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Cortes Superiores e Cortes Supremas - Ed. 2023

Cortes Superiores e Cortes Supremas - Ed. 2023

Parte IV. O STF e o Stj Como Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente

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Sumário:

O STF e o STJ, como cortes responsáveis por dar a última palavra a respeito da interpretação da Constituição e da legislação infraconstitucional federal na ordem jurídica brasileira, devem ser pensados como Cortes Supremas , a fim de que se possa reconstruí-los em termos conceituais, estruturais, funcionais e eficaciais a partir de um quadro teórico capaz de fornecer soluções coerentes aos problemas ligados à interpretação judicial no Estado Constitucional. Nessa linha, o STF e o STJ devem ser pensados como cortes de interpretação e não como cortes de controle , como cortes de precedentes e não como cortes de jurisprudência , tendo autogoverno e sendo dotados de meios idôneos para consecução da tutela do direito em uma dimensão geral de forma isonômica e segura .

1. O STF e o STJ como Cortes Supremas. Pressupostos teóricos

O STF e o STJ não podem ser pensados como cortes que apenas declaram o sentido prévio, intrínseco e unívoco da Constituição e da legislação infraconstitucional federal. A potencial equivocidade da linguagem 1 – fruto da ambiguidade, implicabilidade, superabilidade e abrangibilidade dos enunciados textuais – impede que se considere o processo de interpretação do Direito como algo neutro e cujo resultado é unívoco. O STF e o STJ, pelo contrário, são cortes que outorgam sentido à Constituição e à legislação infraconstitucional federal e visam a reduzir a equivocidade dos enunciados linguísticos em que o Direito comumente é vazado. 2 São cortes, em última análise, que decidem o sentido da Constituição e da legislação infraconstitucional federal.

Isso significa duas coisas da mais alta importância.

A primeira: a atividade de interpretação é uma atividade de reconstrução . Não se trata de simples atividade de descoberta lógico-cognitiva , nem de pura construção normativa. 3 Interpretar implica individualizar, valorar e decidir. Sob esse aspecto conceitual, a propósito, inexiste qualquer diferença entre a interpretação da Constituição e da interpretação da legislação infraconstitucional federal – em ambos os casos é necessário individualizar sentidos possíveis, valorá-los e escolher aquele que encontra maior suporte na ordem jurídica. 4 Sendo a linguagem potencialmente equívoca, interpretar significa ao fim e ao cabo decidir a respeito da melhor interpretação possível que deve ser dada à legislação em um determinado contexto. Assim, longe de ter um papel periférico na teoria do Direito, a interpretação ocupa um posto central na experiência jurídica contemporânea, 5 tendo em conta que o significado normativo não é prévio ao processo de interpretação. 6 Imaginar que o processo interpretativo não implica valorações e, escolhas do intérprete serve apenas para deixar sem qualquer teorização e longe da possibilidade de qualquer tipo de controle jurídico e social as inúmeras decisões tomadas ao longo da interpretação . Vale dizer: serve apenas como um álibi teórico . É por essa razão que a doutrina observa que o formalismo interpretativo oitocentista – notadamente da Ecole de l´Exégèse e da Begriffsjurisprudenz – deixa o juiz tão livre para decidir quanto o antiformalismo na sua feição mais radical ligada ao movimento do direito livre – notadamente da libre recherche scientifique e da Freirechtsbewegung – na medida em que ambos não viabilizam a tematização das valorações e escolhas inerentes ao processo interpretativo. 7

Vale dizer: a atividade interpretativa impõe a outorga de sentido a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica. O resultado da interpretação não é obtido por simples operações lógicas, mas decorre da individualização de sentidos possíveis, valorações e decisões entre os significados concorrentes que devem ser atribuídos aos enunciados linguísticos. Para tanto, devem o STF e o STJ, cada qual circunscrito ao âmbito de sua competência constitucional, justificar lógico-argumentativamente suas decisões , outorgando adequado sentido ao material fático-jurídico da causa e, muito especialmente, aos princípios, regras e postulados que têm o dever de interpretar e observar para viabilização da unidade do Direito. 8 A justificação judicial , em outras palavras, é o núcleo-duro da atividade do STF e do STJ, a partir da qual as partes podem aferir a fundamentação e a sociedade civil e demais cortes judiciárias podem reconhecer o precedente de seus julgados.

