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17 de Junho de 2024

Estupro: A irrelevância do contato físico para a caracterização do delito

Artigo produzido para apresentar no Encontro de iniciação á pesquisa jurídica.

Publicado por Danielle Oliveira
há 7 anos

ESTUPRO: A IRRELEVÂNCIA DO CONTATO FÍSICO PARA CARACTERIZAÇÃO DO TIPO PENAL.

Daniele Oliveira Almeida*

Ingridi Emanuela Rodrigues Soares*

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar e expor uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) relacionada ao delito de estupro de vulnerável que indica uma possível mudança nos julgados. Para isso o leitor irá fazer um breve passeio pela história, partindo-se de considerações preliminares sobre o delito de estupro com o advento do primeiro código criminal do Brasil, analisando sua evolução histórica e como se deu seu atual conceito, particularmente após a alteração legislativa promovida pela Lei nº 12.015/09. Posteriormente, serão feitas abordagens de decisões do STJ que mais repercutiram nacionalmente, as quais sinalizaram que nem sempre esse foi um órgão vanguardista, mostrando no presente momento ser inovador através de suas decisões excepcionais. Ao final, discute-se a necessidade de criação de um tipo penal para enquadramento de condutas violadoras da dignidade sexual do vulnerável que devem ser reprovadas pelo direito mesmo que não exista o contato físico, fazendo uma crítica sobre a relevância do contato físico para caracterização do delito.

PALAVRAS-CHAVES: DELITO DE ESTUPRO; ESTUPRO DE VULNERÁVEL; DECISÃO EXCEPCIONAL; CONTATO FÍSICO.

INTRODUÇÃO

O estupro é um dos crimes sexuais mais graves e possui inúmeras interfaces. Todas têm em comum os danos pessoais (moral, físico, psicológico e sexual). Destaca-se negativamente por ser um dos crimes mais repulsivos e que causa náuseas na população. Entretanto, na contemporaneidade, existem comportamentos que ofendem a dignidade sexual de outrem, e por vezes são mascarados e ditos como normais. Por isso faz-se necessário à construção desse trabalho, pois visa analisar racionalmente casos concretos em que acontece o dano a vítima para compreender se pode ser enquadrado no delito de estupro.

Diferente do que a maioria pensa, o estupro não está necessariamente ligado à pobreza e a miséria, mas revela-se nas mais distintas classes sociais. É reflexo de uma construção cultural, onde os aspectos da cultura influenciam a prática do crime, como o tratamento desigual entre homens e mulheres, adultos e crianças, brancos e negros, ricos e pobres. É onde a violência vai surgir, como produto dessas relações construídas de forma desigual (BOCHI e FIGUEIREDO, 2016).

Dada tal complexidade que envolve a questão do abuso sexual e tendo em vista que a sexualidade sempre foi um tema polemizado e por isso as discussões sobre o assunto são carregadas de preconceitos e crendices, este artigo visa quebrar um tabu ao mostrar um panorama geral, percorrendo a evolução histórica desse crime no ordenamento jurídico brasileiro a partir da criação do código criminal. Objetivando extrair aspectos sociais, culturais, políticos e jurídicos e como estes influenciaram a construção do atual conceito de estupro e como ainda influenciam decisões judiciais a todo tempo.

Por fim, a problematização se dá em torno da controvérsia acerca da relevância ou não do contato físico para caracterização do delito de estupro de vulnerável, onde existem reiteradas decisões que convergem para uma interpretação de que para ter o crime é necessário o contato com a vítima e a violência comprovada por meio de exames de corpo de delito. Contudo, em meio a tanta desproteção de menores vulneráveis, os quais frequentemente têm sua dignidade sexual atingida de maneira inaceitável, este trabalho destaca a importância de uma decisão excepcional sobre o assunto, haja vista que existem atos libidinosos que, manifestamente, configuram o delito em questão, já que a dignidade sexual do vulnerável é incontestavelmente violada, hipóteses em que o agente deve ser responsabilizado pelos seus atos.

1. BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE O CRIME DE ESTUPRO APÓS O ADVENTO DO CÓDIGO CRIMINAL DO BRASIL

Após a proclamação da república em 1822 e o Constitucionalismo sendo disseminado pelas nações, o Brasil passou por uma série de modificações em matéria de legislação penal, especialmente após o advento da Constituição do Império brasileiro em 1824 que em seu artigo 179, inciso XVIII propôs em urgência a criação de um Código Criminal, “fundado nas sólidas bases da Justiça, e Equidade”. É importante ressaltar ainda, o posicionamento do ilustre Camargo (2005, p.139): “De fato, o art. 179 da mesma constituição é um manancial abundantíssimo dos princípios de justiça e equidade, reconhecidos pelo direito moderno como os únicos que devem servir de apoio às boas leis”.

O estupro é um crime previsto em todos os ordenamentos jurídicos dos povos civilizados. Em 1830 surge o primeiro código penal brasileiro, tipificando condutas criminosas relacionadas ao tema. A idade torna-se relevante para certos tipos penais, surgindo então uma noção de proteção diferenciada para menores de 17 anos e apontando para uma ideia inicial de estupro de vulnerável. As penas para o estupro eram de prisão e pagamento de um dote a vítima, se esta fosse mulher honesta. Caso o sujeito passivo do crime fosse mulher da vida, a pena de prisão de 3 a 12 anos seria reduzida para 1 mês a 2 anos, mostrando uma diferenciação mais branda que refletia a descriminalização dessas pessoas na sociedade da época. Contudo, não se aplicava pena para aquele que se casasse com a ofendida. Vejamos:

O código criminal de 1830, no capítulo dos crimes contra a segurança da honra, compreendia o coito com mulher virgem, menor de 17 anos (art. 219), a cópula, mediante violência ou ameaças, com qualquer mulher honesta (art. 222) e a sedução de mulher honesta, menor de 17 anos, com cópula carnal (art. 224). A pena do estupro, mediante violência ou ameaça, era mais grave: prisão de 3 a 12 anos e, cumulativamente, dote da ofendida. O art 222 estabelecia a redução de pena para 1 mês a 2 anos se a vitima fosse prostituta (SIQUEIRA. 1951, p. 231).

Em 1890, o Código Republicano fez algumas alterações na legislação penal vigente. Representou um marco no ramo do Direito Penal, tendo em vista que a denominação “estupro” foi consagrada e restrita à prática da conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Vale destacar que um dos objetivos desse código era a ressocialização do criminoso, com isso houve um abrandamento das penas e consequentemente a abolição da pena de morte que estava prevista entre as penas do código criminal. O crime está tipificado nos dispositivos abaixo:

Da violência carnal

(...)

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena – de prisão cellular por um a seis anos.

§ 1º Si a estuprada for mulher pública ou prostituta:

Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous anos.

(...)

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não. Por violência entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ther, e em geral os anesthesicos e narcóticos.

Observa-se que além da violência física a mulher deveria ser honesta e mostrar através de alguma resistência que não comungava com o ato. Esse seria o requisito para diferenciação entre mulheres honestas e desonestas. Além disso, nesse tipo penal mais uma vez há a diminuição de pena para as mulheres públicas ou prostitutas. Nota-se, ainda, que o art. 269 esclarece os tipos penais explicando o conceito de estupro e violência para fins desse delito.

Por fim, o delito de estupro no código penal de 1940, estava inserido no Titulo VI, “Dos crimes contra os costumes”, Capítulo I, “Dos crimes contra a liberdade sexual”, com a seguinte redação: “Art. 213 Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de três a oito anos.” Observa-se que é retirada a condição de mulher virgem e honesta, assim pode-se falar que houve um maior amparo legal às vítimas desse crime, contudo ainda persiste a ideia de que o estupro somente poderia ser cometido por homem e que apenas a mulher poderia ser sujeito passivo do delito.

