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Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinário - Ed. 2023

Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinário - Ed. 2023

Parte III. Jurisprudência, Súmulas e Precedentes Vinculantes

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Sumário:

9. A relevância da jurisprudência, das súmulas e dos precedentes no direito brasileiro contemporâneo

Sabe-se que, há muito tempo, foi abandonada a ideia de que o Direito se confunde com a lei. 1

O Direito é o que resulta da combinação da lei (em sentido lato), da jurisprudência (modo como o Judiciário interpreta a lei) e da doutrina (que consiste em reflexões por vozes autorizadas sobre a lei, sobre a jurisprudência e sobre aquilo que o direito deveria ser).

Portanto, da interpretação o direito não pode prescindir. À lei e aos princípios precisa ser atribuído um sentido. 2 Segundo Peter Häberle, não há norma jurídica, há apenas norma jurídica interpretada – “Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen”. 3

O intérprete oficial – ou “autêntico”, para se referir à expressão utilizada por Kelsen 4 – do direito, no caso concreto, é o juiz; o intérprete definitivo do direito é o juiz de um Tribunal Superior.

Nos últimos tempos, tem-se, por isso, dado a devida atenção à carga normativa da jurisprudência. Tem-se reconhecido que decisões judiciais são mais do que fonte do direito: são, em alguma medida, o próprio direito. 5 - 6

Dizem alguns autores, como Wilhelm Knittel, que a norma criada pelo juiz deve ser considerada norma jurídica no sentido pleno da expressão. A norma que emana dos Tribunais para resolver uma dada situação jurídica é direito positivo em vigor. 7

Se são o próprio direito, é natural que se reconheça que, além de resolver a controvérsia entre A e B, decisões judiciais, em diferentes medidas , significam algo para o sistema normativo.

O direito feito pelos juízes, ou, como dizem os alemães, o Richterrecht , identifica-se com as decisões dos Tribunais que constroem a evolução do direito legislado e devem servir de base a outras decisões. 8

É natural que os órgãos de 2.º grau e os juízes singulares curvem-se à posição tomada por Tribunais Superiores, que são, como dissemos há pouco, os intérpretes definitivos da lei. Afinal, constitucionalmente, essa é a função que lhes foi atribuída.

Acrescenta, com razão, Antonio do Passo Cabral: “Por outro lado, as instâncias superiores são aquelas cujos acórdãos estão mais aptos a gerar expectativas porque são estes tribunais, sobretudo em países de formato federativo como o nosso, que têm a função de uniformização do Direito, locus onde os anseios de segurança e estabilidade são ainda maiores.

Além disso, quanto mais alta é a instância, menos estão as decisões sujeitas a alterações, até porque as alternativas recursais vão sendo reduzidas. Ademais, alguns autores apontam que a experiência prática mostra que as decisões das cortes superiores possuem também uma maior constância temporal, tendendo a serem superadas com menor frequência”. 9

Decisões de Tribunais Superiores, como regra, devem ser respeitadas, principalmente se são muitas no mesmo sentido: jurisprudência firme. 10

Entretanto, a independência do juiz também é um dos postulados das culturas jurídicas modernas . Ambos os princípios estão ligados e se consubstanciam em importantes conquistas do Estado de Direito.

Essa é uma das críticas que se fazem àqueles que consideram que há um direito feito/criado pelos tribunais. A independência dos juízes leva a que, às vezes, no que tange a muitos temas, haja uma variabilidade incrível de decisões. 11

A doutrina menciona a inflação legislativa, que ocorre em alguns setores, e é acompanhada, naturalmente, de sua desvalorização. Aumenta a possibilidade de contradições entre as leis, tornando imensa a possibilidade de combinações entre elas. Por outro lado, em outros setores, ainda falta disciplina imposta por lei escrita, por exemplo, naquilo que se liga à internet , à blockchain, aos criptoativos, aos smart contracts e à machine learning . 12 - 13

As sociedades atuais, por serem extremamente complexas, inviabilizam que o sistema jurídico positivo preveja, expressamente, todos os possíveis conflitos que podem ser levados à apreciação do juiz. 14 O direito tem exercido movimento tentacular por sobre a realidade: tudo é disciplinado, jurisdicizado e, portanto, potencialmente, jurisdicionalizado. Muitas situações, ou não estão mesmo disciplinadas pela lei, de forma direta (nessas situações é, portanto, inevitável que o juiz crie direito), ou o são por meio de técnicas redacionais, cujo escopo é driblar a complexidade do mundo real e dar certa margem de flexibilidade ao julgador: são os conceitos vagos e as cláusulas gerais (casos em que também é inafastável certa dose de criatividade). 15

Isso, sem se falar nos princípios jurídicos, cada vez mais presentes nas discussões jurídicas e nas decisões judiciais, cuja formulação verbal se dá, muito frequentemente, por meio de conceitos vagos.

Evidentemente, porém, que só se pode falar, idealmente, em direito feito pelos juízes quando houver uniformização e estabilidade de entendimento. A “criação” judicial do direito mediante a dispersão de entendimento sobre a mesma matéria ou mediante um entendimento único, porém suscetível de frequentes alterações, encerra situação absolutamente desastrosa para a integridade do sistema jurídico. Na verdade, nem se pode dizer, propriamente, que haveria, aí, criação do direito.

Os objetivos da aplicação do princípio da vinculação à lei, inerente, como se disse, ao Estado de Direito, são os de gerar uma jurisprudência iterativa e uniforme e certa margem de previsibilidade, o que cria segurança jurídica . Porém, esses objetivos são atingidos com a vinculação à lei , vista sob esse enfoque, que abrange também a doutrina e a jurisprudência .

Assim, diríamos que a vinculação do juiz à lei se redesenha, por meio da doutrina e da jurisprudência , como se esses dois elementos desempenhassem uma função de “engate lógico” entre a lei e os fatos. 16

O princípio da legalidade, tal como entendido modernamente, não pode levar, como de fato não leva, a uma situação de automatismo na aplicação da lei. 17 O juiz está vinculado ao direito : lei + doutrina + jurisprudência.

Tenha-se, todavia, presente que, se a letra da lei não é mais a base única das decisões do juiz, sendo-o, também, outros elementos do sistema (jurisprudência e doutrina), não se pode deixar de examinar a questão sob outro prisma, já que a ocorrência de decisões diferentes para casos iguais passa a ser algo que pode acontecer, nesse contexto, com indesejável frequência.

O princípio da legalidade e o da isonomia , verdadeiros pilares da civilização moderna, levam a que se considerem adequadas soluções normativas que tendam a evitar que ocorram essas discrepâncias . É a necessidade de uniformizar a jurisprudência . 18

Se o juiz cria direito, 19 a jurisprudência tem que ser uniformizada: 20 é o princípio da isonomia que torna a uniformização imperativa. A jurisprudência, quando formalmente uniformizada ou espontaneamente pacificada, adquire carga normativa. A uniformização pode se dar a partir do método em que se torna obrigatório o respeito aos precedentes, embora haja outras técnicas. O CPC de 2015 está repleto de institutos que têm a uniformização, nesse sentido mais abrangente, como finalidade.

A nosso ver, o legislador brasileiro fez uma excelente escolha quando optou por incluir no Código artigos como o 926, em que fica muito clara a necessidade de que a jurisprudência se comporte exatamente como os textos legislativos . Os textos legislativos devem ser estáveis , isto é, devem ter uma duração considerável no tempo, e o ordenamento jurídico, em geral, deve ser íntegro e coerente. A necessidade de que os Tribunais uniformizem a sua jurisprudência equivale, no fundo, à exigência de que uma mesma situação seja disciplinada por um único texto de lei.