A segunda: inexiste uma única resposta correta para problemas interpretativos – nem para os chamados casos fáceis (easy cases), nem para os chamados casos difíceis (hard cases). 9 Toda interpretação depende de escolhas juridicamente guiadas que devem ser realizadas pelo intérprete – o que obviamente não infirma a possibilidade de um discurso justificativo racional intersubjetivamente controlável capaz de conduzir à adequada interpretação da legislação. 10 A alocação de um caso dentro da categoria fácil ou difícil, como é evidente, por si só depende de prévia valoração e escolha e, pois, de uma decisão que envolve interpretação. 11 Isso quer dizer que do ponto de vista do sistema de distribuição de justiça o sentido da norma em todos os casos deve ser decidido por quem está legitimado institucionalmente para tanto , isto é, por quem a Constituição determina semelhante atribuição. Em nossa ordem constitucional, é o STF e o STJ que devem, mediante um processo lógico-argumentativo, afirmar qual é o significado que deve ser dado à Constituição e à legislação infraconstitucional federal nos mais diversos contextos fático-jurídicos em que essas devem ser atuadas (arts. 102, III , e 105, III , da CF/1988).

A atividade interpretativa que culmina com a afirmação de um resultado normativo é fruto de um processo lógico-argumentativo que tem sua expressão material na justificação judicial de uma determinada decisão. Trata-se de uma concepção de interpretação jurídica orientada em termos gerais para promoção do império do Direito (legality) mediante uma atividade guiada pela racionalidade (rationality). 12 A justificação judicial é o meio pelo qual se pode aferir a racionalidade da atividade interpretativa e do seu resultado . A atividade interpretativa é racional se apresenta justificação interna e justificação externa. 13 O resultado da interpretação é racional se é universalizável e coerente .

De um lado, uma decisão apresenta justificação interna (interne Rechtfertigung) sempre que o dispositivo decorre logicamente da fundamentação e que essa contempla todos os fundamentos arguidos pelas partes. Na justificação interna, portanto, interessa a correção lógica e a completude da motivação da decisão. 14 Daí que a justificação interna é uma justificação formal que responde à necessidade de não contradição no discurso jurídico. 15 É o campo em que a lógica atua no processo interpretativo, 16 no qual o julgador raciocina de forma dedutiva para solução das questões. 17

De outro, uma decisão tem justificação externa (externe Rechtfertigung) sempre que as premissas adotadas na decisão são adequadas . A justificação externa , portanto, concerne à adequação das escolhas das premissas empregadas na justificação interna. Nessa linha, constitui uma justificação material que responde à necessidade de adoção de razões suficientes para tomada de decisão, 18 envolvendo o exame tanto de normas como de fatos, 19 na medida em que entre ambos existe uma absoluta implicação. 20 É o campo em que a argumentação atua no processo interpretativo, 21 no qual o julgador individualiza, valora e decide de forma não dedutiva. 22

Como campo próprio da argumentação jurídica, entram em consideração na justificação externa, por exemplo, as normas jurídicas, as normas sobre interpretação, as normas preferenciais argumentativas e as construções doutrinárias empregadas na decisão. 23 Em outras palavras, encontra-se no âmbito da justificação externa o material que se encontra à disposição do intérprete para consecução do processo interpretativo. No que concerne às normas jurídicas, impende observar que quanto maior a abertura semântica , maior a justificativa que deve ser empreendida para sua aplicação. Isso vale para todas as espécies normativas, mas ganha especial relevo no direito brasileiro para a aplicação dos princípios jurídicos e para concretização de termos vagos empregados pelo legislador. 24 Em todo e qualquer caso, o processo argumentativo que justifica as escolhas ligadas às premissas do raciocínio judiciário deve ser orientado por códigos interpretativos , os quais fornecem diretrizes primárias , que servem para atribuição de significado a enunciados textuais (por exemplo, diretrizes para interpretação linguística, para interpretação da intenção do legislador e para interpretação teleológica), diretrizes secundárias , que servem para disciplina e valoração da utilização das diretrizes primárias (por exemplo, diretrizes seletivas e procedimentais, dentre as quais se destacam as preferenciais) e diretrizes terciárias , que servem para outorgar uma direção ao processo interpretativo como um todo (por exemplo, diretriz que entende que o fim da interpretação está na promoção da segurança jurídica). 25 Dentre as diretrizes secundárias de maior importância para o processo argumentativo encontram-se aquelas que erigem diretrizes preferenciais – que, por exemplo, determinam a prevalência prima facie , nesta ordem, de argumentos linguísticos (linguistic arguments), sistemáticos (systemic arguments) e teleológicos (teleological-evaluative arguments). 26 Vale dizer: argumentos linguísticos são preferíveis a argumentos sistemáticos , argumentos sistemáticos são preferíveis a argumentos teleológicos e assim por diante. 27

