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30 de Abril de 2024

“A meritocracia é uma ilusão”, diz ex-empregada doméstica que se tornou juíza

Publicado por DR. ADEvogado
há 3 anos

No Brasil, há pessoas que morrem sem nunca terem tido um registro de nascimento. Antônia Marina Faleiros, 57 anos, escapou de ser uma delas, mas vê exemplos todos os dias. Conviveu com essa realidade quando trabalhava em um canavial, aos 12 anos, em Minas Gerais, e também ao se tornar juíza em comarcas do interior da Bahia, aos 40.

“Como juíza, reconheci um misto de miséria e exclusão que eu já tinha vivido. Algumas pessoas passam toda uma vida sem acesso à educação e saúde, muitas delas nunca tiveram um documento para reafirmar sua existência. Não julgo papel, eu julgo gente como eu”, relata.

Antônia Marina Faleiros é uma das poucas mulheres autodeclaradas negras que compõem o quadro de juízes no Brasil. Segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há apenas 6% de mulheres pretas ou pardas na magistratura. O órgão também projeta que a equidade racial no exercício da atividade jurisdicional brasileira só será alcançada no ano de 2044.

Fotos de Antônia com os pais: mãe ensinou sobre desigualdade

Nesse cenário, a presença de Antônia, muitas vezes, surpreende. “Até hoje tem gente que olha para mim e diz: ‘Dona, cadê a juíza?’. O racismo de cada dia é sutil em suas práticas, ele é travestido de uma observação engraçadinha, mas que molda todo um pensamento de uma sociedade”, diz.

Ela relata o longo caminho percorrido entre o trabalho infantil, dormir na rua, trabalhar como empregada doméstica e, atualmente, ser juíza no Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA).

A mais velha entre seis filhos de trabalhadores rurais, no interior de Minas Gerais, Antônia sempre foi vista como uma “menina esforçada”, que gostava de ler. No acampamento do canavial onde ajudava os pais, ela acendia uma lamparina em uma cabana para ler na escuridão.

Foi alfabetizada pela própria mãe, aos 8 anos. Com 17, mudou-se para Belo Horizonte para ser empregada doméstica. Lá, dormiu durante 6 meses em um ponto de ônibus. “Não podia dormir na casa da patroa. Então dizia para ela que eu morava com uma tia em um bairro distante, e, para minha mãe, que morava com a patroa. Até que uma outra empregadora me estendeu a mão”, lembra a juíza.

Antônia terminou o ensino médio e se tornou oficial de Justiça. Para estudar, ela pegava do lixo as folhas descartadas por uma editora de apostilas para preparatórios de concursos jurídicos. Nessa profissão, decidiu que queria ser juíza e começou a frequentar o curso de direito. Aos 40 anos, passou em concurso do TJBA.

“Primeiro, eu queria conseguir estudar para comprar um sapato. Depois, meu sonho era conseguir um emprego em que eu trabalhasse na sombra, que não fosse na lavoura. Depois de passar no primeiro concurso, comecei a vislumbrar o nível superior”, relata.

Antônia rejeita o título de “exemplo de meritocracia”. Esse substantivo é usado para definir o predomínio numa sociedade daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem-dotados intelectualmente etc.)

Para ela, no Brasil é impossível falar em meritocracia, já que nem todos têm as mesmas oportunidades e um caso individual de sucesso, apesar das adversidades, não pode ser usado como parâmetro.

Antônia se autodeclara uma mulher negra de pele clara

“Meritocracia é só uma cortina para encobrir o remorso de quem fecha as portas para os outros. Você fecha as portas e essa pessoa não consegue nada. Então você diz: ‘Não conseguiu porque não tinha mérito’”, diz.

Antônia define a meritocracia como uma ilusão, uma figura de retórica que não se sustenta. “Eu sou exemplo da não meritocracia. Muitos como eu não conseguiram realizar seus sonhos, por diferentes fatores. Nosso horizonte é delimitado pelo nosso ponto de observação”, descreve.

“Cresci ouvindo que quem tem a cama feita pode ser uma pessoa mais ou menos. Minha mãe sempre dizia: ‘Vocês têm que ser muito bons no que fazem’. Eu tinha que dar mil quando outros dariam só 100. Era uma pessoa semianalfabeta, do interior de Minas, ao modo dela, nos falando sobre desigualdade.”

