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27 de Maio de 2024
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    Análise acerca da (in)constitucionalidade da instituição do voto impresso no Brasil

    Publicado por Kathleen Karnal
    há 3 anos

    A garantia constitucional do voto secreto foi introduzida ao ordenamento jurídico brasileiro pela primeira vez com o Código Eleitoral de 1932, acompanhado de outras modalidades de prevenção de fraudes, tais como a instituição do título de eleitor, sem identificação por foto à época. Logo em seguida, com as alterações do Código Eleitoral que passaram a vigorar em 1955, foram instituídos o foro eleitoral, a identificação por foto e as cédulas de eleição para o registro do voto.

    A matéria assumiu particular relevância com a promulgação da Constituição de 1988 que estabeleceu as garantias fundamentais relativas ao voto em seu artigo 14, nos termos que abaixo transcritos:

    Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

    I - plebiscito;

    II - referendo;

    III - iniciativa popular.

    (...)

    Diante de tal transcrição, observa-se que restou introduzida a garantia constitucional expressa ao voto direto e secreto no rol dos direitos políticos, enumerados no capítulo III da Constituição Federal de 1988 que versam acerca das garantias fundamentais.

    Cabe pontuar que o voto direto, universal, secreto e periódico foi expressamente consignado como Cláusula Constitucional Pétrea, conforme previsão do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, inclusive com previsão diferenciada dos demais direitos fundamentais, fato esse que denota a sua relevância no animus legis da Carta Magna.

    Nessa senda, evoca-se que o status de direito fundamental, diante da hermenêutica constitucionalista, atribui ao instituto do voto secreto a natureza principialista, isso é: a natureza de critério de interpretação. Na doutrina do professor José Afonso da Silva[1]:

    Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que eles concretizam garantias de uma convivência digna, livre e igual a todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.

    Por esse motivo, os direitos fundamentais também são chamados de direitos públicos ou de prerrogativas individuais, devendo ser observados nas formulações das leis e, podendo, inclusive, ser evocados como critério de invalidade das demais normas existentes no ordenamento jurídico pátrio.

    Sobre a natureza generalista dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, ressalta-se a lição do professor e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau[2]:

    Estamos a nos referir aos princípios gerais de Direito, tanto explícitos recolhidos no texto da Constituição ou da lei, quanto aos implícitos, indeferidos como resultado da análise de um ou mais preceitos constitucionais ou de uma lei, ou conjunto de textos normativos da legislação infraconstitucional.

    Isso significa dizer que a observância aos direitos fundamentais, em sentido constitucional, é o elemento próprio que permite a natureza estatal republicana.

    Aplicando-se tal lógica especificamente a questão do voto secreto, vale transcrever a doutrina do professor José Afonso da Silva[3] também a esse respeito:

    O principio republicano não deve ser encarado do ponto de vista puramente formal, como algo que vale por sua oposição á forma monárquica. Ruy Barbosa já dizia que o que discrimina a forma republicana não é apenas a coexistência dos três poderes, indispensáveis em todos os governos constitucionais, mas, sim a condição de que sobre existirem Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, os dois primeiros derivem, realmente de eleições populares. Isso significa que a forma republicana implica a necessidade de legitimidade popular do Presidente da República, Governadores de Estado e Prefeitos Municipais (arts. 27, 29, I, 44, 45 e 46), eleições periódicas por tempo limitados que se traduz na temporariedade dos mandatos eletivos (arts. Cits.) e, conseqüentemente, não vitaliciedade dos cargos políticos, com prestação de contas da administração pública ( arts , 30, III, 31, 34, VII, d, 35 II e 70 a 75)

    Destacada a natureza jurídica da garantia do voto secreto e a sua importância dentro da organização jurídica pátria, com o fito de se analisar a constitucionalidade das medidas de instituição do voto impresso no Brasil, é necessário realizar-se uma digressão técnica em relação às medidas concretas cuja constitucionalidade foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal.

    Nesse sentido, traz-se a luz que a Lei nº 10408/2002 que, por sua vez, alterou a Lei nº 9.504/1997, estabelecendo normas com o intuito de ampliar a segurança e a fiscalização do voto eletrônico, estabelecendo, em seu artigo , a impressão das cédulas de voto que sofreu fortes críticas, sobretudo diante da significativa alteração em comparação com o projeto de lei (PLS 194/99), sendo a principal discussão acerca da abertura de brechas na segurança e confiabilidade do sistema eleitoral.