No decorrer do tempo, várias foram às alterações no código penal e no tipo penal do estupro. Destaca-se dentre elas, a mais recente, ocorrida com o advento da Lei nº 12.015/09, que proporcionou mudanças importantes principalmente em sua nomenclatura, onde o Título VI da parte especial “Dos Crimes Contra os Costumes” passou para “Dos crimes contra a Dignidade Sexual”, mantendo o Capítulo I “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”. Com a nova redação, não é mais feita distinção de gênero, podendo assim, o homem ser o sujeito passivo do crime, bem como a mulher o sujeito ativo. Além de incluir a prática do ato libidinoso. Vejamos:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 06 (seis) a 10 (dez) anos (Redação dada pela Lei nº 12.015 de 2009).

§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 2o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009).

Tais mudanças no tipo penal em estudo foram benéficas, para saber disso basta verificar as diferenças entre a Lei revogada e a que está em vigência: O dispositivo já revogado preocupava-se tão somente com a virgindade da mulher e o comportamento sexual da mesma, onde elas eram consideradas objeto no campo sexual, além de demonstrar um forte preconceito e ir de encontro ao princípio da isonomia, ao alcançar somente o sexo feminino. A Lei revogada também não tinha nenhuma atenção aos interesses e desejos femininos, pois não eram ouvidos pelo direito e nem pela própria sociedade. Sob, tal perspectiva, será feita uma análise mais detalhada do delito em estudo nos próximos capítulos.

2. O DELITO DE ESTUPRO COM O ADVENTO DA LEI 12.015/2009

O código penal brasileiro foi criado pelo Decreto-lei 2.848/1940 e desde a sua criação muitas foram às mudanças, com o objetivo do direito de acompanhar a dinâmica social. Uma das mais importantes foi feita com o advento da Lei 12.015/09, sendo esta, responsável por muitas modificações nos crimes sexuais. Além da criação de novos tipos penais foi feita a mudança de nomenclatura do título VI da parte especial do Código Penal. A respeito disso, o doutrinador Fernando Capez explica:

Frisa-se também que, com a nova redação da Lei 12.015/2009, o título que antes se denominava “Dos crimes contra os costumes”, passou para “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Essa mudança foi uma grande revolução a respeito da proteção que se buscava com a antiga denominação. Isso porque antes se visava uma proteção aos bons costumes, uma moral almejada pela sociedade, ou seja, buscava-se saciar o interesse de terceiros como bem relevante. Com a constante evolução da sociedade, fez-se necessária a concepção de um novo bem jurídico a ser tutelado, sem ter como relevância os padrões éticos buscado pela antiga sociedade já defasada, mas sim a relevância da dignidade do indivíduo que sofre o risco dos atos sexuais (CAPEZ, 2012).

Os crimes contra os costumes já não compactuava com os valores e princípios das pessoas e da sociedade. A expressão “crimes contra os costumes” em um Estado Democrático de Direito já se tornava ultrapassada, pois indicava, sobretudo, uma linha de comportamento sexual imposto pelo Estado por conveniências e disciplinas sociais, de cunho conservador (MASSON, 2016). Apontava-se para os hábitos da vida sexual e se referia a moral pública da época, que já não se harmonizava com o sistema democrático, cujo um dos objetivos é assegurar a pluralidade de comportamentos e opiniões sem serem lesados, tão pouco com a sociedade que pugna pela tutela da liberdade e não de uma pretensa moral.

É oportuno lembrar que a luta das mulheres para serem reconhecidas e respeitadas, vem de longas datas. Por vezes foram vítimas de arbitrariedades do Estado, em que não tinham proteção contra as atrocidades machistas cometidas contra elas. Contudo, através de muito empenho, esforço e mérito, conquistaram seu espaço na sociedade. Por certo o princípio da isonomia, conceituado no caput do art. da Constituição Federal faz parte dessa história, pois foi responsável por estabelecer que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. Esse foi um marco para a substituição de um quadro machista insustentável (MASSON, 2016).