Percebe-se que o caput do art. 926 , que tem natureza principiológica, é fruto de um paralelo bem-feito entre a atividade do legislador e a atividade do judiciário. De fato, se se reconhece que a atividade do Judiciário muito frequentemente é dotada de significativa carga normativa, também a jurisprudência não pode mudar do dia para a noite , não pode ser contraditória ou dispersa e deve guardar coerência. É evidente que a atividade do legislador direcionada a gerar segurança jurídica teria seus propósitos integralmente esvaziados se, na mão dos juízes, a lei fosse interpretada iterativamente de modo não uniforme; se houvesse mudanças drásticas e frequentes de orientação; e, por fim, se as decisões fossem incoerentes.

É exatamente isso o que o art. 926 e todo o sistema de precedentes trazido pelo Código pretendem evitar.

O art. 927 , a seu turno, alista não só precedentes (art. 927, III), mas tipos de decisão, por exemplo, as proferidas em controle concentrado de constitucionalidade (art. 927 , I), e, também, súmulas, apontando a necessidade de que sejam respeitados, servindo-se da expressão mandatória que carece de sentido técnico mais preciso “observarão”.

Em nosso entender, embora muito bem-intencionado, o legislador alistou no art. 927 elementos que devem, sim, ser respeitados, mas que ostentam diferentes graus de vinculatividade. Trataremos desses graus no item 9.2. De toda forma, entretanto, deve-se reconhecer harmonia entre os arts. 926 e 927 do CPC .

Por fim, vale a pena observar a preocupação do legislador que também decorre da consciência da carga normativa das decisões judiciais, no sentido de proporcionar o contraditório com a própria sociedade , já que os efeitos normativos das decisões, ou das súmulas, ou dos precedentes alistadas no art. 927, ultrapassam o limite das próprias partes . Por isso, permite-se a realização de audiências públicas e a participação de amici curiae em processos que geram decisões com carga normativa e no procedimento que antecede a edição de súmula, vinculante ou não.

Outra novidade elogiável trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 é a possibilidade de que o próprio Judiciário crie regras, modulando a eficácia dos precedentes, principalmente quando houver alteração de orientação jurisprudencial firme. Embora não exclusivamente, a modulação diz respeito, principalmente, à possibilidade de o Judiciário criar normas de direito intertemporal para a incidência da nova orientação, já que a jurisprudência tem, por sua natureza, efeito retroativo. Sobre esse tema se tratará com mais profundidade à frente.

Também é elogiável a preocupação do legislador no sentido de que a essas decisões se dê a devida publicidade , já que seus efeitos ultrapassam os limites das partes, devendo ser essa divulgação o mais ampla possível, preferencialmente pela rede mundial de computadores.

Márcio Bellocchi observa, com razão, que a adoção de um sistema que vê, na atividade jurisdicional, potencial para se consubstanciar em norma jurídica e a consequente criação de um sistema de precedentes pelo CPC vieram tardiamente . 21

Reconhecer, na decisão judicial, a função de precedente – e, portanto, a capacidade de orientar e mesmo determinar decisões posteriores, sobre casos iguais – transforma-a em norma jurídica. 22 Como norma, deve ser a mesma para todos , sob pena de se ver ignorada ou menosprezada a necessidade de isonomia . 23

É evidente que, nessas condições, fica limitada a liberdade de cada juiz, individualmente considerado, de interpretar a lei. Isso é natural e desejável. 24

É inegável que a força que o CPC dá aos elementos oriundos do labor do Judiciário garante a isonomia, gera previsibilidade e incrementa a segurança jurídica. 25 Ademais, racionaliza o trabalho do Poder Judiciário, gerando mais tempo para que os juízes decidam, com vagar e de modo artesanal, os casos mais complexos. 26

Países de civil law têm a tendência e a tradição de respeitar jurisprudência iterativa e firme de quaisquer órgãos de 2.ª instância, e decisões de Tribunais Superiores têm a vocação de se tornar precedentes, porque se reconhece a função paradigmática desses tribunais, que têm, em regra, jurisprudência estável, ou seja, eles próprios não alteram, com frequência, suas posições, 27 ou não deveriam alterar, como, frequentemente, ocorre no Brasil. Suas decisões, nessa medida, desde que orientem comportamentos, consubstanciando-se em pautas de conduta , são direito.

Imprescindível lembrar-se, aqui, a lição de Michele Taruffo: “(...) D’altra parte, è la giurisprudenza che costituisce il contenuto effettivo del c.d. diritto vivente , il quale reppresenta in molti casi il solo diritto di cui disponiamo – ad esempio quando i giudici creano diritto colmando lacune – o il vero diritto di cui disponiamo – quando i giudice creano diritto interpretando clausole generali, o qualunque altro tipo di norma”. 28

Nesse ponto é que se pode reconhecer uma certa ruptura, no CPC/15 , com relação à tradição do civil law , pois, como se verá oportunamente, ele cria hipóteses em que um precedente já nasce com força vinculante .

Dizer-se que o juiz cria direito (= decisões têm carga normativa) ainda pode desagradar os adeptos de uma visão mais tradicional da separação de poderes. 29 Apesar disso, a criatividade judicial deve ser vista como um dado fático e, também, como algo essencialíssimo, imanente à interpretação. 30 - 31

É interessante e oportuno registrar que houve tentativas historicamente relevantes quanto à manutenção da separação absoluta dos poderes. 32

Mesmo antes da Revolução Francesa, em 25.09.1665, quando na França reinava Luís XIV, houve uma tentativa de reforma da justiça. Naquele momento histórico, Luís XIV dava seguimento a um movimento já começado, anteriormente, no sentido de permitir ao príncipe intervenção no processo: era o projeto do soberano de se apropriar do ordo iudiciarius .

Luís XIV quis pôr fim àquilo que via como desordem, providenciando um redressement de l’autorité , evitando que os juízes fossem fertiles en inventions contre les meilleures lois . 33 Trata-se de um momento histórico em que se percebe, com clareza, a existência da regra de que o juiz deve obedecer à lei, no contexto de uma ideologia que reconhecia ao rei a soberania absoluta, não limitada por órgão algum. O direito era a lei e a vontade do Rei. Nada mais natural do que ser dele a frase “L’État c’est moi”.

Ao juiz, segundo o Code de Luís XIV, era proibido interpretar. Em caso de dúvida ou dificuldade de compreensão do texto da lei, o juiz deveria dirigir-se ao soberano, para conhecer a voluntas principis .

Trata-se da revisitação da proibição justinianeia de interpretar a lei. Nicola Picardi ensina que o art. 7º do Code Louis sintetiza uma interessante variação conceitual entre a interpretatio do latim medieval e a interprétation do francês. A interpretatio ligava-se à busca de equidade, por meio do concurso de autoritates e rationes , exercida por meio de técnicas de razão dialética, social e justificativa. A interpretação (= interprida por), do direito francês da época, era a busca da vontade do legislador. A função do juiz seria declarativa da vontade do soberano. 34

A tentativa de Luís XIV não deu certo, por inúmeras razões, entre elas os inconvenientes práticos decorrentes da multiplicação dos casos dúbios, tornando impraticável o sistema engendrado pelo monarca. Essa tentativa pretendia criar um sistema de legislação sem jurisdição e representou, historicamente, o embrião da concepção do juiz como bouche de la loi .