    Além da Lei nº 10408/2002, importante ainda destacar a Lei nº 12.034/2009, que foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4543/DF, na qual se entendeu que a impressão de registro de voto com registro de associado à assinatura do eleitor viola de maneira expressa a garantia ao voto secreto e que a impressão do registro do voto, mesmo sem identificação do eleitor, vulnera a inviolabilidade do voto, conforme a ementa que abaixo se transcreve:

    CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. ART. DA LEI N.12.034/2009: IMPRESSÃO DE VOTO. SIGILO DO VOTO: DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO. VULNERAÇÃO POSSÍVEL DA URNA COM O SISTEMA DE IMPRESSÃO DO VOTO: INCONSISTÊNCIAS PROVOCADAS NO SISTEMA E NAS GARANTIAS DOS CIDADÃOS. INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

    1. A exigência legal do voto impresso no processo de votação, contendo número de identificação associado à assinatura digital do eleitor, vulnera o segredo do voto, garantia constitucional expressa.

    2. A garantia da inviolabilidade do voto impõe a necessidade de se assegurar ser impessoal o voto para garantia da liberdade de manifestação, evitando-se coação sobre o eleitor.

    3. A manutenção da urna em aberto põe em risco a segurança do sistema, possibilitando fraudes, o que não se harmoniza com as normas constitucionais de garantia do eleitor.

    4. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. da Lei n. 12.034/2009.

    Também em relação à matéria, importante citar a Lei nº 13.165/15, impugnada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.889/DF que, por sua vez, adotou entendimento mais amplo, no sentido de que a mera impressão do registro de voto é suficiente para afrontar a garantia ao voto secreto. Confira-se:

    CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. LEGITIMIDADE DOCONGRESSO NACIONAL PARA ADOÇÃO DE SISTEMAS EPROCEDIMENTOS DE ESCRUTÍNIO ELEITORAL COM OBSERVÂNCIA DAS GARANTIAS DE SIGILOSIDADE E LIBERDADEDO VOTO (CF, ARTS. 14 E 60, § 4º, II). MODELO HÍBRIDO DE VOTAÇÃO PREVISTO PELO ART. 59-A DA LEI 9.504/1997.POTENCIALIDADE DE RISCO NA IDENTIFICAÇÃO DO ELEITORCONFIGURADORA DE AMEAÇA À SUA LIVRE ESCOLHA. INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.

    Ademais, importante ainda ressaltar a Proposta de Emenda Constitucional nº 135/2019 que visa a alteração do artigo 14, § 2º, da Constituição Federal para que seja obrigatória a impressão do registro de voto, com a expedição de cédulas físicas.

    Embora tal projeto ainda esteja em trâmite, atualmente perante a Câmara dos Deputados, observa-se que, em que pese a sua aparente incompatibilidade material com a hermenêutica constitucional, há a possibilidade técnica de adoção de ambos os entendimentos quanto à configuração de inconstitucionalidade.

    Isso porque, conforme a redação do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal, apenas “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” o voto direto, secreto, universal e periódico, sendo suficiente a mera interpretação, pelo quórum estabelecido no caput do já citado artigo 60, de que não há tentativa de se abolir o voto secreto por meio da Emenda Constitucional.

    Nesse sentido, importante transcrever o entendimento ventilado pelo Relator da Proposta de Emenda Constitucional em seu parecer:

    A proposta atende aos requisitos constitucionais do art. 60, § 4º, do da Constituição Federal, não se vislumbrando em suas disposições nenhuma tendência para abolição da forma federativa do Estado, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação dos Poderes ou dos direitos e garantias individuais.

    Ocorre que, em que pese possível a adoção de tal entendimento, à Luz da técnica constitucional, trata-se de fundamentação pouco prudente, sobretudo diante da hierarquia das normas constitucionais e da natureza principialista dos direitos fundamentais, especialmente os direitos políticos que se vinculam diretamente à opção republicana do Estado Brasileiro.

    Assim, conforme já pontuado, é necessário que se leve em consideração que a atribuição expressa e diferenciada de natureza pétrea a esses direitos fundamentais denota a sua relevância no animus legis da Carta Magna, motivo pelo qual a alteração dessa cláusula fundamental e com alteração limitada em sentido contrário à jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, ao qual foi atribuído administrativamente o papel de guardião da Constituição, viola logicamente a organização normativa nacional.

    Feitas tais considerações, sintetiza-se que há a possibilidade técnica de adoção de ambos os entendimentos quanto à configuração de (in) constitucionalidade, no entanto, a melhor hermenêutica jurídica impõe a observância do animus legis da Carta Magna, motivo pelo qual reclama o reconhecimento da inconstitucionalidade material das medidas que busquem a instituição do voto impresso no país, levando-se em consideração o reiterado entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal de que a impressão de registro de voto vulnera à garantia constitucional do voto secreto.


    [1] SILVA, José Afonso da Silva. Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 178

    [2] GRAU, Eros. Ensaio sobre a Interpretação aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 44

    [3] SILVA, Jose Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. P. 103-104

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