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8 de Junho de 2024
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    Hediondez e Crimes Militares

    Publicado por Leticia Roque
    há 10 meses

    Resumo do artigo

    O presente artigo visa tratar da importância da inclusão dos crimes militares no rol legal dos crimes hediondos. Nesse contexto, demonstra a relevância da aprovação do Projeto de Lei 6.691/09, no intuito de garantir a aplicação dos princípios constitucionais da legalidade e a equivalência de tratamento jurídico aos que perpetuam uma mesma conduta ilícita.

    1 INTRODUÇÃO

    O presente artigo pretende demonstrar que um crime militar, ainda que com mesma definição legal de um crime comum considerado hediondo, possui enquadramento e tratamento diferenciado tão somente em virtude da falta de previsão legal.

    Destaca-se que o escopo é aferir a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 6.691/09, pelo qual se pretende incluir crimes militares semelhantes aos previstos no Código Penal no rol de crimes hediondos, a fim de sanar eventuais afrontas a direitos e princípios basilares do estado democrático de direito.

    Por fim, cabe consignar que o tema é pertinente, porquanto contribui para o debate jurídico ao enfatizar o tratamento diverso despendido a crimes de igual definição tão somente em virtude da falta de previsão legal. Percebe-se um encontro de dois paradigmas: a necessidade de equiparação de um crime em relação ao outro a fim de determinar um tratamento isonômico ou o prevalecimento de condições específicas a justificar tratamento diverso em situações semelhantes.

    2 CRIME MILITAR

    O conceito geral de crime pode ser definido, segundo Capez [1], a partir de seus aspectos material, formal ou analítico. Quanto ao primeiro aspecto, define-se como a conduta humana que, propositada ou descuidadamente, lesa ou coloca em perigo bens jurídicos essenciais à existência da paz e da coletividade; pelo segundo, significa o que a lei define como tal; em relação ao terceiro, determina-se, de acordo com duas concepções: a bipartida, pela qual crime seria todo fato típico e ilícito, e a tripartida, que acrescenta o elemento da culpabilidade.

    Já o crime militar, embora também possa ser analisado de acordo com esse conceito, detém especificidades, de modo que para sua classificação, a doutrina estabelece diversos critérios que devem ser adotados: ratione materiae, que diz respeito à necessária averiguação da qualidade militar no sujeito e no ato praticado; ratione personae, que traz relação com o fato do sujeito ativo ser militar; ratione loci, o qual considera o lugar do crime; ratione temporis, que tem no tempo (guerra ou paz) o critério para enquadramento; e ratione legis que determina ser crime militar aquele que o Código Castrense prevê como tal.

    Em relação a esses critérios, cumpre salientar que Código Penal Militar adota o critério ratione legis. Entretanto, não significa que os demais critérios não se encontram presentes na disposição legal militar, pelo contrário, são necessários para caracterização do ilícito militar, consoante exposto nas alíneas do artigo e do artigo 10º, ambos do Código Penal Militar.

    Nesse diapasão, Assis assevera que crime militar “é toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares. Distingue-se da transgressão disciplinar porque esta é a mesma violação, porém na sua manifestação elementar e simples” [2].

    Assim, crime militar pode ser conceituado como um ato antijurídico necessariamente previsto no Código Castrense, que acarreta na lesão de bens ou interesses das instituições militares e sua própria existência, bem como de suas atribuições legais e seu fundamento, além do particular aspecto atrelado à disciplina, hierarquia, proteção da autoridade militar e ao serviço militar.

    Definido o crime militar, cumpre ressaltar que tal delito compreende duas espécies: os crimes propriamente militares e os impropriamente militares.

    Quanto aos crimes propriamente militares, o artigo , inciso LXI, da Constituição Federal faz referência; entretanto, nenhum outro dispositivo legal que tratasse da regulamentação penal militar conceituou, cabendo à doutrina efetuar tal definição.

    Nesse curso, Giuliani entende que tais delitos podem ser definidos como aqueles que encontram previsão exclusiva no Código Penal Militar e que somente podem ser praticados pelo militar, in verbis:

    Não há divergência quanto aos chamados crimes propriamente militares aqueles cuja prática não seria possível, senão por militar, porque essa qualidade do agente é essencial para que o fato delituoso se verifique. É aquele que só é previsto no Código Penal Militar e que só pode ser praticado por militar, violando a disciplina, hierarquia, o dever ou serviço militar. Há, como exemplo, o delito de deserção, previsto no art. 187 do CPM. [3]