Outro interessante exemplo quanto à tentativa da manutenção da separação absoluta dos poderes foi o Preussisches Allgemeines Landrecht , de 1794. 35

O Código, inspirado no iluminismo francês, pretendia abranger todas as condutas humanas. A intenção era a de que este código fosse capaz de criar um ordenamento jurídico unívoco, racional e abrangente. Não permitia a interpretação (continha 19 mil artigos!). 36

Dispunha o § 47 37 que, toda vez que o juiz entendesse que o verdadeiro significado da lei era dúbio, deveria, sem nomear as partes litigantes, notificar a comissão jurídica (Gesetzcommißion) sobre suas dúvidas e requisitar o seu julgamento. Essa lei foi abolida, pouco tempo depois, pela inviabilidade de sua aplicação. 38

Aqui é relevante se observar que a proibição da interpretação , decorrente do receio de que o juiz se afastasse do texto legislativo, por meio de um processo pseudointerpretativo, “inventando” novas normas, ligava-se, em um primeiro momento, ao próprio caso . Explicando melhor: só muito recentemente na história se admitiu que os juízes pudessem criar uma norma , que se pudesse afastar significativamente da literalidade do texto de lei, para resolver o caso concreto. Isso quer dizer que, nem mesmo para adaptar a solução às peculiaridades do caso concreto, permitia-se que o juiz interprestasse a lei, já que se sabe – embora isso nem sempre seja confessado – que na interpretação há um quid de criatividade.

Num segundo momento histórico, a preocupação se estendeu à possibilidade de a jurisprudência se revestir de carga normativa para toda a sociedade , porque, aí sim, vê-se com mais nitidez a possibilidade um poder invadir as atribuições do outro. E, nessa dimensão, também se percebe que a construção do direito se dá, muitas vezes, por obra do Judiciário.

Por uma série de razões, já comentadas ao longo de todo este trabalho, mas principalmente na parte inicial (partes I e II), percebe-se que a lei, pura e simplesmente, não mais garante automaticamente tratamento isonômico aos jurisdicionados, porque passa necessariamente pelo filtro dos Tribunais para que eles, à luz da doutrina e de outros elementos, decidam casos concretos, por meio de processos interpretativos cada vez mais complexos, criando regras jurídicas .

Há tempos, sustentamos que esses parâmetros mais nublados ou, usando uma linguagem mais próxima ao dia a dia do operador do direito, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e princípios jurídicos são poros que permitem à realidade penetrar no direito (v. parte II, itens 5 e 6). Por isso, apesar de o direito se “autogerar”, ele se oxigena, permanentemente, abrindo-se para elementos do mundo exterior.

Tudo isso torna imensamente mais complexa a tarefa de julgar. Torna, como já dissemos, a função do juiz quase que próxima, em algumas circunstâncias e sob determinadas condições, à do legislador ou à do administrador público.

Interessante lembrar, mais uma vez, também de teorias, já mencionadas, como a da desconsideração da pessoa jurídica ou da imprevisão (respectivamente, disregard of legal entity e frustration of purpose) que eram aplicadas pelos tribunais, muito antes de serem mencionadas pelo legislador.

Não há como negar que o juiz, quando decide, exerce uma dupla função: resolve o caso (o conflito) que lhe foi posto sob apreciação, e, ao mesmo tempo, contribui para a construção e para a evolução da ordem jurídica.

Justamente por isso, é que, rigorosamente, não se pode falar em liberdade/criatividade do juiz , mas em liberdade do Judiciário , e esse fenômeno, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, gera necessidade de, muitas vezes, o juiz se curvar a um precedente vinculante ou à intepretação que prevaleceu na jurisprudência constante e iterativa. Isso, porém, não subtrai a relevância de sua função, tampouco sua indispensável independência, mas, ao contrário, demonstra o quanto é importante a atuação do Judiciário na própria construção do direito.

9.1. Súmula vinculante

9.1.1. Brevíssimo histórico

O sentido de uma decisão judicial ser vista como precedente judicial se liga à ideia de autopoiese. 39 O direito pode ser visto como um sistema que se autonutre : assim, acórdãos citam precedentes, e, assim, legitimam-se. Do mesmo modo ocorre com a doutrina: autores citam outros autores. Doutrina e jurisprudência são capazes de gerar alteração da lei.

Em todas as épocas, em alguma medida, precedentes judiciais desempenharam papel relevante, inclusive no direito canônico. 40

Evidentemente, súmulas não são precedentes, mas elas são resultado da coragem do legislador de ter expressamente dado relevância a um elemento que ostenta significativa carga normativa e que não é oriundo do Poder Legislativo, mas do Poder Judiciário . Contrariamente à nossa tradição, o legislador constituinte derivado expressamente revestiu um enunciado normativo gerado pela atividade de magistrados, de força vinculante, no sentido forte, já que o desrespeito a súmula vinculante gera a possibilidade do manejo da reclamação. (v. item 9.6, infra).

São a expressão verbal do núcleo (da essência, do extrato) de várias decisões antecedentes de um mesmo tribunal, em um mesmo sentido. 41

As súmulas consolidam enunciados que sintetizam o entendimento de um tribunal ou órgão fracionário acerca de um determinado assunto que lhe foi submetido por meio de recursos ou ações. Seu idealizador, o Ministro Victor Nunes Leal, ensina que elas têm por objetivo buscar o meio-termo ideal da estabilidade da jurisprudência, situando-se entre a dureza dos assentos e a inoperância dos prejulgados 42 .

Djanira Maria Radamés de Sá, com apoio em Nelson Nery Jr., aponta conceito semelhante, ao definir súmulas como “conjunto de teses reveladoras da jurisprudência predominante no tribunal” 43 , afirmando que “sua apresentação se dá sob a forma de verbetes numerados e sinteticamente enunciados” 44 .

Os assentos, do direito português, expedidos pela Casa de Suplicação, identificados como uma experiência semelhante à das súmulas , chegaram a ter vigência no sistema brasileiro por força das Ordenações Manuelinas e Filipinas e pela Lei da Boa Razão, no campo cível, até a entrada em vigor do nosso Código Civil em 1916.

Castanheira Neves delineia os assentos como prescrições normativas tomadas ex-novo e não como fruto da manifestação reiterada da Corte 45 . São eles, portanto, critérios jurídicos, universalmente vinculantes, mediante enunciado de normas gerais e abstratas, stricto sensu , prescritos por um órgão judicial. Eles se distinguem de outros institutos do direito comparado como a doctrina legal espanhola e a jurisprudência obrigatória mexicana porque nestes o que se torna vinculante é a orientação jurídica firmada em jurisprudência estabilizada e reiterada, ao passo que naqueles não há qualquer exigência de teses jurisprudenciais em conflito 46 . Daí por que arremata Castanheira Neves: “o assento é ‘norma’ (constitui-se ex-novo visando o futuro) e não ‘jurisprudência’ (consagração de soluções que vêm do passado e persistem)” 47 .

Segundo observa Mônica Sifuentes, a origem dos assentos está relacionada ao instituto das “façanhas”, adotado em Portugal em meados do século XII, e eles consistiam “nas decisões da Casa de Suplicação de Lisboa, que se consubstanciava em interpretação autêntica das leis do Reino de Portugal. Tinham, portanto, força de lei” 48 .

