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30 de Abril de 2024

A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude - Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel

há 15 anos

Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio e MACIEL, Silvio. A teoria da "ratio cognoscendi" e a dúvida do juiz sobre as excludentes de ilicitude . Disponível em http://www.lfg.com.br. 11 de março de 2009.

Sobre a relação (ou o grau de relação) entre o fato típico e a ilicitude formaram-se várias correntes doutrinárias, com repercussões práticas no âmbito processual, especialmente, na questão do ônus da prova e do princípio do in dubio pro reo . Dentre as teorias referidas podemos destacar:

a) Teoria da autonomia ou absoluta independência pela qual a tipicidade não tem qualquer relação com a ilicitude, de tal sorte que ocorrido o fato típico, não se pode afirmar que ele é presumidamente ilícito, ainda que seja uma presunção relativa (isso ocorreu no tempo do causalismo e, sobretudo, na construção de Beling, em 1906);

b) Teoria da indiciariedade ou da "ratio cognoscendi " pela qual se há fato típico, presume-se, relativamente, que ele é ilícito; o fato típico é o indício da ilicitude (Mayer, 1915), que deve ser afastada mediante prova em contrário, a cargo (leia-se ônus) da defesa. Ao contrário da primeira corrente, não há aqui uma absoluta independência entre esses dois substratos do crime, mas uma relativa interdependência;

c) Teoria da absoluta dependência ou "ratio essendi ": cria o conceito de tipo total do injusto, levando a ilicitude para o campo da tipicidade. Em outras palavras, a ilicitude é a essência da tipicidade, numa absoluta relação de dependência entre esses elementos do delito. Não havendo ilicitude, não há fato típico (Mezger, 1930);

d) Teoria dos elementos negativos do tipo: tem o mesmo resultado prático da teoria anterior, embora com ela não se confunda (como, aliás, faz parcela da doutrina), porque construída sob bases diferentes. Por essa teoria, o tipo penal é composto de elementos positivos ou expressos (que são as clássicas elementares do tipo penal) mais elementos negativos ou implícitos do tipo (causas excludentes de ilicitude). Para que o fato seja típico os elementos negativos - excludentes de ilicitude - não podem existir. Aqui também há uma absoluta relação de dependência entre fato típico e ilícito, um pressupondo a existência do outro (Merkel etc.).

Pois bem. No Brasil, em que pesem entendimentos em contrário, a doutrina e a jurisprudência majoritárias ainda se inclinam pela segunda das teorias apontadas, qual seja, a teoria da indiciariedade ou da "ratio cognoscendi " (que foi ratificada, posteriormente por Welzel). Em termos práticos, significa afirmar que ocorrido o fato típico, ele é presumidamente ilícito (presunção relativa). Por essa teoria não é ônus da acusação provar a inexistência de causa excludente de ilicitude, mas tão somente que o fato é típico. Cumpre à defesa provar a existência da descriminante e, portanto, a licitude do fato típico e, consequentemente, a inexistência de crime.

O raciocínio doutrinário até aqui referido parece correto e adequado à teoria da indiciariedade. Mas no campo processual, essa teoria da "ratio cognoscendi" deve ser analisada à luz do princípio do estado de inocência e de seu corolário principal, o princípio "in dubio pro reo ". Isso significa dizer que para ser absolvido o acusado não precisa provar a existência da excludente de ilicitude, mas tão somente demonstrar a probabilidade da ocorrência da causa justificante.

Na precisa lição do saudoso Borges da Rosa, a acusação tem o ônus de apresentar provas de certeza, mas a defesa tem o ônus de apresentar apenas provas de probabilidade, de verossimilhança, de credibilidade, que causem dúvida (dúvida razoável) ao juiz, justamente porque tem a seu favor o axioma do "in dubio pro reo " [ 1 ], intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, a impedir condenações de pessoas inocentes. No dizer de Vicente Greco Filho, o ônus da defesa é um ônus diminuído, mitigado. O ônus da defesa tem "tamanho" menor do que o ônus da acusação.

Com efeito, ao criar dúvida no juiz sobre a existência ou não da descriminante, a defesa já cumpriu integralmente seu ônus probatório, é dizer, já afastou a certeza necessária sobre a ilicitude do comportamento típico que deve haver para que se possa condenar. Dito de outra forma, se o juiz, com as provas apresentadas na instrução pela defesa, estiver ao final da demanda em dúvida sobre a existência ou não da descriminante, isso significa que a defesa cumpriu seu ônus de provar a excludente, mediante um juízo de probabilidade, suficiente para afastar a presunção da ilicitude do fato típico imposta pela teoria da ratio cognoscendi .

A propósito, o saudoso Mirabete, ao analisar a questão do ônus da prova, acertadamente coloca que "com a adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), conforme Decreto n. 678 , de 6-11-92, vige no país a regra de que 'toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa (art. 8º , 2 , da Convenção). Dessa forma, atribuída à acusação o dever de provar a culpa do réu, impõe-se sua absolvição mesmo na hipótese de restar dúvida quanto à procedência das alegações da defesa " [ 2 ] (destaques nossos).

