados de apoio do controle de arrecadação fiscal, utilizados pela Secretaria da Receita Federal (Sistema SINCOR). A ação foi julgada improcedente, sendo interposta apelação em face da sentença.

Em sede recursal, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou provimento à apelação, salientando que o banco de dados objeto da demanda não se enquadraria na hipótese de cadastro público, sendo apenas sistema de controle interno da Secretaria da Receita Federal, mantendo a improcedência do remédio constitucional.

Inconformada, a defesa do impetrante recorreu à Suprema Corte que, por unanimidade de votos e nos termos do voto do Relator, apreciaram o tema 582 da repercussão geral, dando provimento ao recurso extraordinário. Como Relator, o Ministro Luiz Fux registrou que a indigitada norma não tem por objetivo negar ao seu próprio titular o conhecimento das informações que a seu respeito estejam cadastradas junto às entidades depositárias. Aduziu ainda que o SINCOR registra dados de apoio à arrecadação federal, armazenando débitos e créditos existentes acerca dos contribuintes, estando, assim, no conceito mais amplo de arquivos que devem ser entendidos em seu sentido mais lato, abrangendo tudo que diz respeito ao interessado, direta ou indiretamente (BRASIL, RE 673707/MG, 2015).

O acórdão do Supremo Tribunal Federal foi assim ementado:

EMENTA : DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. HABEAS DATA. ARTIGO , LXXII, CRFB/88. LEI Nº 9.507/97. ACESSO ÀS INFORMAÇÕES CONSTANTES DE SISTEMAS INFORMATIZADOS DE CONTROLE DE PAGAMENTOS DE TRIBUTOS. SISTEMA DE CONTA CORRENTE DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL-SINCOR. DIREITO SUBJETIVO DO CONTRIBUINTE. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. O habeas data, posto instrumento de tutela de direitos fundamentais, encerra amplo espectro, rejeitando-se visão reducionista da garantia constitucional inaugurada pela carta pós-positivista de 1988. 2. A tese fixada na presente repercussão geral é a seguinte: “O Habeas Data é garantia constitucional adequada para a obtenção dos dados concernentes ao pagamento de tributos do próprio contribuinte constantes dos sistemas informatizados de apoio à arrecadação dos órgãos da administração fazendária dos entes estatais.” 3. O Sistema de Conta-Corrente da Secretaria da Receita Federal do Brasil, conhecido também como SINCOR, registra os dados de apoio à arrecadação federal ao armazenar os débitos e créditos tributários existentes acerca dos contribuintes. 4. O caráter público de todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações é inequívoco (art. , Lei nº 9.507/97). 5. O registro de dados deve ser entendido em seu sentido mais amplo, abrangendo tudo que diga respeito ao interessado, seja de modo direto ou indireto. (…) Registro de dados deve ser entendido em seu sentido mais amplo, abrangendo tudo que diga respeito ao interessado, seja de modo direto ou indireto, causando-lhe dano ao seu direito de privacidade.(...) in José Joaquim Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lenio Luiz Streck. Comentários à Constituição. Editora Saraiva, 1ª Edição, 2013, p. 487. 6. A legitimatio ad causam para interpretação de Habeas Data estende às pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, porquanto garantia constitucional aos direitos individuais ou coletivas. 7. Aos contribuintes foi assegurado constitucionalmente o direito de conhecer as informações que lhes digam respeito em bancos de dados públicos ou de caráter público, em razão da necessidade de preservar o status de seu nome, planejamento empresarial, estratégia de investimento e, em especial, a recuperação de tributos pagos indevidamente, verbis: Art. 5º. …LXXII. Conceder-se-á habeas data para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, considerado como um writ, uma garantia, um remédio constitucional à disposição dos cidadãos para que possam implementar direitos subjetivos que estão sendo obstaculados. 8. As informações fiscais conexas ao próprio contribuinte, se forem sigilosas, não importa em que grau, devem ser protegidas da sociedade em geral, segundo os termos da lei ou da constituição, mas não de quem a elas se referem, por força da consagração do direito à informação do art. , inciso XXXIII, da Carta Magna, que traz como única ressalva o sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, o que não se aplica no caso sub examine, verbis: Art. 5º.…XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. 9. In casu, o recorrente requereu à Secretaria da Receita Federal do Brasil os extratos atinentes às anotações constantes do Sistema de Conta-Corrente de Pessoa Jurídica-SINCOR, o Sistema Conta-Corrente de Pessoa Jurídica-CONTACORPJ, como de quaisquer dos sistemas informatizados de apoio à arrecadação federal, no que tange aos pagamentos de tributos federais, informações que não estão acobertadas pelo sigilo legal ou constitucional, posto que requerida pelo próprio contribuinte, sobre dados próprios. 10. Ex positis, DOU PROVIMENTO ao recurso extraordinário. (Grifo nosso). (STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 673707/MG. Relator: Ministro Luiz Fux. DJ: 05/08/2015. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307831711&ext=.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.