Em Portugal, os assentos perderam espaço pouco tempo antes da promulgação da Constituição de 1822, que proibiu a eficácia externa dos atos interpretativos, até ser banida a sua força obrigatória geral, por obra do acórdão nº 810/93 do Tribunal Constitucional, que julgou essas características ofensivas ao art. 115 da Constituição Portuguesa de 1822, de modo que permaneceu intacta a doutrina exposta nos assentos, porém sua força vinculativa se restringia aos tribunais judiciais, transformando-se em fonte interna de direito. 49

Após discussões em torno da instituição de mecanismo semelhante aos assentos, a súmula foi instituída no direito brasileiro por obra do Ministro Victor Nunes Leal, do Supremo Tribunal Federal, tendo como base legal a Emenda Regimental de 30 de agosto de 1963.

Essas súmulas, tal como concebidas, deveriam apenas vincular o próprio Supremo Tribunal Federal, simplificando a motivação de suas decisões. Tinham elas em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, portanto, eficácia meramente persuasiva. 50

Modificações na legislação constitucional e infraconstitucional, todavia, redimensionaram a atribuição de efeito vinculante a esses instrumentos. Nessa linha, a Constituição Federal brasileira criou a súmula vinculante, do Supremo Tribunal Federal (Emenda Constitucional 45/2004).

As súmulas vinculantes, então, não só não consistem em precedentes – já que precedentes são decisões sobre casos concretos entre A e B – como também não existem em países de common law , porque não fariam sentido naquele contexto e nem teriam função. Aliás, as súmulas vinculantes também não existem, como regra, em países de civil law , porque, como dissemos várias vezes ao longo deste estudo, o natural é que, mesmo em países em que o juiz decide com base na lei, seja a jurisprudência dos Tribunais Superiores respeitada ou levada em conta com seriedade.

Entretanto, registra-se mesmo em países de civil law uma tendência à adoção de instrumentos facilitadores de consulta à jurisprudência que, em certa medida, se assemelham às nossas súmulas ou às nossas teses . 51

Claramente, entretanto, os objetivos de se criarem súmulas vinculantes estão indissociavelmente ligados àqueles que inspiraram o legislador a criar os precedentes vinculantes do Código de Processo Civil de 2015, de que adiante trataremos, já que umbilicalmente ligados ao Recurso Especial e ao Recurso Extraordinário. Substancialmente, equivalem-se do ponto de vista funcional: visam a que se crie um sistema mais operativo. Além de, é claro, prestigiar-se a isonomia, pois, se todos são iguais perante a lei, esta deve ter uma só interpretação considerada como correta.

Já havia, efetivamente, uma tendência a que se introduzisse no sistema a figura da súmula vinculante.

A adoção da súmula vinculante, com a EC 45/2004 (cf. art. 103-A da CF) não significou um salto histórico no direito brasileiro. Ao contrário, pois, conforme observou, com seu senso de humor único, Barbosa Moreira, ao comentar a alteração do art. 557 pela Lei 9.756/1998 : “Emenda Constitucional para estabelecer que as súmulas, sob certas condições, passarão a vincular os outros órgãos judiciais? Ora, mas se já vamos além e ao custo – muito mais baixo – de meras leis ordinárias (será que somente na acepção técnica da palavra?)! O mingau está sendo comido pelas beiradas, e é duvidoso que a projetada emenda constitucional ainda encontre no prato o bastante para satisfazer seu apetite...”. 52

Como dissemos, mesmo nos países da Europa Continental, a transcendência dos precedentes vem sendo observada. Diz-se que a jurisprudência consolidada garante a certeza e a previsibilidade; garante a igualdade dos jurisdicionados; evidencia a submissão moral de respeito à sabedoria acumulada pela experiência; e constrói uma presunção em prol do acerto do precedente. 53

Sálvio de Figueiredo Teixeira, a respeito das súmulas dos tribunais superiores, informa: “Fruto do espírito inovador do Ministro Victor Nunes Leal, o Supremo Tribunal Federal houve por bem adotar, em 1963, o que veio a denominar-se súmula da jurisprudência predominante daquela Corte, tendo, no sistema anterior à Constituição de 1988, editado 621 enunciados (verbetes), dos quais os primeiros 370 foram aprovados na sessão plenária de 13.12.1963”. 54

Até o fechamento desta edição, o Supremo Tribunal Federal tinha publicado 58 Súmulas Vinculantes e 736 Súmulas. O Superior Tribunal de Justiça tinha editado, por sua vez, 656 Súmulas.

Sálvio de Figueiredo Teixeira acrescenta, também, que “tal mecanismo, ao sintetizar a posição dos tribunais na fixação de teses jurídicas, reflete não só o posicionamento dos mesmos em temas controvertidos, quando reiterados os julgamentos, mas também serve como orientação aos consumidores da prestação jurisdicional, que têm, através de tais enunciados, com nitidez e presteza, a autêntica exegese dos órgãos judiciais em temas geralmente polêmicos”. 55

Comenta a força persuasiva de que é dotada a súmula, 56 o que, em nosso sentir, em certa medida, confunde-se saudavelmente com a consciência da inexorabilidade de que a questão seja afinal decidida em conformidade com o entendimento dos tribunais superiores, que tem o condão de gerar condutas e decisões judiciais (de 1.º e 2.º graus de jurisdição) já de acordo com o que se sabe será a decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.

Assevera, em seguida, que considera, e com razão, que essa força persuasiva é insuficiente: “Segundo os seus defensores, todavia, tal persuasão não basta, considerando não só a repetição de ações e recursos em temas já assentes, inclusive nos tribunais superiores, como também o descaso da Administração com a orientação reiterada dos tribunais, a aumentar abusivamente o volume do serviço forense. Ademais, não se pode igualmente desconsiderar, dado o desprestígio que isso acarreta para a ordem jurídica, que, mesmo quando declarada, pela Suprema Corte, centenas ou milhares de vezes, a inconstitucionalidade de uma lei, na via indireta, essa lei pode vir a ser aplicada nas instâncias inferiores, e gerar efeitos jurídicos se a decisão transitar em julgado. (...) Surgiu, em decorrência, a ideia da súmula com eficácia jurídica obrigatória, vinculante, por meio da qual as instâncias jurisdicionais inferiores estariam obrigadas a decidir de acordo com o seu conteúdo, vinculação essa a aplicar-se igualmente às instâncias administrativas”. 57

A perspectiva da adoção da súmula vinculante em nosso país sempre preocupou toda a comunidade jurídica, e a circunstância de a EC 45/2004 tê-la inserido no direito brasileiro ( CF , art. 103-A) não eliminou a intensa controvérsia existente a respeito. 58 - 59

Em um ensaio como este, em que se insiste na necessidade de segurança (no sentido de previsibilidade), como decorrência da constatação de que o prestígio desse valor é generalizado e tem estado ligado à história do direito, é natural que se adote uma postura receptiva à ideia da súmula vinculante.

Nem todos, todavia, são entusiastas em relação às súmulas: “Lamentável, ainda, é a insistência em relação às súmulas. Essas nunca conseguiram contribuir para a unidade do direito. Foram pensadas a partir de uma compreensão muito superficial do sistema em que as decisões têm efeito obrigatório ou a partir das máximas – uma lamentável e ineficaz tentativa de alguns sistemas de civil law , como o italiano, para o encontro da uniformidade da interpretação. As súmulas foram concebidas como enunciados abstratos voltados a facilitar o trabalho de correção das decisões dos tribunais. É ilógico tentar dar-lhes a função de precedentes, na medida em que só a decisão do caso concreto é capaz de espelhar em toda a sua plenitude o contexto fático em que a ratio decidendi se insere”. 60

Há quase 20 anos da introdução das Súmulas Vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, as controvérsias ainda persistem.