Com efeito, em razão do princípio da isonomia, a lei penal não poderia mais estabelecer distinções entre homens e mulheres baseados apenas no gênero. Assim, ambos tornam-se passíveis de serem autores ou vítimas do delito de estupro. Tendo por como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que constitui fundamento do Estado Democrático de Direito. Vale ressaltar que não se trata, portanto, de uma divisão de sexos, pois esta dignidade decorre da própria natureza humana, em que a dignidade não é um empréstimo do Estado, mas sim inerente a todas as pessoas, como mostra Marco Antônio Marques da Silva:

A dignidade decorre da própria natureza humana, o ser humano deve ser tratado sempre de modo diferenciado em face da sua natureza racional. É no relacionamento entre as pessoas e o mundo exterior e entre o Estado e a pessoa que se exteriorizam os limites de interferência no âmbito desta dignidade. O seu respeito, é importante que se ressalte, não é uma concessão do Estado, mas nasce da própria soberania popular, ligando-se à própria noção de Estado Democrático de Direito (SILVA, 2001, p.1).

Sob tal enfoque, o Estado Democrático de Direito tem como função a disposição de valores democráticos aos quais devem ser respeitados. Esses valores estão positivados no texto da carta magna e irradiam para todo o ordenamento jurídico. É fato que a constituição de 1988 é posterior ao código penal e por isso responsável por mudanças substanciais nos tipos penais. Além da dignidade própria da pessoa humana, de sua composição física e psíquica, é importante ressaltar dentre os valores democráticos, a liberdade, como um bem caro para a sociedade e por isso merecedor de tutela penal.

Essa liberdade é exteriorizada de várias maneiras, ou seja, tem uma pluralidade de aspectos. Dentre eles, destaca-se para o presente trabalho, a liberdade sexual, fruto da dignidade sexual como aspecto da dignidade da pessoa. Tal bem jurídico encontra-se no texto normativo do código penal de 1940, no Título VI, capítulo I “Dos crimes contra a liberdade sexual”, podendo ser conceituada como um direito de expressar e exercer sua sexualidade, de forma livre conforme seus motivos, no sentido de que pode optar pela prática ou não do ato desejado, escolher quando e com quem terá suas relações sexuais. Sobre o tema, Nélson Hungria frisa:

A disciplina jurídica da satisfação da libido ou apetite sexual reclama, como condição precípua, a faculdade de livre escolha ou livre convencimento nas relações sexuais. É o que a lei penal, segundo a rubrica do presente capítulo, denomina de liberdade sexual. É a liberdade de disposição do próprio corpo no tocante aos fins sexuais. A lesão desse bem ou interesse jurídico pode ocorrer mediante violência (física ou moral) ou mediante fraude (1954, p.102).

Compreende-se assim que para a convivência social é necessário o respeito ao outro, em todos os aspectos inclusive em suas vidas sexuais. Por isso, o Estado como responsável por assegurar os bens jurídicos, que vão desde a esfera patrimonial até a sexual, deve criar meios para proteção da dignidade sexual das pessoas, resguardando de violências, grave ameaças ou exploração.

Outro aspecto que merece atenção é que não houve abolitio criminis, mas sim a unificação em um único delito, dos crimes outrora tipificados nos artigos 213 (Estupro) e 214 (atentado violento ao pudor) do código penal, onde ambos tinham como núcleo o constrangimento mediante emprego de violência ou grave ameaça. Este é mais uma diferença advinda da lei 12.015/2009, onde através da revogação formal do art. 214, o alcance do estupro foi ampliado, proporcionando um amparo legal mais amplo a todas as vítimas, viabilizando maior segurança.

