Competência ratione muneris: entre dúvidas e incertezas
Por Vilvana Damiani Zanellato
O dilema relacionado à competência penal ratione muneris não é novidade. Em um “vai e volta”, o Supremo Tribunal Federal apresenta decisões variáveis: ora se entende competente para apreciar e julgar determinadas pessoas que não detém prerrogativa de foro em razão da função, ora não.
A polêmica, em matéria penal, decorre da possibilidade de haver conexão ou continência tocante à persecução em que figure, simultaneamente, no polo passivo litisconsortes penais com e sem referido “privilégio”.
Há tempos vem-se ressaltando que a leitura a ser dada à competência diversa – não só da Suprema Corte, mas de todos os Tribunais que originariamente julgam réus detentores dessa prerrogativa – é a de que somente deve prevalecer nas hipóteses em que a infração penal cometida guarde relação com a função que determina a prerrogativa e pelo tempo em que o réu nela permanecer[1].
Parece, no entanto, que cada vez mais se dá amplo alcance à essa competência. Cada vez mais, os Tribunais, por seus órgãos colegiados, vêm assumindo uma competência que, em tese, não lhes é conferida, ao menos constitucionalmente.
As razões dessa extensão quanto à competência dos Tribunais não são uniformes e estáveis. Em alguns casos, alega-se que é necessário o julgamento em conjunto em decorrência da produção de provas, em outros, do risco de proferir-se decisões conflitantes.
Os fundamentos não justificam: nada impede que a prova produzida em um processo seja aproveitada em outro, desde que haja o contraditório, ainda que diferido; na ocorrência de conflito de decisões, eventual injustiça ou desacerto, sem a mínima dificuldade, há de ser alterado em grau de recurso, até mesmo de ofício. Caso assim não ocorra, erros podem e devem ser corrigidos pela via da revisão criminal.
Não bastasse toda essa amplitude pertinente à competência originária em ações penais, aos que não possuem a chamada prerrogativa e quanto a qualquer tipo delituoso – tema para se discutir em inúmeras “terças” –, tem-se constatado alguns posicionamentos no sentido de que outras condutas (não penais) também devem ser apreciadas fora do Juízo de Primeiro Grau.
Sabe-se a confusão criada em relação ao equívoco do tratamento dado aos “crimes” de responsabilidade definidos na Lei nº 1.079/50 e no Decreto-lei nº 201/67.
Primeiro, os “crimes” de responsabilidade, assim definidos na Lei nº 1.079/50, não são “crimes” na concepção da tipicidade penal. São infrações político-administrativas. Tais condutas não são julgadas pelo Poder Judiciário, mas sim pelo Poder Legislativo.
Segundo, os crimes de “responsabilidade”, assim definidos no Decreto-lei nº 201/67 (exceto o que dispõe o art. 4º), não são meras infrações político-administrativas. São crimes na concepção da tipicidade penal. Tais condutas são julgadas pelo Poder Judiciário e não pelo Poder Legislativo.
Essas mesmas condutas, seja de ordem penal seja de ordem política, podem, ainda, configurar ato de improbidade administrativa e devem ser julgadas pelo juízo cível.
E quanto aos atos de improbidade administrativa, a imaginação fértil de alguns intérpretes criou um mito sobre o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação nº 2.138.
Apontado precedente definiu que, apesar da índole não penal, compete à Suprema Corte julgar Ministros de Estado na hipótese de crime de responsabilidade[2]. Essa diretriz em momento algum remete aos tribunais, mesmo que de outras instâncias, a competência, com foro privilegiado, aos demais agentes políticos, pela prática de atos de improbidade.
O cerne da questão, aliás, restou bem delineado no julgamento do Agravo Regimental na Ação Cautelar nº 3.585[3], em que o Supremo Tribunal Federal alerta para o fato de que é inviável afastar o processamento da ação referente ao ato de improbidade, sob pena de se reconhecer a tolerância a atos ímprobos, diante da impossibilidade doimpeachment em razão do término do mandato eletivo do agente.
