Da patente inconstitucionalidade do tratamento da tentativa na lei dos crimes hediondos
É sabido, por todo jurista que trabalha com Direito Penal, que nossos tribunais superiores (STF HC 118.533/MS e STJ HC 457419/SP) não consideram o “Tráfico Privilegiado” (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006) e o “Homicídio Qualificado-Privilegiado” como crimes hediondos.
No caso do “Tráfico Privilegiado”, o STJ, fixou tal premissa em recurso repetitivo, julgado em 2016 pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, seguindo entendimento do Supremo Tribunal Federal, o que, inclusive, levou ao cancelamento da SÚMULA Nº 512, cujo enunciado se transcreve:
STJ - Súmula 512
A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas.
(Súmula 512, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/06/2014, DJe 16/06/2014)
Ocorre que esse tal “privilégio”, sabemos, nada mais é que causa de diminuição de pena (natureza jurídica) – porquanto não se estabelecem novos limites mínimos e máximos dentre o quantum de sanção cabível.
Idêntico fenômeno ocorre em relação ao homicídio qualificado-privilegiado, onde temos um homicídio qualificado por uma qualificadora de natureza objetiva (art. 121, § 2º, III ou IV) e a incidência da redução de pena proveniente do art. 121, § 1º - também considerado não hediondo pelos nossos tribunais.
Nesse sentido, julgado de 1999:
EXECUÇÃO PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. COMUTAÇÃO DA PENA. CRIME HEDIONDO. Por incompatibilidade axiológica e por falta de previsão legal, o homicídio qualificado-privilegiado não integra o rol dos denominados crimes hediondos.
Recurso não conhecido.
(STJ – REsp: 180694 PR 1998/0048896-0, Relator: Ministro Felix Fischer, data de julgamento: 02 de fevereiro de 1999, T5 – Quinta Turma, data de publicação: DJ 22 de março de 1999 p. 229, STJ vol. 117 p.509)
Ora, enquanto tal “privilégio” leva a uma redução de pena entre 1/6 e 2/3, a tentativa (art. 14, II e parágrafo único) leva a uma redução de pena de 1/3 a 2/3 (sensivelmente maior, na menor redução, que a menor redução do “privilégio”).
Só a título de observação, 1/3 é igual a 2/6.
E mais, enquanto na tentativa o resultado não se consuma. No homicídio qualificado-privilegiado o resultado se consuma.
Ora, se temos um homicídio qualificado consumado no homicídio qualificado-privilegiado e se ele é incompatível axiologicamente com a hediondez por conta da redução de pena, chame do que quiser fato é que o nomen iuris não se confunde com a natureza jurídica do instituto, qual a lógica de se conferir um tratamento mais rigoroso a um homicídio que não se consumou e que abstratamente confere uma pena, em tese, menor que a do homicídio qualificado-privilegiado?
Parece haver uma incompatibilidade entre esse entendimento e a teoria objetiva-realística que adotamos para a tentativa, já que tanto o desvalor da ação quanto o desvalor do resultado na tentativa parecem menores que no homicídio qualificado com redução por “privilégio”, notadamente pela não consumação do delito e pela maior redução mínima da pena - maior que a do “privilégio”.
Assim, se para a tentativa de homicídio qualificado a hediondez se revela inconstitucional, por conta de razões ínsitas à natureza do instituto, a palavra “tentados” do art. 1º da lei de crimes hediondos deve ser considerada inconstitucional, sob pena de patente desproporcionalidade do sistema penal de aplicação da pena e consequente execução.
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