O resultado da interpretação é racional sempre que a justificação guarda em si a capacidade de universalização (“universalization in justification”). 28 Como enfaticamente observa a doutrina, “there is no justification without universalization”. 29 Em outras palavras, a justificação tem que ter condições de ser replicável para os casos futuros idênticos ou semelhantes, isto é, tem de ser idônea para servir como precedente . Sem replicabilidade (replicability) da justificação, não há objetividade e imparcialidade na interpretação 30 – e isso obviamente independe da efetiva vigência de um sistema de precedentes obrigatórios por força de uma norma específica de direito positivo , sendo uma simples decorrência do caráter lógico-argumentativo do Direito. 31

Por fim, o produto da interpretação tem de ser coerente . A interpretação tem de ser capaz de ser reconduzida a “um conjunto, internamente consistente, formal e materialmente, de princípios e regras” amalgamadas por “princípios fundamentais” comuns. 32 A coerência exige uma sistematização circular (“as normas superiores condicionam as inferiores, e as inferiores contribuem para determinar os elementos das superiores”), complexa (“não há apenas uma relação vertical de hierarquia, mas várias relações horizontais, verticais e entrelaçadas entre as normas”) e gradual (“a sistematização será tanto mais perfeita quanto maior for a intensidade da observância dos seus vários critérios”) de normas jurídicas. 33

A coerência é uma conexão de sentidos que se estabelece entre as normas que pode ser formal ou substancial . A coerência formal existe quando há uma relação normativa consistente (em que inexiste contradição) e completa (em que há inteireza e coesão). A ausência de quaisquer desses elementos leva à ausência de coerência. A coerência substancial existe quanto maior for a dependência recíproca e afinidade entre as normas. Ao contrário do aspecto formal da coerência, o seu aspecto substancial permite graduação. Vale dizer: enquanto a coerência formal existe ou não, a coerência material pode existir em maior ou menor medida. 34

Racionalidade, universabilidade e coerência na justificação visam a assegurar a adequação da interpretação. 35 Em outras palavras, isto quer dizer no fundo que a correção da interpretação é assegurada, de um lado, pela racionalidade da atividade de justificação e, por outro, pela capacidade de universalização e pela coerência do seu resultado.

A propósito, o conceito de integridade utilizado pelo legislador no art. 926 não serve para outorgar racionalidade à interpretação. Como é sabido, a integridade constitui um meio para a obtenção de uma resposta correta para os problemas jurídicos – com o que obviamente pressupõe a existência de uma única resposta correta como o objetivo da interpretação judicial. 36 Ocorre que a natureza duplamente indeterminada do direito 37 e o seu papel de instância reguladora voltada para a necessidade de assegurar um ambiente de tolerância em relação aos desacordos sociais a partir de critérios capazes de identificar o que é o Direito que marcam as democracias constitucionais contemporâneas 38 sugerem justamente a inexistência de uma resposta que possa ser qualificada como unívoca para os problemas jurídicos. Em outras palavras, o fim visado pelo meio não é obtenível – pelo menos não dentro da justiça dos homens. Daí surge naturalmente a pergunta pela sua efetiva utilidade. 39

Portanto, para atuarem de forma adequada, dando unidade ao Direito, o STF e o STJ devem trabalhar lógico-argumentativamente, interpretando de maneira justificada, universalizável e coerente os enunciados constitucionais e infraconstitucionais federais. É a partir desse método interpretativo que essas cortes poderão fornecer boas razões para pacificar o entendimento judicial a respeito de determinada questão e para desenvolver o direito brasileiro, ofertando para o sistema verdadeiros precedentes capazes de promover a igualdade e segurança jurídica para toda a sociedade civil. Isso significa que o problema da fidelidade ao Direito , portanto, passa a ser um problema fundamentalmente dinâmico e metodológico. 40 Vale dizer: a partir do exato momento em que essas cortes começarem a atuar sistematicamente dessa maneira é que serão capazes de outorgar sentido adequado à legislação e de fazê-lo conhecido e efetivo . Como parece evidente, não é possível promover a unidade do Direito sem uma “ common interpretation of the law” 41 pelo STF e pelo STJ, dado que sem interpretação não há sentido normativo que deve ser observado dentro da ordem jurídica. A produção de sentidos normativos de forma racional – justificada, universalizável e coerente – constitui elemento essencial para promoção da tutela dos direitos no Estado Constitucional.