As cotas raciais, por exemplo, são instrumentos para compensar essa desigualdade, ela defende. “Esse discurso liberal de cada um por si é perverso e predatório. É preciso, para se aferir meritocracia, aferir o ponto de partida de cada competidor. Se partiram do mesmo ponto, aí podemos falar sobre isso. Se as condições foram diferentes, pode-se falar em recompensa pela luta, mas não meritocracia.”

A diversidade é enriquecedora para o corpo social. É justo ter mecanismos que compensem as desigualdades. Não se trata de facilitar as coisas para ninguém, mas que se dê condições iguais

ANTÔNIA FALEIROS

Manual de sobrevivência

Em 30 de outubro, Antônia Marina Faleiros lançou seu primeiro livro, intitulado Retalhos, colcha de histórias para Mel dormir, dedicado à neta de 1 ano e 8 meses. São lembranças da infância permeada por dificuldades, mas também repleta de memórias afetivas.

“Eu quis resgatar o olhar infantil de quem não sabia que aquilo tinha um nome: pobreza extrema. Relato quando não tinha o que comer à noite e minha mãe fazia um chá de funcho e nós tomávamos. Ela dizia que era ótimo para não gripar. Na verdade, era porque não tinha outra coisa para tomar. Quis revisitar esse sentimento que eu tinha de achar legal ter o chá, esse cuidado”, afirma.

São memórias de uma criança que precisou trabalhar, cuidar da casa, mas também relatos de como essa mesma menina via as rezas, os remédios caseiros, os saberes populares da comunidade rural, a contação de histórias que mantinham as crianças seguras em noites de chuva forte na cabana.

“Essas histórias acabaram virando um manual de sobrevivência da tia Maria, a minha tia idosa que tinha uma expressão: o passado é igual um vagalume, de longe é bonito e até brilha. De perto é um grilinho desajeitado.”

Mel com o livro que a avó escreveu para ela

Serviço

Para adquirir o livro, basta entrar em contato com a juíza: antoniafaleiros@gmail.com

Veja o curta-metragem A origem da inspiração, da diretora Anna Azevedo, baseado na história de Antônia:

(Por Leilane Menezes / Fonte: www.metropoles.com)

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12 Comentários

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"Meritocracia" é uma excelente desculpa para o (des) governo e os hipócritas tentarem se esquivar das suas obrigações, logo, ao invés de assumir a desigualdade abissal e secular que impede a maioria de sair da semi-escravidão, terceiriza a responsabilidade com um termo que os miseráveis assalariados sequer sabem o que significa: MERIT (DO) OCRACIA. continuar lendo

Concordo, como podemos falar de meritocracia se não iniciamos a corrida do mesmo ponto de partida? No dia em que formos verdadeiramente iguais, poderemos utilizar a palavra mérito. continuar lendo

Máxima vênia ao autor do texto e a própria juíza,mas a própria história belissíma da juíza já é um exemplo de meritocracia. O mérito é a recompensa pela luta, pelo esforço que cada um realiza para alcançar o resultado desejado. Pode-se alcançar este resultado ou não alcançá-lo, mas nada substitui o esforço de cada um. Este esforço não exclui o auxílio de outras pessoas nem a correta consecução de políticas públicas. Conforme citado no texto a juíza teve a ajuda da mãe e das empregadoras; além disto soube aproveitar a oferta de vagas do sistema educacional público (acredito que tenha sido a escola pública, uma vez que não fica claro no texto). Em suma, soube aproveitar as oportunidades que lhe foram aparecendo em decorrência de seu empenho em se graduar e querer ser aprovada para a magistratura.

Como professor da rede pública de ensino, onde atuei na Educação de Jovens e Adultos (ensino médio) e também no ensino médio regular para adolescentes, observei diuturnamente alunos com histórias semelhantes à da juíza. Os alunos que aproveitavam a escola pública da melhor forma possível, se dedicando as aulas, não sendo indisciplinados etc. foram aprovados em universidades públicas e privadas ou aqueles que decidiram não ir para a universidade tiveram melhores oportunidades de emprego. Além disto, vi pais e mães de baixa renda acompanharem seus filhos até a porta da escola, frequentavam as reuniões escolares. Ou seja, os alunos cultivaram seu futuro e mereceram suas aprovações.

