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Tratado de Direito Administrativo: Controle da Administração Pública e Responsabilidade do Estado

Tratado de Direito Administrativo: Controle da Administração Pública e Responsabilidade do Estado

Capítulo 3. Controle Judicial

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José dos Santos Carvalho Filho

1. Conceito

Como já vimos, dependendo da natureza do controlador, o controle da Administração Pública pode ser judicial, legislativo e administrativo. A classificação baseia-se no Poder do qual se origina o controle nas duas primeiras modalidades, ao passo que a última retrata o controle executado pela própria Administração, independentemente do Poder em que se apresente.

Controle judicial, como já assinalamos em outra oportunidade, “é o poder de fiscalização que os órgãos do Poder Judiciário exercem sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário”. 1 É desde já conveniente acrescentar que a fiscalização é executada por órgãos judiciais investidos na função jurisdicional, vale dizer, no exercício da função judicante, específica desse Poder.

A característica marcante do controle judicial está no fato de que, ao pronunciar-se sobre a legalidade ou não de atos da Administração, o Judiciário decide os litígios com o caráter de definitividade. Significa que a pronúncia decisória do juiz não mais pode ser modificada a partir do momento em que se fizer presente a eficácia da coisa julgada, instituto que realça o princípio da segurança jurídica no sistema.

Por tal motivo é que, no desempenho desse controle, o Judiciário invalida atos praticados por agentes administrativos, impede a prática de outros que possam ameaçar o direito dos administrados e condena a Administração a indenizar os lesados quando sofrem prejuízo em virtude de atos de seus agentes. Na verdade, é a aplicação do postulado constitucional que reza: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 2

Importante observar que assiste inteira razão à doutrina, quando afirma que, não fosse esse tipo de controle, de nada valeriam os direitos e garantias constitucionais, que podem ser protegidos pelos vários instrumentos de controle judicial, impedindo o cometimento de abusos e arbitrariedades por parte de agentes da Administração. 3

O conceito, portanto, faz destacar os elementos básicos do controle judicial: o controlador (Poder Judiciário), o controlado (órgão administrativo) e a função exercida pelo controlador (função jurisdicional).

2. Natureza

A natureza do controle judicial busca qualificar os aspectos que caracterizam essa atividade, quando tem em vista os atos administrativos.

Sob esse aspecto, é lícito afirmar que a natureza do controle judicial retrata uma forma de fiscalização dos atos administrativos no que diz respeito à sua legalidade. Cuida-se de controle de legalidade, na medida em que compete ao órgão jurisdicional cotejar o ato administrativo com a lei, para o fim de julgá-lo válido ou inválido. O fundamento central do controle – já o dissemos – reside no princípio da legalidade, incluído no art. 37, caput, da Constituição, entre os princípios regentes da Administração Pública.

Tal fundamento é de grande relevância numa visão constitucional, porquanto, ao exigir que o ato administrativo só seja considerado válido se houver consonância com a lei, o Judiciário está, ipso facto, zelando pelo cumprimento do princípio da legalidade, com o que estará na guarda da própria Constituição.

O controle de legalidade pode conduzir a três modalidades de desfecho no que diz respeito ao ato administrativo sob controle. Primeiramente, pode o julgamento concluir pela validade integral do ato, hipótese em que este guarda inteira congruência com as normas legais e regulamentares pertinentes. Em segundo lugar, o ato pode ter vício sanável, e nesse caso o ato será passível de convalidação (ou aproveitamento), presumindo-se válidos os efeitos anteriores à correção. Por último, poder-se-á julgar no sentido da existência de vício insanável, concluindo-se no sentido da anulação (ou invalidação) do ato.

Comporta observar, contudo, que o controle judicial se limita à primeira e à terceira hipóteses, isto é, o juiz somente deve julgar o ato válido ou inválido, porque isso é o que decorre de sua função jurisdicional. A convalidação, que é forma de aproveitamento do ato inquinado de vício sanável, é instrumento próprio do controle de legalidade da própria Administração, já que por ele (a) se elimina o vício que o inquina e (b) se aproveitam os efeitos pretéritos por ele já produzidos.