Há aqueles que sustentam, ainda hoje, a inconstitucionalidade das Súmulas Vinculantes, sob o fundamento de que feririam a ampla defesa, a separação dos poderes e a legitimidade democrática. 61

Interessante observar que, no âmbito da Justiça do Trabalho, o Poder Judiciário há muito tempo exerce poder normativo, sem que sua atividade seja alvo de tão severas críticas como foi a adoção de súmulas vinculantes. 62

Argumentos de peso há a sustentar a tese da inconveniência da adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da súmula vinculante. Dois deles são os principais: diz-se que adotar a súmula vinculante feriria a regra da separação de poderes, base dos Estados de Direito modernos, já que o Poder Judiciário seria autor de ato normativo geral, função essa que cabe ao Poder Legislativo; e se diz, também, que, no sistema brasileiro, o juiz só pode decidir com base na lei, que representa a vontade geral.

A separação de poderes, como se sabe, pode existir, sem ser absoluta. De fato, suas feições definitivas dependem de como venha a ser prevista pelo sistema jurídico positivo de um país e não deve necessariamente ter as feições que tinha quando concebida pelos filósofos cujas ideias estavam por trás do movimento revolucionário na França, notadamente Montesquieu.

A separação de poderes, portanto, não deixa de existir ou fica comprometida com a adoção da súmula vinculante. Nem com a criação de precedentes vinculantes. Assim como não se pode dizer terem deixado de existir os princípios da isonomia e da legalidade em função da circunstância de o sistema tolerar haver decisões totalmente diferentes para situações fáticas absolutamente idênticas.

Costuma-se criticar o sistema da súmula vinculante, dizendo-se que ele enseja o engessamento da jurisprudência, o que levaria à indesejável imobilidade do direito.

Essa crítica também se faz, às vezes, como é sabido, em relação aos precedentes vinculantes.

Estivessem, os que assim pensam, com a razão, o direito inglês seria o mesmo do século XIII! 63

Somados os prós e os contras (e há inúmeros prós e inúmeros contras), sempre nos pareceu conveniente, em tese, a adoção do sistema de súmulas vinculantes. Sempre consideramos ser uma medida vantajosa, já que, se, de um lado, teria potencial de contribuir, de alguma maneira e em alguma medida, para o desafogamento dos órgãos do Poder Judiciário, 64 de outro lado, e principalmente, desempenha papel relevante no que diz respeito a valores prezados pelos sistemas jurídicos: segurança 65 e previsibilidade.

Rudinei Baumbach, porém, em estudo que analisou os 15 anos da introdução das Súmulas Vinculantes no direito brasileiro, afirma que “não se constata, de fato, qualquer contribuição de peso da súmula vinculante na diminuição do engarrafamento processual, que antes assolava e hoje continua assolando nossos tribunais. Talvez tal contribuição tenha havido, porém, e o aspecto merece ser devidamente investigado. Indícios diversos convergem, todavia, para a formação da intuição em referência. O próprio tempo e ritmo de edição de enunciados vinculantes, errático e aleatório, em ondas de frequência insondável, fundamenta a suspeita de que o instituto se mostrou um relativo fracasso. A súmula vinculante, aliás, é de quando em vez rememorada em razão da polêmica que envolve alguns dos seus enunciados, e não porque tenha cooperado, digamos, com a solvência desta ou daquela massa de processos. A figura nunca se acomodou muito bem institucionalmente entre nós, e cada vez mais padece com uma espécie de competição imposta por certas tendências institucionais e técnicas processuais”.

E, por fim, faz um prognóstico pessimista: “Se foi pouco produtiva ou improdutiva até aqui, o futuro da súmula vinculante, tudo indica, será um de ainda maior esterilidade. À medida que avança a chamada objetivação do controle difuso de constitucionalidade, menos importante tende a se tornar o seu papel no quadro geral da jurisdição constitucional. Já não está muito fácil discernir a exata extensão do proveito da súmula vinculante na atualidade, tampouco entrever o seu privativo espaço institucional, se é que ainda haja algum. Naturalmente, pode vir a acontecer uma reviravolta nessa linha evolutiva. Por ora, porém, não se vislumbra nenhum sinal disso”. 66

Em alguma medida assiste razão ao autor. No contexto que hoje existe, criado pelo CPC de 2015, em que há institutos como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, o Incidente de Assunção de Competência, os recursos repetitivos (que já existiam, mas tiveram seu procedimento aprimorado) e o precedente vinculante consistente no recurso extraordinário julgado no regime da repercussão geral, a súmula vinculante se transformou em “mais um” dos diversos (e mais eficientes) instrumentos de força vinculativa, que promovem unidade do direito e podem gerar diminuição da carga de trabalho do Poder Judiciário.

A partir de estudo empírico, Peter Panutto e Kennedy Anderson Pereira Gonçalves concluem que as súmulas, vinculantes ou não, têm tido um impacto significativo na solução dos casos.

Vejamos a tabela apresentada e formulada por Peter Panutto e Kennedy Anderson Pereira Gonçalves, a partir de pesquisa jurisprudencial no Tribunal de Justiça de São Paulo, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal: 67

Segundo os autores, “O quadro anterior fornece um contexto da real importância das súmulas nas decisões proferidas pelos tribunais. No período relativo aos meses de agosto/2020 a novembro/2020, mês anterior ao recesso forense, foram proferidas 236.571 decisões judiciais (acórdãos e decisões monocráticas) que tiveram como fundamento enunciados sumulares, representando um total de 35,79% das decisões proferidas por esses tribunais. Importante deixar claro que, no caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, os dados colhidos não levam em consideração as decisões proferidas pelos juízes de primeiro grau”. 68

Diante do significativo percentual de acórdãos e decisões monocráticas, por exemplo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que se valem de súmulas na sua fundamentação, é possível concluir que elas contribuem, sim, em alguma medida, para o desafogamento dos órgãos do Poder Judiciário e para a celeridade na tramitação das demandas, além de, principalmente, servirem como instrumento de garantia de previsibilidade.

É relevantíssimo, porém, que se diga, que as súmulas, muito frequentemente, não são capazes de absorver de forma integral tanto a situação fática subjacente às decisões antecedentes quanto a própria forma como solucionada. A questão judiciária tratada, em toda a sua complexidade, não “cabe” na súmula. O mesmo se deve dizer quanto às teses jurídicas fixadas, por exemplo, no julgamento do Recurso Extraordinário. Deve-se, portanto, ter presente que a súmula não dispensa a leitura das decisões que lhes deram origem, bem como, na grande maioria dos casos, as teses.

9.1.2. A EC 45/2004 e a Lei 11.417/2006

A Lei 11.417/2006 disciplina alguns aspectos relativos à edição, à revisão e ao cancelamento de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal.