Os alunos que não aproveitaram suas chances, simplesmente, reprovaram várias vezes os anos escolares, demoraram a serem aprovados nos vestibulares (quando conseguiam ser) ou tinha mais dificuldade em arrumar emprego, justamente, pela postura e modo de proceder. Alguns foram presos. Ou seja, eles não alcançaram o necessário mérito exigido, diferentemente, dos outros alunos.

Nesta linha de raciocínio, afasta-se a ideia de cotas raciais. A população brasileira é muito diversificada. Ainda utilizando o sistema educacional como exemplo, tive alunos de todos os jeitos, tipos e cores de pele. Todos pegavam os mesmo ônibus ou andavam as mesmas calçadas do mesmo bairro para irem à escola. Todos estudavam nas mesmas salas de aula, tinham os mesmos professores e orientadores educacionais. Mas alguns eram focados, faziam os deveres de casa, revisavam os conteúdos dados em sala. Outros iam jogar bola ou frequentavam o funk pancadão do fim de semana. Enfim, mérito de alguns alunos, deméritos de outros.

Por fim, do ponto de vista de políticas públicas, talvez a região em que a juíza nasceu e cresceu fosse deficitária. Tal fato tornou mais dramáticas e difíceis a jornada para ela. Entretanto, não podemos esquecer que em muitos localidades, o sistema educacional, o sistema de saúde, o sistema de transporte estão bem estabelecidos para todos os cidadãos. Deste modo, cada indivíduo escolherá o que fazer com isto. continuar lendo

Tenho 76 anos, sou pardo, sofri necessidades extremas, até de falta de alimentos, não conclui o 2º grau simplesmente por que não quis. Dei preferência a evoluir no emprego, o que me proporcionou estar passando os últimos dias da minha vida, de forma confortabilíssima e ainda ajudando filhos com mais de 40 anos. Nunca encontrei dificuldades para estudar. Estudei em escolas públicas nos primeiros anos e, escola particular de ótima qualidade, nos anos seguintes, através de bolsa de estudo conquistada. Jamais me senti discriminado. E confesso, nunca fui tão esforçado, dedicava o mínimo possível de esforço capaz de atingir o objetivo. continuar lendo

Faltou-me dizer que Adriano Sotero Bin está absolutamente certo. Com todas as mazelas, as políticas públicas permitem, a qualquer um, com pouco esforço conseguir sucesso. É verdade que já foi melhor (anos 50 e 60). Os "pais dos pobres" estragaram muita coisa. continuar lendo

É incrível e estarrecedor como um colega de profissão, que vê diariamente realidades apresentadas pela juíza, consegue ter um raciocínio tão raso e limitado sobre as dificuldades enfrentadas por pessoas em situações vulneráveis e, ainda por cima, tange críticas às supostas "escolhas" que essas pessoas fizeram sem o mínimo de consideração aos seus universos particulares, coisa que o tal "professor" escolhe ignorar por pura incapacidade ou simples falta de empatia. Estudos em sociologia permitiriam ao exímio colega refletir sobre seus pontos de vista e interpretar a realidade tão próxima em que vive. Porém, caso o dedicado educador que diuturnamente se dedica a análises sociais tão superficiais tenha alguma queixa à sociologia, poderia simplesmente analisar os dados, gráficos e números que apontam friamente aos casos de sucesso entre negros, pobres, favelados, índios (sim, eles existem! :O) e, talvez, com base em uma avaliação tão racional possa, finalmente, entender o que a gloriosa Juíza deixou tão claro em seu texto para aqueles que leem com alguma sensibilidade. continuar lendo

Erroneamente muita gente - inclusive, supostamente esclarecida - confunde a luta contra a desigualdade com “dar moleza” a determinados grupos. A “meritocracia” existe quando se parte de pontos iguais, conforme já pontuado em outros comentários e no próprio artigo. Do contrário ela não existe. continuar lendo