Conquanto, até o momento, se tenha originado da própria Administração, a convalidação, em algumas situações, pode ser decretada também pelo Judiciário. Segundo o art. 24 do Decreto-lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), incluído pela Lei 13.655, de 25.04.2018, a decisão administrativa ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado deve levar em conta as orientações da época, vedando-se a declaração de invalidade para situações plenamente constituídas.

A natureza do controle judicial, por conseguinte, consiste em atividade de caráter fiscalizatório exercida pelos órgãos jurisdicionais sobre os atos da Administração, centrando como foco a legalidade ou não desses atos. Em outra vertente, tal controle pode ser exercido também sobre leis e atos normativos em face da Constituição, configurando-se, então, o controle de constitucionalidade. O confronto é similar: no controle de legalidade, o cotejo se dá entre atos administrativos e leis, enquanto no de constitucionalidade ocorre entre leis e a Constituição.

3. Limites

O estudo da natureza do controle judicial guarda intrínseca relação com a verificação dos limites em que pode ser juridicamente exercido, de modo a que seja legítimo dentro desses limites e ilegítimo no caso de invasão das reservas proibidas.

Por outro lado, cumpre trazer à tona os fundamentos jurídicos que servem de base a essas limitações, justificando-as ante determinadas situações levadas a cabo pela Administração.

É o que será examinado a seguir.

3.1. Valoração administrativa

Urge anotar, preliminarmente, que lavra em dias atuais grande controvérsia sobre os limites que demarcam a possibilidade jurídica do controle judicial, os quais, evidentemente, são necessários no sistema de controle, tendo em vista que nenhum Poder reina absoluto sobre os demais. A matéria, a nosso ver, tem que ser enfrentada com equilíbrio e sem radicalismos, de modo que se considere possível o controle acurado da legalidade dos atos administrativos, sem invadir o campo reservado à competência dos órgãos da Administração.

Nesse teor, é mister consignar que tal controle não pode envolver a apreciação do mérito administrativo, fenômeno que surpreendentemente tem sido alvo de profundas (e injustas) hostilidades por parte de alguns intérpretes. Embora a expressão realmente não seja um primor de exatidão no que se relaciona a seu sentido, o mérito administrativo deve ser entendido como a valoração dos aspectos de conveniência e oportunidade atribuída à decisão do administrador quando atua sob o manto do poder discricionário. Se bem o examinarmos, tal fato não causa a menor estranheza, haja vista que quem desempenha a gestão de interesses de terceiros atua, em certos momentos, com certo grau de liberdade quanto à direção a seguir.

O que se quer ressaltar é que o mérito administrativo constitui um aspecto da discricionariedade administrativa, ou do poder discricionário, no âmbito do qual o administrador tem certa margem de liberdade quanto à decisão a tomar. Entretanto, os atos decorrentes do poder discricionário – e esse é o equívoco cometido por certos intérpretes – não são imunes ao controle de legalidade. Ao contrário, devem ser praticados consoante os parâmetros legais. Mas é imperioso reconhecer que, dentro da discricionariedade, há aspectos que não vinculam diretamente o administrador e que, por isso mesmo, permitem que faça escolhas entre as várias que se lhe possam apresentar. 4

De nossa parte, já firmamos o entendimento – que, de resto, continua intacto – de que ao Judiciário “é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e oportunidade dos atos, que são privativos do administrador público”. 5 A ideia não é nova, e demonstra notória singeleza. Hely Lopes Meirelles, ao tratar do controle de mérito, afirmava que “esse controle compete normalmente à Administração, e, em casos excepcionais, expressos na Constituição, ao Legislativo ( CF/1988, art. 49, IX e X), mas nunca ao Judiciário” (grifo nosso). 6 Diógenes Gasparini adota o mesmo pensamento, esclarecendo que o controle judicial limita-se ao exame da legalidade: “Escapa-lhe, por conseguinte, o exame do mérito do ato ou atividade administrativa”. 7