Embora haja referência, no final do caput do art. 103-A da CF , a algo que deveria ser definido “na forma estabelecida em lei”, a lei que poderia dispor sobre a súmula vinculante pouco ou nada poderia ter acrescentado ao dispositivo constitucional em questão, a fim de atribuir-lhe eficácia. É que a referida norma constitucional já continha todos os elementos necessários à sua efetivação, pois:

1. O que poderá ser objeto de súmula vinculante já foi regulado de modo minudente pelo dispositivo constitucional (cf. art. 103-A, caput e § 1.º, da CF), nada podendo lhe ser acrescentado ou retirado;

2. O art. 103-A, § 2.º, da CF define, com precisão, quem tem legitimidade para provocar a deliberação sobre a criação de súmula vinculante, “sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei”. Ou seja, além das pessoas referidas, outras poderão sugerir a aprovação, revisão ou cancelamento da súmula, desde que surja lei nesse sentido. A legitimidade das pessoas referidas, no entanto, decorre da disposição constitucional, e não de futura lei.

Além disso, de acordo com o caput do art. 103-A da CF , o incidente pode ocorrer de ofício , isto é, independentemente de provocação das pessoas referidas no § 2.º.

3. A norma constitucional regula, com precisão, quem tem competência para decidir a respeito da criação, da revisão ou do cancelamento da súmula: o Supremo Tribunal Federal poderá fazê-lo “mediante decisão de dois terços dos seus membros” (art. 103-A, caput).

4. Enfim, o § 3.º do art. 103-A resolve até mesmo o modo pelo qual se pode impugnar a decisão que não acata a súmula vinculante. Trata-se da reclamação , dirigida ao Supremo Tribunal Federal, que, se julgá-la procedente, “anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”.

Constata-se, assim, que a norma infraconstitucional não poderia – como de fato não o fez – regular diversamente aquilo que a norma constitucional já fixou com precisão.

Apenas quanto àquilo que não foi regulado de modo exauriente pela norma constitucional é que poderia haver, efetivamente, a atuação do legislador ordinário . Foi o que ocorreu, por exemplo, com o art. 3.º da Lei 11.417/2006 , que permite que, além daqueles que podem propor ação declaratória de inconstitucionalidade (referidos no art. 103 da CF), também “o Defensor Público-Geral da União” (inc. VI) e os tribunais (inc. XI) podem propor a edição, o cancelamento ou a revisão de súmula vinculante.

9.1.3. Objeto da súmula vinculante

A súmula vinculante “terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas” e apenas será oportuna e adequada quando houver reiteradas decisões em determinado sentido e em relação a tais normas houver “controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” (art. 103-A, § 1.º, da CF).

A primeira observação que cumpre seja feita é a de que, embora o art. 2.º da Lei 11.417/2006 aluda à matéria constitucional , assim como faz o art. 103-A da CF , talvez tenha querido o legislador dizer mais do que disse, já que as súmulas podem versar matéria constitucional no sentido amplo . De fato, a súmula pode versar sobre matéria infraconstitucional e dispor, por exemplo, sobre a compatibilidade do texto da lei, ou de determinada interpretação, com a Constituição Federal . E o objeto da súmula não será propriamente matéria constitucional.

O art. 5º chama atenção para um aspecto que entendemos relevante, e que confirma o que dissemos no parágrafo anterior: diz que, revogada ou alterada a lei em que se fundou a súmula vinculante, poderá o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, rever ou cancelar a súmula.

Esse dispositivo nos leva a afirmar que, de acordo com a lei, as matérias sobre as quais deverão versar as súmulas vinculantes não são só as constitucionais, no sentido estrito. São, em conformidade com o art. 103-A da CF , matérias constitucionais em sentido amplo. A súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal poderá, sim, abranger a lei, dizendo respeito, por exemplo, a como deva ser entendida ou interpretada para que seja compatível com a Constituição Federal. De fato, esse é um tipo de ofensa à Constituição (que se faz por meio de decisão que aplica lei inconstitucional) objeto de recurso extraordinário, e, por conseguinte, satisfeitos os demais requisitos, pode dar origem a uma súmula vinculante.

Das 58 súmulas vinculantes criadas, 69 muitas dizem respeito à observância de garantias constitucionais, enquanto outras referem-se à inconstitucionalidade de lei federal ou de lei ou ato normativo estadual ou distrital.

São vários os aspectos a serem considerados quanto à edição de uma súmula vinculante. Os cuidados vão desde se saber exatamente o que pode ser sumulado indo até como se redigir uma súmula .

Em primeiro lugar, é necessário que se mencione que nem tudo pode ser objeto de súmula, mas exclusivamente teses jurídicas .

Ousamos, correndo o risco de imprecisão, definir tese jurídica como sendo uma verdade jurídica, que não deixa de sê-lo em virtude de especificidades dos casos concretos que lhe são subjacentes .

Evidentemente, as súmulas, com efeito vinculante, devem ser elaboradas com muito mais critério e de forma a não gerar, na medida do possível, problemas interpretativos mais complexos do que os gerados pela própria norma de que derivam. O mesmo deve ser dito quanto às teses, que vêm sendo fixadas, por exemplo, quando se julga um Recurso Extraordinário.

Convém, assim, na medida do possível, evitar o uso de conceitos abertos na redação de súmulas, que poderiam gerar problemas interpretativos ainda maiores que aqueles originados da interpretação do texto legal.

A Súmula 479 do STJ, editada em 27.6.2012, dispõe que: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias ”.

Percebe-se, no entanto, que essa súmula se utilizou de dois conceitos abertos: “fraudes” e “delitos”. A “vagueza intencional” 70 ou “zona de penumbra” 71 desses termos mencionados pela própria súmula, pode – como vem ocorrendo – levar a sua indevida aplicação.

Para que se compreenda o que se teria querido dizer com os termos “fraudes” e “delitos”, deve-se recorrer aos acórdãos que deram origem a essa súmula. Perceber-se-á que tratavam de circunstâncias fáticas completamente distintas dos casos em que a súmula tem sido, atualmente, aplicada, v.g. , demandas envolvendo “golpe do motoboy”.

Entre os 12 (doze) Recursos Especiais que levaram à edição da Súmula 479:

•5 (cinco) casos tratavam da abertura de conta corrente por estelionatário, utilizando-se de documentos falsificados da vítima (AgInt no AI XXXXX/SP; AgInt no AI XXXXX/SP; AgInt no AREsp XXXXX/RJ; REsp XXXXX/PR e REsp XXXXX/PR, julgados sob o regime de repetitivos);

•2 (dois) casos diziam respeito à saque indevido efetuado por estelionatário na conta corrente da vítima (AgInt no AI XXXXX/SP; AgInt no AI XXXXX/RS);

•2 (dois) casos versavam sobre fraudes decorrentes de roubo de malotes com talões de cheques durante o transporte (AgInt no AI XXXXX/DF; REsp XXXXX/RJ);

•2 (dois) casos de roubo de cofre dentro da agência bancária (REsp XXXXX/DF; REsp XXXXX/PE);

•1 (um) caso envolvia assalto seguido de morte de funcionário no interior de agência bancária (AgInt no AI XXXXX/BA).

Os “delitos” e as “fraudes” de que trata a Súmula 479, como se pode inferir, dizem respeito a atos criminosos (roubo , furto , assassinato e falsificação) praticados dentro ou no entorno de agência bancária, sem qualquer possibilidade de a vítima controlar ou interferir .

Como fica evidente, não há similitude fática, tampouco questão de direito idêntica, a justificar a aplicação dessa súmula aos casos em que a vítima fornece, por telefone, informações confidenciais ao estelionatário, ou, até mesmo, entrega fisicamente seu cartão de crédito a “motoboy”/partícipe do crime, como ocorre nas fraudes denominadas “golpe do motoboy”.