A problemática discutida na lide do Recurso Extraordinário nº 673.707/MG corroborou a noção de que o banco de dados é que deve ter caráter público e que a natureza jurídica do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações é irrelevante para o cabimento do habeas data, haja vista que a interpretação da expressão “registro de dados” dá-se no sentido mais amplo possível.

Também restou bastante sedimentado, inclusive no voto de outros Ministros, a importância do remédio constitucional, objeto do presente estudo, especialmente para a concretização das liberdades individuais. Nesse sentido, vale destacar as preciosas lições ressaltadas pela Ministra Cármen Lúcia em seu voto, in verbis:

(...) quando o habeas data foi introduzido, esta terminologia foi muito enfatizada pelo professor José Afonso da Silva na Constituinte, porque não havia, com esse nome, com esse instrumento, habeas data. Há em outras legislações, mas não tinha essa conformação. E ele mesmo dizia que, dentro de muito pouco tempo, depois da promulgação da Constituição, seria de parco uso - o Ministro Toffoli lembra agora. Talvez, com esses processos eletrônicos, nós cheguemos facilmente, em algum tempo, a não ter um poder público e órgãos de caráter público, porque alguns não são estatais, atrás dos quais nós, cidadãos, precisemos correr para saber de algo que diz respeito a nós mesmos.

E o professor José Afonso, no período da Constituinte, lembrava isso: Será de pouco uso, porque pensava-se muito naquilo que se tinha guardado e que havia sido um segredo durante o período ditatorial. E nós vemos que não. As sombras continuam permanentemente permeando as estruturas de poder, especialmente no que diz respeito à vida das pessoas. Por isso a importância de um julgamento como esse, para trazer luz cada vez mais. Não é possível que alguém esconda de você mesmo o que diz respeito a você. Quer dizer, até parece um pouco surreal. (...) Aí, eu não sei nem o que diz respeito de mim mesmo. Isso parece um pouco surreal, quando levamos em consideração que estamos em 2015, com uma Constituição que fará 27 anos, com habeas data garantido, e mais, com uma grande mudança na estrutura e no modelo de administração pública brasileira, na qual estou acreditando, que é a lei de acesso a informacao. Quer dizer, se se informa a respeito de tudo, muito mais ao que me diz respeito e que eu preciso ter acesso. Então, esse é um processo no qual fica um pouco esclarecido que a nossa luta pelas liberdades, inclusive pelas individualidades, é cada vez mais necessária e permanente num mundo em que se mostra tanto e se esconde muito mais. (STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 673707/MG. Relator: Ministro Luiz Fux. DJ: 05/08/2015. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=307831711&ext=.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.

O acórdão da Suprema Corte constituiu precedente para a aplicação em casos semelhantes, sendo um verdadeiro leading case, uma vez que delimitou regra importante em torno do cabimento do habeas data. Como salientado pela Ministra Cármen Lúcia, não se pode cogitar que alguém esconda de qualquer indivíduo informações que digam respeito a ele mesmo. O habeas data é instrumento de notória relevância, sendo garantia célebre no contexto da globalização, o que se percebe facilmente ao analisar casos concretos em que se é discutido o acesso à informação.

Para elucidar a importância de um mecanismo tal como habeas data em determinado ordenamento jurídico, vale descrever interessante caso americano que ocorreu no ano de 2013, o “caso Loomis”, relatado no livro brasileiro “Justiça Digital” de autoria de Isabela Ferrari e outros autores que tem se dedicado às problemáticas advindas da tecnologia para o Direito.