Desse modo, é oportuno conceituar o estupro e embora seja um conceito variável entre as culturas, o comum entre as definições é a prática de um agressor invadir o corpo de outrem, sem o seu consentimento. Atualmente, encontra-se definido no art. 213 do código penal que diz: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A respeito disso, a sexóloga Eustáquia (2016, Rádio Inconfidência) descreve:

Estupro, coito forçado ou violação, é a prática não consensual do sexo, imposto por meio de violência ou grave ameaça de qualquer natureza por ambos os sexos. Ele consiste em qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, envolvendo ou não penetração. (...) A legislação brasileira é rigorosa. Enquadra-se na definição de estupro qualquer “ato libidinoso”, seja ele penetração, apalpação ou beijo forçado.

Explicitamente o que se entende por estupro hoje no Brasil, é todo e qualquer ato, seja por meio de coito anal, vaginal, oral ou o algum toque que venha a ofender e ameaçar a liberdade sexual de alguém, mas devem-se atentar as novidades trazidas com o advento da Lei 12.015/12, conforme foi relatado no artigo ‘‘Novo tipo Penal de estupro: Formas típicas qualificadas e concurso de crimes’’:

Por sua vez, o novo tipo penal deve ser classificado como estupro comum, para distingui-lo da nova figura do estupro de pessoa vulnerável, devendo este ser visto como um tipo penal especial de estupro. O estupro comum apresenta-se em sua forma simples ou básica, nas formas típicas qualificadas pelo resultado prescritas nos parágrafos 1º e , do art. 213, do CP. (LEAL; LEAL, 2012).

Além das mudanças descritas acima, anteriormente a lei nº 12.015/2009 o código penal, no art. 224, regulamentava a presunção de violência em relação aos menores de catorze anos, pessoas “alienadas” ou “débeis mentais” ou por quem não podia oferecer qualquer tipo de resistência. Este dispositivo trouxe muitos impasses, pois se começou a relativizar essa presunção de violência, levando a diversos questionamentos, como a relevância do consentimento da vítima para absolver o réu, assim como, seu histórico sexual.

2.1. NOVO TIPO PENAL DO ART. 217-A “ESTUPRO DE VULNERÁVEL” DECORRENTE DO ADVENTO DA LEI 12.015/2009

Com o advento da lei nº 12.015/2009 houve a inclusão do tipo penal do art. 217-A, denominado “Estupro de Vulnerável”. O novo dispositivo passou o enfoque para a dignidade sexual, e a exploração sexual de crianças e/ou adolescentes, independente de gêneros, diferente da redação anterior que estava em pauta apenas a sua liberdade sexual. Vale ressaltar que para a doutrina, vulnerável é aquele que de forma absoluta não tem discernimento suficiente para consentir com os atos. Contudo, o legislador estabeleceu quem são os protegidos pelo tipo penal, como mostra o caput e o parágrafo primeiro do art. 217-A:

217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caputcom alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 2o (VETADO) (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 4o Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

O objeto jurídico deste crime é a dignidade sexual da vítima, não a liberdade sexual, pois não se discute se a vítima consentiu ou não os atos. A ação penal é pública incondicionada (Capez, 2014). Por Violência entende-se o emprego da força física. A grave ameaça é a iminente possibilidade de praticar o mal, seja físico ou psíquico, contra outrem.

A conjunção carnal é a relação sexual entre homem e mulher. De acordo com Alberto Jorge Testa Woelfert “é a cópula pênis-vagina e tão somente esta. As outras cópulas não caracterizam conjunção carnal. Há necessidade de penetração”. De acordo com esse pensamento entra uma questão conflitante, a de que nessa modalidade há apenas a chance de uma relação heterossexual ser considerada como estupro.

Entende-se que o ato libidinoso é tudo aquilo diverso da conjunção carnal. É toda conduta capaz de satisfazer a vontade sexual do sujeito ativo. Segundo Grecco, na expressão “outros atos libidinosos” estão contidos todos os atos de natureza sexual, que não a conjunção carnal, que tenha por finalidade satisfazer a libido do agente (GRECCO, 2011).