Na doutrina estrangeira, o reconhecimento da autonomia administrativa para a valoração de condutas discricionárias é praticamente unânime. Os autores costumam demonstrar que o poder discricionário encerra a permissão de o administrador optar pelo melhor caminho, atendido sempre o interesse da coletividade. 8 Mas tal opção não pode ser substituída pelo órgão jurisdicional, porque a este não compete, como base, o desempenho da função administrativa. Roberto Dromi é expresso a respeito: “O controle de oportunidade está isento da fiscalização judicial, sendo ele reservado à Administração de modo privativo, por ser atividade discricionária”. 9

Uma das razões que levaram alguns autores modernos a excluir o mérito administrativo do cenário do Direito Administrativo foi certamente a extensão do controle de legalidade sobre os atos da Administração. De fato, tantos foram os abusos cometidos pelos órgãos administrativos, que a procura pelos vícios ocultos das condutas administrativas se tornou mais intensa e eficaz. No entanto, esse fato não rende ensejo à exclusão mera e simples do núcleo de valoração dos atos discricionários. É claro que o operador há de investigar sempre e sempre os bastidores do ato, mas nada vai elidir a possibilidade de, em certas situações, o administrador inclinar-se por uma entre várias opções legítimas, desde que, é claro, alvitre o interesse público.

A verdade é que, no processo histórico da discricionariedade, a Administração exercia esse poder de forma ilimitada e indiscriminada e, o que é mais grave, sem a indicação dos motivos de sua conduta. Desse modo, em nome desse poder foram cometidos vários tipos de abuso, sobressaindo o que a doutrina denominou de desvio de poder (détournement de pouvoir do direito francês), por meio do qual o administrador se vale do poder discricionário para alcançar fim diverso daquele previsto em lei. 10 Em razão desse comportamento administrativo, o abuso e a imoralidade ficam dissimulados pela aparência de legalidade do ato, causando grande dificuldade para identificar o vício de legalidade, a ponto de José Cretella Jr. concluir que nunca haveria prova contundente do vício, mas simples “sintomas denunciadores”. 11

Entretanto, ainda que, em tempos atuais, seja mais profunda a investigação de ilegalidades disfarçadas contidas nos atos da Administração, tal situação não faz desaparecer nem o poder discricionário, nem a valoração reservada ao administrador quando da prática de atos dele decorrentes. É essa valoração que se revela interditada ao controle judicial e constitui barreira de contenção para a atuação do Poder Judiciário.

A conclusão, assim, é a de que o controle judicial tem amplo poder investigatório sobre os aspectos de legalidade dos atos administrativos, mas não se estende aos aspectos valorativos que a própria lei destinou à apreciação do administrador.

Os tribunais têm marcado bem a diferença. O STJ, por exemplo, em litígio que versava sobre indeferimento de licença para tratar de assuntos particulares requerida por servidor, matéria incluída no poder discricionário da Administração, decidiu, com absoluto acerto: “O ato administrativo discricionário está sujeito a controle judicial, sobretudo no que se refere à presença de motivação, respeitados os limites da discricionariedade conferida à Administração”. 12

Nessa matéria, não há espaço para interpretações radicais. Repetimos, para deixar bem claro o nosso pensamento, que tanto é verdadeiro que os atos discricionários se sujeitam a controle judicial de legalidade, quanto também o é o fato de que aspectos valorativos desses atos refogem à apreciação do Poder Judiciário. Sempre se consagrou a premissa de que a valoração do mérito constitui função eminentemente administrativa, de modo que se lhe fosse possível atuar nessa área, o Judiciário estaria no exercício dessa função, em desacordo, portanto, com a função jurisdicional que lhe foi outorgada.

Urge, por conseguinte, examinar o caso concreto e dar a adequada e justa solução. Isso é o que requer o bom senso, com exclusão obviamente de algumas posições radicais e, a nosso ver, injurídicas.

3.2. Fundamentos

O sistema das limitações do controle judicial dos atos administrativos não é despido de fundamentos. Existem dados que demonstram claramente que seria impossível não estabelecer algumas linhas demarcatórias como limite de exercício desse controle.