Trata-se de caso criminal dos Estados Unidos, no qual foi preso em flagrante, Eric Loomis, no Estado Americano de Wisconsin, pela suposta prática de furto, evasão de agente de trânsito e envolvimento em tiroteio. Ao ser conduzido ao juízo competente, o juiz responsável pelo caso decidiu negar a liberdade provisória com base exclusivamente “no output de um software de avaliação de risco, que era empregado já há algum tempo nas cortes estaduais.” (FERRARI et. al., 2020). Tal programa, “denominado COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), é um software privado, que funciona a partir de um algoritmo secreto, ao qual nem os juízes que o utilizam tem acesso” (FERRARI et. al., 2020).

Sentindo-se impossibilitado em exercer plenamente sua defesa, considerando a ausência de informações acerca de quais dados eram utilizados para a emissão de respostas pelo programa, bem como dos critérios utilizados por ele (já que o juiz havia se baseado unicamente em seus resultados para a decisão), Loomis pleiteou que lhe sejam noticiadas as razões que levaram à conclusão de sua periculosidade. O pleito, todavia, foi negado, senão vejamos:

O seu pedido é negado, e ele recorre à Suprema Corte de Winsconsin. O Corte também nega o acesso às informações, sob a justificativa de que o software é proprietário. Loomis, então, recorre à Suprema Corte dos EUA que, podendo escolher as causas que julga (writ of certiorari) decide que o caso de Loomis não está maduro para decisão. (FERRARI et. al., 2020).

Para piorar o cenário, como aduz Isabela Ferrari (2020):

A situação mostra-se ainda mais sensível quando recebemos a informação de que uma ONG, a ProPublica, fez uma auditagem dos resultados do COMPAS e descobriu que ele estava enviesado contra negros. Então, só por ser negra, uma pessoa submetida à análise do COMPAS teria duas vezes mais chance de ser considerada uma pessoa de alto risco do que uma pessoa branca. Esse era exatamente o caso de Loomis.

Entre os critérios do COMPAS não estaria – é o que se diz –, a questão étnica, mas o cruzamento de outras informações faz com que se chegue ao mesmo resultado. Mas até a ProPublica descobrir isso com a auditagem de dados passados, muitos anos já haviam sido punidos pelo sistema.

Imagine-se, pois, sem desconsiderar as diferenças entre direito brasileiro e o americano, se tal caso tivesse ocorrido no Brasil. Temos uma situação em que dados de um sistema informatizado privado são cedidos ao ente público para, nada mais nada menos, decidir sobre o direito de liberdade de um indivíduo, sendo preponderante ou mesmo exclusivo para a decisão judicial.

Não poderia o flagranteado se valer do habeas data para acesso às suas informações coletadas pelo sistema de auxílio à justiça? Não traria o habeas data a efetivação do acesso à informação, da plenitude da defesa, da garantia de veracidade dos dados coletados, da proteção em face ao racismo e à discriminação, entre outros?

A possibilidade de concretização de direitos fundamentais com a utilização do habeas data é incontestável, o que evidencia a sua importância e a necessidade de seu constante aprimoramento para atender às evoluções da sociedade.

Diante do exposto, pode-se dizer que não obstante as divergências no tocante ao caráter público mencionado na CRFB/1988 e repetido pela Lei nº 9.507/1997, a doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, vêm compreendendo que para o manejo do habeas data é necessário que o banco de dados tenha natureza pública, pouco importando se o ente responsável pela sua administração seja público ou privado.

Tal visão incorpora uma interpretação ampla quanto ao cabimento do remédio constitucional, de forma acertada. A dimensão dada aos registros que guardam informações de interesse pessoal, para fins do habeas data, deve ser abrangente, concedendo espaço para uma interpretação extensiva, na medida em que se deve preservar ao máximo a privacidade dos indivíduos e o direito de acesso às informações, bem como o aspecto multidisciplinar do habeas data, que permite a concretização dos mais diversos direitos e garantias.

Por fim, ainda há muito que se discutir quanto ao que vêm a ser caráter público. Em que pese a delimitação legal feita pelo parágrafo único do artigo da Lei nº 9.507/1997, o surgimento de casos concretos com hipóteses diversas para aplicação do habeas data, bem como o aumento descomunal de bancos de dados informatizados e gerenciados por empresas privadas, trazem à lume várias discussões relacionadas ao direito de acesso às informações, consagrado constitucionalmente, aos direitos de personalidade, a intimidade privada, dentre outros, entrelaçados com a ação constitucional do habeas data.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida humana está em constante mutação diante das evoluções tecnológicas e repensar o papel do habeas data, nesse contexto, é imprescindível. O estudo de um remédio constitucional como o habeas data pressupõe o exame das razões que levaram o constituinte a incorporá-la como norma fundamental do Estado, mas não só. É necessário primar por uma interpretação histórico-evolutiva, considerando as mudanças da sociedade ao longo do tempo.