O real objeto desse artigo é a luta pelo fim da violência sexual contra os vulneráveis, tendo como bem juridicamente protegido o desenvolvimento sexual desses indivíduos. Para isso o legislador acabou com o debate, se houve ou não violência, juntando o estupro e o atentado violento ao pudor em um só tipo, sem menção da violência presumida. Isso mostra que houve uma evolução legislativa no Brasil, onde o Código Penal de 1940 foi refletindo uma nova concepção de infância, visando compartilhar socialmente a ideia de cuidado e responsabilidade pela preservação do ser em desenvolvimento, pelo fato de serem dotados de particularidades e cuidados especiais.

A nova Lei tem o menor de 14 anos como um vulnerável absoluto no caput do artigo 217-A onde não se exclui o crime se a vítima for do gênero masculino ou pelo seu histórico sexual, mas no caso concreto (nos tribunais) há julgados em que o réu foi absolvido por haver entendimentos de a vítima poderá ter sua vulnerabilidade em duas modalidades: absolutamente ou relativamente.

A respeito disso ocorreram divergências entre tribunais estaduais e o Superior Tribunal de Justiça. Uma juíza do Tribunal Goiás absolveu o réu acusado de estupro de vulnerável, segundo ela a vítima já não era uma incapaz absoluta, tendo em vista que já se relacionou afetivamente com outros homens e consentia os atos. Como se pode constatar o histórico afetivo da vítima parece ser legítimo sempre que há de se justificar os atos de um réu. No entanto é importante frisar as idades, e que o fator de idade mínima para ter relações afetivas e sexuais tem um propósito, a vulnerabilidade do impúbere. Com isso tem-se um trecho da explicação da Juíza Placidina Pires:

De fato, numa sociedade moderna, com o amadurecimento precoce dos jovens, resultante do maior acesso às informações de massa e ao conhecimento, inclusive de temas relacionados à sexualidade, que não são mais vistos como tabu, não se mostra razoável desconsiderar as particularidades de cada caso concreto, e partir de uma premissa absoluta de que o menor de 14 anos, tão somente em função de sua idade cronológica, não possui capacidade suficiente para consentir com a prática do ato sexual (PIRES, 2016).

Segundo Nucci, “atenta-se para os termos de presunção de vulnerabilidade quando for absoluta, não há como se fazer prova ao contrário; já a presunção de relativa admite provar em contrário, logo, o acusado terá direito à defesa” (NUCCI, 2013). Para os adeptos da vulnerabilidade relativa é cabível analisar o histórico de vida da vítima, bem como a intenção do acusado.

Esse julgado é contrário ao informativo 568 expedido pelo Superior Tribunal de Justiça, que teve como intenção a pacificação entre tribunais estaduais, onde estava sendo comuns decisões em que o réu, acusado de estupro de vulnerável, estava sendo absolvido com base em análises meramente subjetivas, como o passado sexual da vítima ou a intenção do próprio réu sobre os atos praticados contra o impúbere. No entendimento do STJ as experiências sexuais da vítima não constitui motivo para absolver o réu. Veja o relatório do informativo feito pelo Ministro Rogério Schietti Cruz:

Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos; o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime. Inicialmente, registre-se que a interpretação jurisprudencial acerca do art. 224, a, do CP (antes da entrada em vigor da Lei 12.015/2009) já vinha se consolidando no sentido de que respondia por estupro ou por atentado violento ao pudor o agente que mantinha relações sexuais (ou qualquer ato libidinoso) com menor de 14 anos, mesmo sem violência real, e ainda que mediante anuência da vítima (Min. Rogerio Schietti Cruz, 2015).

Para os defensores da vulnerabilidade absoluta não existe uma análise subjetiva, devendo então ser aplicado o que está descrito no Código Penal. Em virtude da alteração no Código Penal trazida pela Lei nº. 12.015/09 a corrente da presunção absoluta teve seus pontos de vista fortalecidos pelo legislador, pois este ao criar o novo tipo penal denominado estupro de vulnerável e revogar o art. 224-A prezou pela objetividade ao determinar no caput do art. 217-A que o sujeito passivo é o menor de 14 anos, não fazendo referência ao histórico de vida sexual da vítima, nem qualquer outra análise subjetiva que possa vir a absolver o réu.