Realmente, se a defesa conseguir demonstrar a probabilidade de ter ocorrido uma situação justificante do fato típico a ensejar dúvida inafastável no julgador, estará mantido o estado de inocência estabelecido constitucionalmente (art. , LVII da CF) e no Pacto mencionado, devendo o juiz absolver o acusado. A presunção de ilicitude do fato típico determinada pela teoria da "ratio cognoscendi " estará afastada e a constitucional presunção de inocência mantida, equação da qual deverá redundar a improcedência da demanda penal.

Esse entendimento se reforça ainda mais com as recentes alterações do Código de Processo Penal . O art. 386 , V , do CPP dispunha que o juiz deveria absolver o réu quando existisse circunstância excludente do crime. O atual art. 386 , VI do CPP (inciso alterado pela Lei 11.690 /2008) dispõe agora que o juiz deve absolver o acusado quando "existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre suas existência "(destaque nosso). Parece-nos absolutamente claro que se a defesa criar para o juiz a dúvida sobre a existência ou não da excludente de ilicitude terá cumprido integralmente seu ônus probatório, devendo o juiz absolver o réu por expressa determinação do art. 386 , inciso VI , parte final, do CPP . Aliás, o raciocínio é válido para qualquer situação: seja porque o réu fez alguma prova que gerou a dúvida, seja porque a acusação não afastou de forma inequívoca a dúvida sobre a existência da excludente. Em qualquer hipótese de dúvida, cabe ao juiz absolver.

É certo que para a absolvição sumária do acusado, o novo artigo 397 , I , do CPP (com redação determinada pela Lei 11.719 /08) exige a "existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato"; mas para a absolvição após regular instrução, basta, conforme referido, "fundada dúvida sobre a existência" da causa justificante. Essa sistemática adotada pelas reformas do Código de Processo Penal , a propósito, é plenamente justificável. A absolvição sumária enseja um juízo precário de mérito que equivale a uma quase rejeição da inicial acusatória, sem qualquer aprofundamento na instrução processual, sem sequer a produção de provas pela acusação. Somente, portanto, uma evidência sobre a existência da excludente trazida pela defesa nessa fase inicial do processo pode autorizar, prematuramente, a absolvição do acusado. Diferentemente se passa ao final da instrução probatória. Se após o esgotamento de todas as fases possíveis do procedimento remanescer a dúvida no magistrado sobre a existência ou não de excludente de ilicitude, isso equivale à falta de provas para condenar, devendo ser aplicado o princípio "in dubio pro reo "(estampado, expressamente, também no art. 386 , VI , parte final, do CPP , especificamente quanto às justificantes e dirimentes).

Não é correto, portanto, afirmar, como se tem dito, que se o juiz estiver em dúvida se houve ou não, v.g, situação de legítima defesa, deve condenar o acusado, pois a defesa tinha o ônus de provar a existência da excludente e não a provou. E se não cumpriu seu ônus não pode se prevalecer do princípio "in dubio pro reo ".

Se a defesa provar a existência da excludente de ilicitude é óbvio que a absolvição se impõe; mas se demonstrar a probabilidade da excludente de ilicitude ter ocorrido, ensejando dúvida no julgador, isso já basta para a improcedência da ação penal. Essa nos parece a equação acertada entre a teoria penal da "ratio cognoscendi "e a questão do ônus probatório quanto às excludentes de ilicitude e a mais adequada ao constitucional princípio do estado de inocência e de seu consectário lógico, o princípio"in dubio pro reo " [ 3 ].

Tudo quanto acaba de ser dito vale integralmente para a decisão dos jurados (no Tribunal do Júri). Em caso de dúvida, impõe-se a absolvição do réu.

1. Processo Penal Brasileiro. Porto Alegre: Oficina Gráfica da Livraria do Globo - Barcellos, Bertaso & Cia. Editora, 1942, v. 1, p. 414.

2. Processo Penal. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 258.

3. Nesse sentido é que escreve Antonio Magalhães Gomes Filho: "o legislador de 2008 não se preocupou em modificar a parte inicial do art. 156 - que aparentemente atribui um ônus da prova também para a defesa -, mas, ao estender explicitamente o in dubio pro reo para os casos em que a prova sobre a existência de causas de exclusão de antijuridicidade ou culpabilidade é duvidosa, inovou de forma a adequar a lei ordinária ao mandamento constitucional". In: As Reformas no Processo Penal, coord. Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora RT, 2008, p. 293.

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Brilhante exposição. continuar lendo

Muito bom, valeu, estudando a Teria Analítica do Crime, já vi Fato Típico, agora estou em Fato Ilícito, antijuridicidade. continuar lendo

Prático, direto e esclarecedor. continuar lendo

Que texto! continuar lendo