O primeiro fundamento consiste no regime da separação de Poderes, consagrado no art. 2.º da vigente Constituição. De acordo com o dispositivo, tem-se o seguinte axioma: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. O dispositivo prega a independência e a harmonia dos Poderes, indicando a necessidade de conciliar essas duas qualificações.

Sem dúvida, no entanto, que o sistema reclama a preservação das competências atribuídas a cada um dos Poderes. A separação baseia-se em dois princípios fundamentais: o primeiro é a especialização funcional, indicativa de que cada Poder é especializado numa função estatal; o segundo é a independência orgânica, pela qual cada órgão deve exercer a sua função específica de forma independente, sem qualquer subordinação aos outros Poderes. 13

Partindo-se da premissa constitucional, nenhum Poder está legitimado a exercer função que pelo sistema seja conferida a outro, ressalvadas, é claro, as hipóteses previstas na própria Constituição. Com isso, tanto é vedado que administradores desempenhem função judicante, privativa dos órgãos jurisdicionais, quanto que juízes atuem na esfera própria da atividade administrativa. Afinal, é facilmente perceptível que, se o juiz pretende decidir situação de fato em lugar do administrador, substituirá a este, com indevida invasão da esfera destinada a órgãos da Administração, conforme já se antecipou.

Além do mais, o juiz, como profissional da área jurídica, sequer foi vocacionado para o desempenho de funções administrativas, de modo que provavelmente se conduzirá de modo ineficaz, sem atender aos reais reclamos da sociedade. Mediante tal desempenho, ofenderá os princípios da eficiência, já que não se sabe de seu real conhecimento sobre gestão da coisa pública, e do interesse público, na medida em que atuar em descompasso com os pleitos e anseios da coletividade.

O outro fundamento reside na discricionariedade, como poder jurídico atribuído, em todos os sistemas, à Administração estatal. Não se cuida de arbitrariedade, assim tida como vulneração à lei por meio de conduta abusiva, mas do poder inafastável que precisa ter o administrador para, em determinadas situações, eleger um entre diversos rumos legítimos. É um processo de escolha, que, se empregado sob o manto da lei, permite que a capacidade de gestão conduza a um melhor resultado, com atendimento aos interesses da coletividade.

Nos atos derivados do poder discricionário “é que incide a imunidade da interferência do Judiciário, no exame da valoração interna do ato, como bem consigna Edmir Netto de Araújo. 14 É verdade que, como diz o autor, pode a lei admitir a revisão de atos pelo Judiciário. A hipótese, porém, é raríssima e, quando a lei o faz, emprega a técnica do juízo substitutivo, figurando o juiz como verdadeiro administrador e exercendo, logicamente, função atípica. Não é essa, porém, a regra do sistema: se o ato proveio do juízo administrativo, somente outro da mesma esfera pode proceder à sua revisão.

Diante desse cenário, convém observar com muita cautela algumas investidas do Judiciário sobre a esfera reservada à Administração, na atuação denominada de ativismo judicial. Em nosso sistema, o ativismo deveria ser interpretado no sentido da efetividade do exercício da função jurisdicional dentro dos limites de sua competência, e não com a vulneração desses limites, alcançando esfera que, pelo sistema atual, pertence a outro Poder. Sem a referida cautela, o controle de legalidade poderá converter-se em verdadeiro caos e deixar sem guarida o princípio da segurança jurídica, conforme já registramos em outra oportunidade, 15 com abono da jurisprudência. 16

4. Súmulas vinculantes 2 >

A EC 45/2004 inseriu na Constituição o art. 103-A, pelo qual instituiu o sistema de súmulas vinculantes, editadas pelo STF, que retratam a posição pacificada da Corte sobre determinada matéria constitucional, após reiteradas decisões, numa indicação de que certa interpretação é a que deve ser observada em litígios e controvérsias sobre a matéria sumulada. O sistema foi regulamentado pela Lei 11.417, de 19.12.2006, à qual incumbiu proceder ao detalhamento e operacionalização do novo regime.