    De outro lado, os crimes impropriamente militares são condutas tipificadas tanto no Código Penal Militar quanto no Código Penal Comum e que podem ser praticados pelo militar e, inclusive, pelo civil, se tornando militares por se enquadrarem dentre as diversas hipóteses enumeradas no inciso II do art. do Código Penal Militar, consoante lesiona Nucci:

    [...] os que possuem dupla previsão, vale dizer, tanto no Código Pena Militar quanto no Código Penal comum, ou legislação similar, com ou sem divergência de definição. Ou também o delito previsto somente na legislação militar, que pode ter o civil por sujeito ativo. [4]

    3 CRIMES HEDIONDOS

    O artigo , inciso XLIII, da Constituição Federal apenas fez referência aos crimes hediondos. A previsão constitucional surgiu em virtude de um contexto exacerbado de aumento da violência, que gerou um movimento social impulsionado pelo sentimento de insegurança, aliado a uma descrença no sistema punitivo, cenário decisivo para o surgimento e aprovação da Lei nº 8.072/90 ( Lei dos Crimes Hediondos).

    O crime hediondo é um delito comum que passou a ser assim considerado em virtude de lei. Em outras palavras, trata-se de um delito que o legislador rotulou como tal, sem estar atrelado a um aspecto repugnante, horroroso ou depravado, consoante esclarece Moraes:

    [...] crime hediondo, no Brasil, não é o que se mostra repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execuções, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer critério válido, mas o crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo legislador ordinário. [5]

    Nesse contexto, para definição do que são crimes hediondos, o legislador preferiu a adoção de um critério legal ao invés de formular um conceito, o que retira do julgador a possibilidade de, no caso concreto por ele analisado, “deixar de considerar hediondo um crime que conste da relação legal, ou tratar como tal algum delito que não esteja ali enumerado, por mais grave que seja” [6].

    Assim, os crimes hediondos são aqueles previstos no rol da Lei nº 8.072/90, a qual no seu artigo considera como hediondos alguns crimes do Código Penal e, conforme parágrafo único, o crime previsto na Lei nº 2.889/56, bem como destaca que existem outros crimes que são equiparados a hediondos.

    De outro viés, questiona-se a ausência de definição legal como hediondos para alguns crimes, seja em virtude de sua semelhança com os demais abarcados, seja pela gravidade intrínseca da conduta narrada no tipo, como os crimes previstos do Código Penal Militar, mais especificamente alguns tipos em seu corpo que são equivalentes ao Código Penais comum e considerados hediondos, que, por não estarem inseridos no rol taxativo da lei, não recebem tratamento como hediondo.

    Acerca dessa exclusão, Costa assevera que:

    Como no artigo da Lei nº 8.072/90 houve referência expressa ao Decreto-Lei 2.848/40 no que diz respeito à conceituação de crimes hediondos, aqueles crimes que tiverem equivalente no Código Penal Militar não serão considerados hediondos, como é o caso, por exemplo, do estupro, previsto no artigo 232 do Decreto-Lei 1.001/69 – CPM. [7]

    No mesmo sentido, Franco assim se manifestou:

    O legislador, no texto da lei nº 8.072/90, arrolou os crimes que considerou hediondos, colocou o respectivo artigo de cada crime (v. G. - Latrocínio - art. 157, § 3º, in fine) e a final apontou a lei que se referem os artigos mencionados, isto é, o Código Penal Comum - Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - e a lei n. 2.889/56 - referente ao genocídio. Assim, deixou a descoberto toda a legislação penal militar, de maneira que os crimes nela previstos não são considerados hediondos, até porque inexiste analogia in malam partem em Direito Penal, principalmente no tocante às normas que descrevem crimes ou impõe sanções. [8]

    Diante desse quadro, tem-se que, por conta do legislador adotar o critério legal para definição dos crimes hediondos, apenas aqueles elencados na Lei nº 8.072/90 podem ser assim considerados, o que acarreta em certas incoerências quanto alguns tipos não listados, como é o caso de alguns delitos militares.

    4 A IMPORTÂNCIA DA PREVISÃO DOS CRIMES MILITARES NO ROL DE CRIMES HEDIONDOS

    Diante do cenário de adoção do critério legal para definição dos crimes hediondos, o Projeto de Lei nº 6.691/09 pretende qualificar como hediondos determinados crimes previstos no Código Penal Militar, por correspondência com os crimes descritos no art. da Lei dos Crimes Hediondos.

    Nesse diapasão, por uma questão de atenção aos princípios da legalidade e da isonomia, a repreensão das condutas previstas no Código Penal Militar deve ocorrer com o mesmo rigor da legislação penal comum.