O precedente não deixa margem de dúvidas quanto à aplicação das normas contidas na Lei nº 8.429/92, para fins de apuração de atos de improbidade. E consigna mais: dá enfoque à competência do Juízo de Primeiro Grau para proceder ao referido julgamento mesmo àqueles que detém a prerrogativa em decorrência da função quanto às infrações penais.
Toda essa (con) fusão faz com que se conclua pelas seguintes premissas:
1ª em matéria penal, somente devem ser julgadas perante os Tribunais pessoas que detenham prerrogativa em razão da função e por condutas praticadas no exercício e em razão da respectiva função; há que se afastar extensões a coautores ou partícipes sem a prerrogativa;
2ª em matéria de infrações político-administrativas, o Supremo Tribunal Federal, até o momento, somente decidiu que haverá a prerrogativa em razão da função aos Ministros de Estado;
3ª o processamento penal e o procedimento de impeachment não afastam o ajuizamento de ação pertinente a ato de improbidade administrativa, que deverá (essa última) tramitar no Juízo de Primeiro Grau, pouco importando a existência de prerrogativa em outras searas do Direito.
Tais considerações, sabidamente divergentes de boa parte doutrinária, refletem o entendimento de que os Tribunais, em especial as Cortes Superiores, devem se ocupar dos julgamentos que lhe incumbem nos moldes da Constituição e não de casos, e mais casos, individualizados.
Qualquer extensão, concernente à competência fora dos moldes previstos na Lei Fundamental, levam à interpretação de que, de modo seletivo, está se conferindo privilégio pessoal em detrimento da igualdade e do equilíbrio entre os cidadãos, totalmente fora e despropositado do atual contexto republicano.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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[1] Sobre o tema: vide FISCHER, Douglas. Prerrogativa de Foro e Competência Originária do Supremo Tribunal Federal: Uma (re) leitura dos preceitos da Constituição Brasileira como forma de maximização do Princípio Republicano da Isonomia.In A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Temas Relevantes. ZANELLATO, Vilvana Damiani (Coord.). Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 101-35.
[3] “MEDIDA CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL” – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – AGENTE POLÍTICO – COMPORTAMENTO ALEGADAMENTE OCORRIDO NO EXERCÍCIO DE MANDATO DE GOVERNADOR DE ESTADO – POSSIBILIDADE DE DUPLA SUJEIÇÃO TANTO AO REGIME DE RESPONSABILIZAÇÃO POLÍTICA, MEDIANTE “IMPEACHMENT” (LEI Nº 1.079/50), DESDE QUE AINDA TITULAR DE REFERIDO MANDATO ELETIVO, QUANTO À DISCIPLINA NORMATIVA DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI Nº 8.429/92)– EXTINÇÃO SUBSEQUENTE DO MANDATO DE GOVERNADOR DE ESTADO – EXCLUSÃO DO REGIME FUNDADO NA LEI Nº 1.079/50 (ART. 76, PARÁGRAFO ÚNICO) – PLEITO QUE OBJETIVA EXTINGUIR PROCESSO CIVIL DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, EM RAZÃO DE, À ÉPOCA DOS FATOS, A AUTORA OSTENTAR A QUALIDADE DE CHEFE DO PODER EXECUTIVO – LEGITIMIDADE, CONTUDO, DE APLICAÇÃO, A EX-GOVERNADOR DE ESTADO, DO REGIME JURÍDICO FUNDADO NA LEI Nº 8.429/92 – DOUTRINA – PRECEDENTES – REGIME DE PLENA RESPONSABILIDADE DOS AGENTES ESTATAIS, INCLUSIVE DOS AGENTES POLÍTICOS, COMO EXPRESSÃO NECESSÁRIA DO PRIMADO DA IDEIA REPUBLICANA – O RESPEITO À MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO PRESSUPOSTO LEGITIMADOR DOS ATOS GOVERNAMENTAIS – PRETENSÃO QUE, SE ACOLHIDA, TRANSGREDIRIA O DOGMA REPUBLICANO DA RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS – DECISÃO QUE NEGOU SEGUIMENTO À AÇÃO CAUTELAR – INTERPOSIÇÃO DE RECURSO DE AGRAVO – PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA POR SEU IMPROVIMENTO – RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, j. Em 2-9-2014, DJe-211 de 24-10-2014)
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