Confira-se a ementa de um julgado do TJSP que aplicou, a nosso ver, equivocadamente, a referida Súmula: “(...). DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DAS OPERAÇÕES QUESTIONADAS E DETERMINAÇÃO DE DEVOLUÇÃO DE VALORES – INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL NÃO CONCEDIDA – GOLPE DO MOTOBOY– relação de consumo – golpista que se passou preposto da instituição financeira e acabou obtendo o cartão de crédito vinculado à conta da apelada – realização de operações, em curto período, destoantes do histórico de uso ordinário da apelada – alegação de desvio de perfil sequer questionada pelo apelante – bloqueio preventivo do cartão que tinha que ser implantado até que se fizesse contato com a cliente – dever de segurança inerente à relação , independentemente de existência ou não de cláusula contratual nesse sentido – apelante que se utiliza, em benefício próprio, das facilidades decorrentes da informatização dos serviços e que, em contrapartida, tem o dever de proporcionar toda a segurança disponível aos consumidores – monitoramento das operações e tomadas de medidas preventivas que se inserem nesse contexto – falha na prestação de serviços – responsabilidade objetiva do apelante excluída só pela culpa exclusiva da vítima ou por fortuito externo, o que não se tem no caso dos autos – artigo 14, § 3º, I e II do CDC – ato de terceiro que se caracteriza como fortuito interno – Súmula nº 479 do STJ – declaração de inexigibilidade dos valores e determinação de devolução daquilo que foi despendido que se impunham – verba honorária fixada, de lado a lado, em R$ 1.100,00 – valor adequado que não comporta redução – sentença mantida, nos termos do art. 252 do RITJSP. Resultado: recurso desprovido” (g. n.). 72

Naqueles casos, que levaram à edição da Súmula 479, a fraude foi perpetrada à revelia da vítima e sem qualquer possibilidade de que a vítima evitasse a sua ocorrência. Por outro lado, nesses casos, em que tem sido aplicada, indevidamente, a Súmula 479, a vítima fornece, por telefone, informações pessoais da sua conta bancária, incluindo, senha e números de identificação, além de entregar, fisicamente, seu cartão de crédito aos golpistas.

Para serem consideradas questões de direito – teses jurídicas puras –, as regras que podem ser objeto de súmula devem se aplicar a fatos cujos aspectos que têm consequências jurídicas possam ser resumidos em uma ou duas frases, porque não envolvem peculiaridades relevantes para sua qualificação ou para a indicação do respectivo regime jurídico.

Aqui, também, o que se diz se aplica às já referidas teses.

É imprescindível, por outro lado, que a súmula vinculante seja menos abrangente (assim como as teses) do que a lei e, insistimos, deve ser redigida de molde a gerar menos dúvidas interpretativas do que a própria lei .

O processo interpretativo é equiparável a um processo de refinamento pelo qual passa o entendimento do sentido da norma, semelhante à transformação de areia grossa em talco. São de se rejeitar, portanto, proposições que pretendem esclarecer o sentido da norma e que são mais genéricas que a própria norma.

Se a súmula é a interpretação predominantemente dada à norma por certo tribunal, é evidente que há de ser mais específica do que a norma em si, como o talco é mais fino em relação à areia grossa .

Uma das formas de se evitar que a súmula gere problemas de interpretação – e, portanto, de incidência – é que ela não contenha, em seu enunciado, linguagem aberta .

Devem as súmulas vinculantes, bem como as teses, predominantemente, dizer respeito a situações capazes de se repetir ao longo do tempo de modo absolutamente idêntico ou muito semelhante. Em princípio, não se poderia, por exemplo, sumular tese jurídica relativa a direito de família, porque situações de família nunca são idênticas. Diferentemente ocorre no plano do direito tributário, em que um leasing é sempre um leasing , e se deve saber, com certeza, se gera, ou não, a incidência de certo tributo.

Veja-se, pois, que devem existir súmulas exclusivamente em relação a situações concernentemente às quais se possa privilegiar o valor segurança. Tratamos, no item 4.2 .2, de situações em que a mobilidade e a flexibilidade do direito respondem melhor às necessidades sociais, e outras, em que a segurança e a previsibilidade devem vir em primeiro lugar. É evidente que nestas últimas situações súmulas são bem-vindas; não o são nas primeiras.

Da mesma forma o que se disse aqui aplica-se às teses, antes referidas.

A adoção do sistema da súmula vinculante é uma das técnicas que tendem a levar a um ambiente de maior segurança jurídica, no sentido de se chegar perto da previsibilidade desejável.

Essas considerações conduzem a outro importante aspecto, a que fazem alusão o art. 103-A, § 1.º, da CF e o art. 2.º, § 1.º, da Lei 11.417/2006 : deve a súmula vinculante ter por objeto “controvérsia (...) que acarrete grave insegurança jurídica”.

Na justificação da criação das primeiras súmulas vinculantes, a propósito, o Supremo Tribunal Federal, além de destacar a existência de recursos julgados naquele tribunal a respeito dos temas escolhidos, enfatiza que eles têm “inegável potencial na multiplicação de processos” ou, ainda, que são capazes de “acarretar, inegavelmente, grave insegurança jurídica”. 73

Nos casos em que vier a incidir a súmula vinculante, desde logo o juiz terá de se curvar àquela interpretação que terá sido sumulada. Observe-se, todavia, que não estará deixando de decidir de acordo com a lei .

Como mais adiante se comentará, com mais vagar, a súmula vinculante é um instituto que tende a desaparecer.

É digna de nota a diminuição da frequência com que súmulas vinculantes têm sido editadas e isso decorre, muito provavelmente, do fato de que a reclamação pode ser manejada diretamente para o Supremo Tribunal Federal quando a parte alega desrespeito a uma súmula vinculante. Por outro lado, em função de alteração incluída durante a vacatio legis do CPC/15 , pela Lei 13.256/2016 , para que caiba reclamação com objetivo de garantir o respeito a precedente vinculante emanado do Supremo Tribunal Federal, seja recurso extraordinário avulso ou repetitivo, a reclamação só pode ser manejada depois de esgotada as instâncias ordinárias. Portanto, tendo em vista o legitimo propósito de diminuir a carga de trabalho sem prejuízo do jurisdicionado, é natural que o Supremo Tribunal Federal prefira fixar entendimentos por meio de recurso extraordinário avulso ou repetitivo, já que o caminho da reclamação, nessas hipóteses, foi dificultado pelo legislador.

Ademais, a nosso ver, os recursos repetitivos deverão, num futuro próximo, desaparecer, já que o procedimento do recurso extraordinário avulso foi equiparado ao dos repetitivos, e essa opção do legislador fará com que o contexto em que seria legítima a afetação de um recurso extraordinário como repetitivo nem chegue a se configurar no segundo grau de jurisdição. Isso porque o primeiro recurso julgado já configura precedente vinculante, o que impedirá a subida dos demais recursos que versem sobre idêntica controvérsia.

Já adiantamos aqui a nossa posição, no sentido de que o fato de o Supremo Tribunal Federal julgar tanto casos que poderiam dar origem à afetação do recurso como repetitivo, quanto outros casos, em que a questão jurídica não se repete de modo massificado, porque têm peculiaridades, que devem ser levadas em conta, gera complexidades procedimentais de que adiante trataremos, no item 9.5.1.1.