A problemática abordada e os resultados obtidos constituíram apenas breves apontamentos acerca de uma temática que precisa ser explorada e mais debatida pelo ordenamento jurídico. No entanto, algumas considerações podem ser tecidas.

A ideia de caráter público não pode se confundir com o ente que detém informações pessoais, devendo se relacionar com a natureza dos dados armazenados. Em razão do processo tecnológico que vem modificando a guarda e processamento de dados, já não é suficiente garantir o acesso às informações coletadas apenas pelo Estado. Primeiro porque ele vem atuando frequentemente com o setor privado, o qual colabora na prestação dos serviços públicos e auxilia a Administração Pública. Segundo pelo próprio crescimento descomunal de bancos de dados geridos por entes privados.

A configuração do caráter público não deve ser condicionada apenas pela transmissão de dados a terceiros, pois tal visão reduz o aspecto amplo do habeas data. Para melhor atender a concretização de diversos direitos, notadamente os fundamentais de ordem subjetiva, a mera possibilidade de repasse ou utilização dos dados, mesmo que remotamente, já deve assegurar a impetração do habeas data. Ora, qual a garantia de que os dados hoje não transmitidos a terceiros não o possam ser no futuro?

Além disso, devem ser consideradas as repercussões oriundas do armazenamento de dados na esfera particular dos indivíduos. Determinada informação pode não ser repassada a outrem mas usada oportunamente em desfavor de seu próprio titular. Com a impetração de um habeas data, eventuais danos à esfera particular podem ser reprimidos.

Por fim, a importância do remédio constitucional em comento não pode ser olvidada. Além do caráter processual, o habeas data deve ser concebido como garantia e direito fundamental. Está no rol de direitos e garantias fundamentais da CRFB/88, materializa e dá concretude a diversos direitos. Garante, de um lado, o acesso à informação pessoal, a sua retificação e possibilidade de anotações, e, por outro, resguarda o conhecimento de informações individuais, razão pela qual deve ser consagrado como direito em si, evitando-se visão reducionista com fins ao atingimento de suas finalidades.

Uma ação constitucional como o habeas data, especialmente no contexto atual de globalização, é extremamente importante para resguardar direitos fundamentais e humanos pois garante que os indivíduos tenham acesso aquilo que diz respeito a sua personalidade, aquilo que diz respeito a sua esfera íntima e mais sensível, auxiliando sua defesa frente a quaisquer violações.

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  1. * Graduada em Direito pela Universidade de Itaúna (UIT). Pós-graduanda em Direito Púbico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Advogada.

  2. ** Graduado em Direito e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e Advogado. Consultor e Palestrante.

  3. Isabela Ferrari et. al. (2020) pontua que: “Vivemos um momento especial, que se convencionou denominar Quarta Revolução Industrial. Nesses ‘tempos estranhos’, a tecnologia vem mudando rapidamente a sociedade em que vivemos. São três os fatores que respondem pela maior parte dessa mudança: o aumento exponencial da capacidade computacional, a difusão de técnicas de inteligência artificial, e o advento do big data.”.

  4. Segundo Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2020): “O Direito Administrativo tem sofrido profundas transformações nos últimos anos, sendo possível destacar, exemplificativamente, as seguintes mutações e tendências: (...) b) Relativização de formalidades e ênfase no resultado: a busca pela eficiência administrativa, compreendida como a efetivação dos direitos fundamentais, tem justificado a relativização de formalidades desproporcionais, o que evidencia a substituição da Administração Pública burocrática e formalista por uma Administração Pública gerencial e de resultados. (...) d) Consensualidade e participação: ao invés da atuação unilateral e impositiva da vontade administrativa, a decisão estatal deve ser construída, na medida do possível, a partir do consenso (exs.: mediação, acordos, parcerias) e da participação social (exs.: consultas e audiências públicas), o que garante maior legitimidade democrática à Administração. (...)”.

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