O objetivo do sistema é claro: mediante a consagração de determinada interpretação efetuada pela mais alta Corte, busca-se guerrear situações de grave insegurança jurídica e de multiplicação de processos versando sobre idêntico litígio. No primeiro caso, relegam-se a segundo plano outros entendimentos incompatíveis com o enunciado da súmula vinculante, passando a prevalecer apenas o que o STF definiu. No segundo, tenta-se reduzir o número de processos que assolam o Judiciário, numa escalada sem fim e sem perspectivas de adequado exercício da função judicante. Numa visão mais extrema, a súmula vinculante acaba por aproximar-se bastante da figura da lei, possuindo o mesmo caráter geral, abstrato e impessoal.

O novel instituto merece exame dentro do tema referente ao controle judicial em virtude do delineamento das súmulas vinculantes, que terão “efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, como reza o citado art. 103-A da Constituição. Quer dizer: o conteúdo da súmula não se direciona apenas ao Judiciário, mas também aos órgãos administrativos, que a ela ficarão vinculados da mesma forma.

A Lei 11.417/2006 estabelece que a decisão judicial ou o ato da administração pública que (a) contrariar enunciado de súmula vinculante; (b) negar-lhe vigência ou (c) aplicá-lo indevidamente sujeitar-se-á à medida de reclamação perante o STF, independentemente de outros recursos ou meios de impugnação (art. 7.º). Por conseguinte, a lei deixa claro que o ato administrativo não pode ter objeto diverso do que o conteúdo da súmula vinculante. Além disso, não pode recusar-lhe a vigência, nem proceder à aplicação em desconformidade com o escopo do respectivo enunciado. Sem dúvida, temos aí outro instrumento de controle judicial de atos administrativos.

Diz a lei que o uso da reclamação no caso de omissão ou ato da administração pública somente será admitido depois de esgotadas as vias administrativas (art. 7.º, § 1.º). Tal reclamação, que tem a natureza ontológica de recurso, eis que busca a revisão da conduta impugnada, não tem caráter imediato, mas condicionado e diferido. Condicionado porque depende do esgotamento da via administrativa e diferido porque decorre da circunstância de que o recurso não pode ser interposto de imediato, mas apenas a posteriori.

No que tange à via administrativa, o STF, acolhendo a reclamação, procederá à anulação do ato administrativo, desfazendo, então, o propósito da Administração quanto da prática do ato. Infere-se, pois, que tal invalidação exclui o ato do mundo jurídico, tendo em vista sua desconformidade com a súmula vinculante respectiva. À Administração não caberá alternativa senão a de cumprir a decisão judicial e, se for o caso, produzir novo ato, desta feita congruente com o enunciado definido pela Corte. 17 Tal instrumento – é mister destacar – não depende de ação judicial, tendo eficácia própria como medida autônoma. 18

Como parece óbvio, a contrariedade da omissão ou do ato com a súmula vinculante não impede o autocontrole da Administração. De fato, uma vez verificados os pressupostos da lei – contrariedade, negativa de vigência e indevida aplicação da súmula – deve o órgão administrativo dotado de competência revisional proceder à anulação do ato. Se o fizer, ficará prejudicado o requisito de admissibilidade da reclamação.

Observa-se, pois, que o sistema de súmulas vinculantes inovou também na função de controle judicial da Administração, inclusive e principalmente pela introdução de recurso específico para o exercício do controle.

Vale a pena lembrar, à guisa de esclarecimento, que o sistema das súmulas vinculantes se compõe de três iniciativas próprias: a edição, a revisão e o cancelamento. Pela primeira, institui-se a consagração interpretativa do STF; pela segunda, procede-se à alteração; e pela terceira, extingue-se o enunciado, decerto em função de nova inteligência da Corte sobre a matéria. De qualquer modo, o quorum para qualquer dessas decisões é de 2/3 dos membros do STF, em sessão plenária. 19

5. Sistemas de controle

Os sistemas de controle representam os mecanismos previstos nos ordenamentos jurídicos, tendo por objetivo a identificação dos meios pelos quais se efetiva a fiscalização quanto à legalidade dos atos da Administração. 20

Cada ordenamento constitui seu sistema com lineamentos próprios, de modo que dificilmente um deles se iguala inteiramente ao outro. Mas o exame dos sistemas leva em conta seu núcleo básico, ou seja, os aspectos que demarcam nitidamente as diferenças entre eles.