9.1.4. Competência para a criação da súmula vinculante

No direito brasileiro, atribuiu-se exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal – e apenas em matéria constitucional, como observamos supra , no sentido amplo – o poder de editar súmulas vinculantes ( CF , art. 103 -A; Lei 11.417/2006 , arts. 1 .º e 2.º). A aprovação de súmula vinculante, depois que uma determinada matéria já tiver sido reiteradamente decidida pelo Supremo, depende do voto de dois terços dos seus integrantes ( CF , art. 103 -A, caput ; Lei 11.417/2006 , art. 2.º, § 3.º).

Os outros tribunais poderão criar somente súmulas “não vinculantes”, isto é, que têm força apenas relativa para impedir o julgamento de uma ação ou determinar o sentido em que ele se dê.

Só a circunstância de ter havido alteração na própria Constituição Federal, para prever os casos em que se admite a edição de súmulas vinculantes , indica de modo insofismavelmente claro que as demais súmulas não são vinculantes , devendo, portanto, ser objeto de um juízo crítico do julgador, cujo resultado pode eventualmente ser o acolhimento da tese que encerra e sua aplicação ao caso concreto. 74

Confirmando a distinção entre a figura geral da súmula e a súmula vinculante, a EC 45 prevê, ainda, que as súmulas já existentes do Supremo Tribunal Federal “somente produzirão efeito vinculante após sua confirmação por dois terços de seus integrantes” (art. 8.º). 75

9.1.5. Legitimidade para a proposição de súmula vinculante

A proposta de súmula vinculante pode ser feita pelos próprios integrantes do Supremo Tribunal Federal ou pelos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. Eles também têm legitimidade para requerer a revisão ou o cancelamento da súmula vinculante (art. 103-A, § 2.º). Diz-se, nesse dispositivo constitucional, que essa é a regra, sem prejuízo do que seja estabelecido em lei.

Depreende-se, do art. 103-A, § 2.º, da CF , que não há óbice a que lei ordinária amplie esse rol de legitimados.

Diante disso, o art. 3.º da Lei 11.417/2006 permite que também “o Defensor Público-Geral da União” (inc. VI) e os tribunais (inc. XI) proponham a edição, o cancelamento ou a revisão de súmula vinculante.

Também o município poderá propor a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante. No entanto, poderá fazê-lo “incidentalmente ao curso de processo em que seja parte”. Tal pedido, no entanto, não autoriza a suspensão do processo (cf. art. 3.º, § 1.º, da Lei 11.417/2006).

Segundo pensamos, as súmulas vinculantes deveriam poder ser objeto de alteração por um sistema cuja iniciativa fosse acessível à própria parte. Não é o que se extrai do § 2.º do art. 103-A da Constituição, bem como do art. 3.º da Lei 11.417/2006 .

No entanto, tanto a Constituição (art. 103-A , caput) quanto a Lei 11.417/2006 (art. 2.º, caput) estabelecem que o Supremo Tribunal Federal poderá editar súmulas de ofício . Nada impede, assim, que, no curso de processo que esteja em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, as partes provoquem este tribunal, para que se produza, revise ou cancele súmula vinculante.

9.1.6. Efeitos da súmula vinculante

As súmulas vinculantes, diferentemente do que ocorre com a decisão que julga ação direta de inconstitucionalidade (art. 27 da Lei 9.868/1999), não têm efeitos, por si mesmas, ex tunc , no sentido de deverem estar de acordo com elas decisões de tribunais, juízes e administração pública antes de sua edição. 76 É possível, contudo, que tramitem, paralela ou sucessivamente, ação direta de inconstitucionalidade e procedimento tendente à criação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante, e no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade se profira decisão com eficácia ex tunc .

Embora a súmula vinculante, ordinariamente, produza efeitos de imediato, estabelece o art. 4.º da Lei 11.417/2006 que o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, “poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”. Pode ocorrer, assim, que algumas situações jurídicas mereçam ser preservadas, em nome de outros princípios relevantes, tais como a segurança jurídica ou a boa-fé, justificando a aplicação, pelo Supremo Tribunal Federal, da técnica da modulação temporal dos efeitos vinculantes da súmula.

Em um Estado Democrático de Direito imperam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança do cidadão. Esse princípio, consoante expõe José Joaquim Gomes Canotilho, “se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos (...)”. 77

Na esfera dos direitos privados , esses temperamentos têm como base fundamentalmente a necessidade de se proteger a boa-fé e, no plano do direito público, predominantemente, respeitar a presunção de legitimidade dos atos emanados de autoridade pública.

Partindo-se dessa observação no sentido de que as súmulas vinculantes, como regra, produzem efeitos imediatamente , portanto, ex nunc , imagina-se teria querido o legislador criar a possibilidade de que, em vez de imediatamente, passe a súmula a tornar-se vinculante num futuro próximo (dali a um ano, por exemplo). Pode-se pensar, por exemplo, ser desaconselhável a eficácia imediata da súmula, porque geraria tumulto, ou mesmo injurídica, por gerar problemas quanto à previsão orçamentária de municípios ou Estados federados.

Mas não é só. Pode o teor da súmula dizer respeito à inconstitucionalidade de determinada norma, tal como ocorreu com a Súmula Vinculante 2. A questão que surge nessa hipótese é a de que a afirmação da inconstitucionalidade, para nós, liga-se ao nascimento (isto é, à própria existência) da norma. Por outro lado, súmulas têm efeito ex nunc .

Apesar de o teor da súmula se confundir com uma “declaração” de inconstitucionalidade, de regra, produz efeitos ex tunc , mas pode o Supremo Tribunal Federal determinar que só deve ser a súmula eficaz a partir do ano seguinte. Pense-se na hipótese de ter havido vários recursos extraordinários sobre a constitucionalidade das cotas raciais. Tendo sido decidido ser inconstitucional a seleção e matrícula de estudantes em universidades públicas com base neste sistema, sendo editada súmula a respeito, pode-se estabelecer que esta não afetará aqueles que, até então, tinham se beneficiado de tal sistema, nem aqueles que, embora não estejam cursando ainda a universidade, já estivessem inscritos nos exames de vestibular, do ano em que a súmula foi editada, neste sistema, não permitindo, todavia, que em outros vestibulares, posteriores, tal situação se repita.

Ainda no art. 4.º encontra-se uma outra ferramenta criada pelo legislador no que diz respeito à possibilidade de se atenuar o impacto da súmula vinculante. A lei alude a que o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 de seus ministros, poderá (além de decidir que a súmula só tem eficácia vinculante a partir de outro momento que não o da sua edição, assunto de que antes se tratou) restringir seus efeitos vinculantes .

Merece citação, embora antigo, interessante caso em que a Súmula Vinculante “declarou” inconstitucional determinada cobrança, mas limitou temporalmente, com base no interesse público 78 , o direito à restituição dos valores pagos e, posteriormente, tidos por inconstitucionais.

No julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário XXXXX/GO, de relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 16.3.2011, modularam-se os efeitos da Súmula Vinculante 12, que “declarou” a inconstitucionalidade da cobrança de taxa de matrícula em Universidades Públicas, ressalvando o direito dos estudantes de Universidade Pública que já tinham ajuizado ação restituitória antes da data de edição da Súmula Vinculante. 79

O legislador estabeleceu aqui a possibilidade de que haja outro tipo de restrição, além da temporal . Por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público, pode ser restringida a eficácia vinculativa da súmula a pessoas ou regiões. Pode o Supremo …

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3 de Junho de 2024
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