    Cumpre salientar que, o referido Projeto de Lei visa encerrar um problema que, atualmente, assola o universo jurídico, que se encontra, principalmente, vinculado à observância da legalidade e do tratamento isonômico que se deve dar aos indivíduos, independentemente de suas condições pessoais. Ao se possibilitar que duas condutas semelhantes sejam consideradas penalmente de formas distintas, implica, necessariamente, em beneficiar alguém em detrimento de outro sem que haja motivo razoável para tanto, não podendo tal contexto se perpetuar pela simples falta de inclusão específica no rol taxativo previsto em lei.

    Em relação a esse tratamento distinto, Franco tece severas críticas, sustentando que o legislador afrontou o princípio da legalidade quando deixou de observar o princípio da igualdade e, assim, rotular igualmente, como crime hediondo, os delitos de igual denominação no Código Penal Militar. Além disso, asseverou que tal contexto implica no estabelecimento de uma diferença arbitrária entre o agente civil e o militar, a qual respinga em diversos aspectos penais desde a própria cominação da pena até o regime penitenciário [9].

    Ademais, vige no ordenamento jurídico-penal o princípio que veda a analogia em in malam partem, o que inviabiliza que se considere hediondo um crime não previsto dentre aqueles elencados como tal, ainda que possua igual nomenclatura e redação.

    Pode-se mencionar, ainda, que o caso ora analisado representa uma situação ainda mais absurda se for considerado que, em crimes castrenses, o agente do crime é um militar. O militar deve efetuar o controle da criminalidade a fim de garantir a segurança e a ordem pública e, não efetivar as condutas delituosas, hipótese em que, pela condição pessoal que lhe toca, sua punição merece, no mínimo, condição de igualdade com o cidadão civil.

    Destarte, acima de tudo, a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 6.691/09 está em conceder tratamento igualitário aos agentes que efetuam a mesma prática delituosa, mas que, por falta de previsão legal, encontram tratamentos antagônicos, ferindo princípios constitucionais basilares.

    5 CONCLUSÃO

    No artigo busco-se analisar os crimes militares e os crimes hediondos, mais precisamente em relação à questão da ausência de definição de determinados crimes militares como hediondos, observaram-se duas linhas de raciocínio: uma, pela impossibilidade de definição de crimes militares como hediondos por ausência de previsão legal e, outra, pela importância da aprovação do Projeto de Lei nº 6.691/09 com intuito de proporcionar tratamento igualitário pela prática da mesma conduta.

    Averiguou-se que a crime hediondo, no Brasil, é determinado de acordo com um critério legal, sendo demonstrada a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 6.691/09, na medida em que a Constituição Federal estabeleceu o regramento diferenciado aos crimes hediondos, mas a Lei nº 8.072/90 ao determinar o rol de crimes hediondos, omitiu-se no momento de mencionar crimes com idêntica definição no Código Penal Militar.

    Diante do exposto, é possível concluir que a aprovação do referido Projeto de Lei é medida que se impõe, tendo em vista a necessidade de observância dos princípios da legalidade e do tratamento isonômico, bem como a vedação da analogia in malam partem e a necessidade de punição penal equânime dos agentes de crimes militares justamente por se tratar de indivíduos que possuem o dever de garantir a segurança e a ordem pública.

    REFERÊNCIAS

    ASSIS, Jorge César. Comentários ao Código Penal Militar. 5.ed. Paraná: Juruá Editora, 2011.

    BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição.htm>. Acesso em: 08 ago 2023.

    ______. Projeto de Lei 6.69190. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2348508>. Acesso em: 08 ago 2023

    CAPEZ, Fernando. Direito penal simplificado: parte geral. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

    COSTA, Davi André; EBERHARDT, Marcos. Leis penais e processuais penais comentadas. v.1. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010.

    FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Notas sobre a Lei 8.072/90. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

    GIULIANI, Ricardo Henrique Alves. Direito Penal Militar. 3 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.

    MORAES, Alexandre; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2006.

    NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.


    [1] CAPEZ, Fernando. Direito penal simplificado: parte geral. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.94.

    [2] ASSIS, Jorge César. Comentários ao Código Penal Militar. 5.ed. Paraná: Juruá Editora, 2011, p.39.

    [3] GIULIANI, Ricardo Henrique Alves. Direito Penal Militar. 3 ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 44.

    [4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 46.

    [5] MORAES, Alexandre; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 59.

    [6] COSTA, Davi André; EBERHARDT, Marcos. Leis penais e processuais penais comentadas. v.1. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 12.

    [7] COSTA, Davi André; EBERHARDT, Marcos. Leis penais e processuais penais comentadas. v.1. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p. 14.

    [8] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Notas sobre a Lei 8.072/90. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p.137.

    [9] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.99.

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