É claro que isso não quer dizer que o STF e o STJ atuam como legisladores na nossa ordem constitucional. A diferença entre o legislador e o juiz não está em que o primeiro cria a norma e o segundo apenas a declara – como pressupunham a “ideology of bound judicial decision-making ” 42 e a doutrina processual civil italiana da primeira metade dos Novecentos, 43 aceita por muito tempo pela doutrina processual civil brasileira sem qualquer filtro crítico. 44 Isso porque a norma é o resultado da interpretação , não o seu pressuposto. O legislador outorga textos que, interpretados judicialmente, geram normas jurídicas. A propósito, a diferença entre o legislador e as Cortes Supremas também não está em que o primeiro pode atuar de forma positiva e negativa, ao passo que os segundos só poderiam atuar de forma negativa (como legisladores negativos). 45 E isso por duas razões: a uma, porque a atuação interpretativa dessas cortes é uma atuação reconstrutiva e, portanto, de definição positiva de normas a partir de textos legislativos; a duas, porque existem situações jurídicas jurisdicionalizáveis em que a aplicação da norma que prevê a igualdade de todos perante o Direito exige igualmente atuação positiva dessas cortes. 46

Na verdade, a diferença entre a legislação e a jurisdição está em que o legislador propõe enunciados linguísticos sem qualquer necessidade de justificação, ao passo que o juiz só pode decidir reconstruindo sentidos normativos mediante justificação. Portanto, é a necessidade de justificação para tomada de decisões que distingue a legislação da jurisdição no Estado Constitucional. 47 Dentro dessa linha, é evidente que o STF e o STJ não atuam como legisladores , na medida em que não podem decidir sem justificação (art. 93, IX , da CF/1988). Ambos, contudo, colaboram estreitamente com o legislador para promoção do império do Direito. É tarefa do STF e do STJ outorgar unidade ao Direito no Brasil mediante adequada interpretação da Constituição e da legislação, o que implica inevitavelmente individualizar, valorar e decidir a respeito de sentidos possíveis em que os enunciados linguísticos podem ser compreendidos.

2. A estrutura do STF e do STJ na Ordem Constitucional

2.1. Composição

A indicação política dos Ministros e das Ministras do STF e do STJ afina-se com a orientação largamente dominante que resulta do direito comparado a respeito da composição das Cortes Supremas. 48 O fato de semelhante decisão ser compartilhada entre o Presidente da República e o Senado Federal também entra nessa tendência. Nesse particular, o STF e o STJ apresentam-se em perfeita sintonia com o modelo de Corte Suprema.

O STF é composto de onze Ministros e Ministras, cuja nomeação se dá pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Para ser indicado como Ministro ou Ministra do STF é preciso ser cidadão com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco, com “notável saber jurídico e reputação ilibada” (art. 101 da CF/1988). O STJ é composto de, no mínimo, trinta e três Ministros e Ministras, cuja nomeação se dá pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Para ser indicado como Ministro ou Ministra do STJ, é preciso ser brasileiro com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco, com “notável saber jurídico e reputação ilibada” (art. 104 da CF/1988).

A exigência de notável saber jurídico e de reputação ilibada , aliada a uma idade mínima para nomeação, coloca em evidência o fato de a função de julgar, especialmente no âmbito do STF e do STJ, exigir mais do que formação técnica apurada na área do Direito. E isso por uma razão muito simples: como Cortes Supremas, esses tribunais estão encarregados de enfrentar e dar a última palavra sobre questões eticamente sensíveis , além de terem de cotidianamente valorar e escolher entre significados concorrentes dos enunciados linguísticos para outorga de unidade ao Direito. Pela Constituição da Republica, portanto, para integrar o STF e o STJ é exigido não só notável saber jurídico, que é intuitivamente fundamental para compreensão e aplicação do Direito, mas também reputação moral ilibada, a fim de assegurar a necessária prudência no processo de tomada de decisões. 49 Também nesse particular os requisitos para compor o STF e o STJ acompanham a orientação majoritária que emerge do direito comparado. 50

2.2. …

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25 de Maio de 2024
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