Sob esse aspecto, há dois grandes sistemas de controle: 1.º) sistema da dualidade de jurisdição (ou jurisdição dupla); 2.º) sistema da unidade de jurisdição (ou jurisdição una).

Veremos a seguir os principais pontos diferenciais entre tais sistemas.

5.1. Sistema da dualidade de jurisdição

O sistema da dualidade de jurisdição, ou jurisdição dupla, caracteriza-se pelo fato de a ordem jurídica contemplar duas esferas dedicadas à função jurisdicional – uma, a jurisdição ordinária ou comum, com competência para os litígios em geral, e outra, a jurisdição administrativa, destinada à solução de conflitos que envolvem a Administração. 21

A jurisdição ordinária é desempenhada pelo sistema do Poder Judiciário, ao passo que a jurisdição administrativa é exercida por órgãos pertencentes à própria estrutura da Administração, muito embora com poderes praticamente idêntico ao dos juízes da jurisdição ordinária. Em virtude da ocorrência e solução de litígios na via administrativa, tal sistema também é conhecido pela denominação de contencioso administrativo, exatamente porque as contendas não são julgadas no Judiciário, mas sim no sistema inserido na Administração Pública.

Georges Vedel assinala que “as regras de fundo do direito administrativo não podem ser dissociadas do contencioso, sendo, pois, inafastável a separação entre as autoridades administrativas e judiciárias, cada uma delas com sua própria competência. E exemplifica: para litígios sobre contratos privados da Administração, incide a regra de competência jurisdicional, aplicando-se o Código Civil; todavia, se a controvérsia decorrer de contratos administrativos, será competente o juiz administrativo, porquanto a teoria que rege esses contratos é inteiramente diversa da que regula os contratos privados. 22

A adoção de tal sistema no ordenamento francês – este o verdadeiro precursor – funda-se em razões históricas, como elucida André de Laubadère. Na verdade, sua origem situa-se no período pós-Revolução Francesa de 1789, época em que o estado de espírito antijudiciário se desenvolveu em contraposição à sujeição dos juízes à realeza ocorrida no ancien régime. Consolidou-se, assim, a convicção de que era necessário preservar a independência da Administração, excluindo da autoridade judicial os litígios de caráter administrativo e firmando a diretriz que interditava aos tribunais o poder de julgar os processos administrativos. 23

Na análise dos vários aspectos que compõem esse sistema, e dos quais não nos vamos ocupar por não ser pertinente ao escopo deste trabalho, é de repontar-se o fato de que nele sobressai uma característica fundamental: a duplicidade de esferas jurisdicionais, sendo uma do Judiciário comum e outra, específica, da organização administrativa. Há, pois, juízes comuns (judiciários) e juízes administrativos, ambos podendo exercer, dentro das respectivas jurisdições, sua função judicante.

Além da França, adotam o sistema Portugal, Alemanha e Suécia, e, em sua maior pureza e densidade, a Itália e a Bélgica. 24

5.2. Sistema da unidade de jurisdição

O sistema da unidade de jurisdição, também conhecido como sistema do monopólio de jurisdição ou sistema inglês, é marcado pelo fato de que “todos os litígios, administrativos ou de caráter privado, são sujeitos à apreciação e à decisão da Justiça comum, vale dizer, a que é composta de juízes e tribunais do Poder Judiciário”, segundo observação que já firmamos. 25

O núcleo desse sistema é a reserva ao Poder Judiciário da função judicante, resultando do consagrado axioma una lex, una jurisdictio. Em princípio, todos os litígios são dirimidos pelo Judiciário, não importando a natureza pública ou privada de que se revestem. É verdade que algumas exceções aparecem dentro dessa regra geral, como é o caso, por exemplo, do Senado, quando processa e julga certas autoridades por crimes de responsabilidade (art. 52, I e II, da CF/1988). Todavia, são exceções constitucionais e não desmentem a regra geral do monopólio judicante do Poder …

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23 de Maio de 2024
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