Feitas as principais observações acerca do tema, o próximo estágio desse trabalho é analisar decisões judiciais sobre a temática. Esse momento é de suma importância tendo em vista que os julgados fixam uma linha de interpretação do texto penal, pois é o momento de aplicação da lei penal aos casos concretos.

3. AS POSSÍVEIS MUDANÇAS JURISPRUDÊNCIAS FRENTE AO STJ

Antes de tudo, é importante explicar que a jurisprudência é de suma valia no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que em países referentes à tradição romano-germânica, como é o caso do Brasil, essa é uma fonte secundária do direito que tem o poder de influenciar decisões judiciais futuras. Pode ser conceituada nas palavras de Diniz, como o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultante da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em sua atividade jurisdicional (Diniz, 1993). Outro aspecto importante da jurisprudência é que esta serve para evitar que uma questão doutrinária fique permanentemente aberta e incerta. Essa fonte formal mediata também ajuda em partes a desafogar o lento sistema judiciário, tendo em vista que surge como um meio de suprir a demanda do sistema judiciário, uma vez que são subsídios valiosos ao magistrado que poderá aplicar em uma situação análoga. Quando surge uma jurisprudência de um tribunal superior tem-se mais respaldo do que tribunais de primeira instância.

Nesse sentido, o capítulo visa mostrar decisões do Superior Tribunal de Justiça - STJ, sendo este a última instância da justiça brasileira para julgar casos infraconstitucionais, objetivando analisar controvérsias nas decisões relativas aos casos de estupro de vulnerável, onde a comunidade jurídica por vezes é surpreendida com decisões relativas a crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes que revelam uma tendência a absolvição dos acusados.

A variabilidade de decisões judiciais acerca desse tema ainda hoje é constante, pois há a necessidade de tribunais superiores voltarem à questão devido ao grande número de ocorrências. Esse número chega perto dos 537 mil estupros por ano, no Brasil, segundo levantamento Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea). No entanto, o crime é um dos menos denunciados no país, uma estimativa de que apenas 10% dos casos cheguem à polícia, ou seja, 90% nem sequer são investigados. Contudo, os que chegaram a ser notificados em 2011 mostram que, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, e que mais da metade tinha menos de 13 anos de idade (Ipea, 2014).

Parece importante frisar que muitas vezes o centro da questão nos crimes sexuais encontra-se na discussão da interface entre o ato apontado como criminoso e a moral sexual da vítima, ou seja, ainda hoje são feitas análises de um quadro fático de onde por vezes o advogado de defesa do acusado tenta extrair algum indício de consentimento da vítima, analisando seu comportamento prévio e até mesmo fazendo menção ao seu amadurecimento sexual. Na lastimável tentativa de desconstruir a essência criminosa do ato através de tentativa de descaracterizar a vulnerabilidade da vítima.

Esse cenário influencia na subnotificação do crime, uma vez que os cumpridores da lei deveriam ser os responsáveis por dar mais tranquilidade aos ofendidos. Mas na prática o que se constata é que a maioria se sente constrangida com a forma como são abordados pelos profissionais de segurança. Isso mostra que os órgãos de segurança, o Estado e a sociedade, por vezes estão sendo falhos no cumprimento de seu papel. O qual, segundo o artigo 227 da Constituição de 1988 é o dever de se movimentar para assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, diversos direitos, entre eles o da dignidade, além de serem responsáveis por garantir que não sejam alvos de discriminação, exploração, violência ou crueldade.

Nesse momento, faz-se importante ver uma decisao de 2014 que faz menção à palavra da vítima, onde nesse julgado recorrido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o réu foi absolvido pela ausência de provas. Não é de se estranhar que "os fatos eram nebulosos", pois o agente levou a vítima para um lugar ermo onde não se poderia ter prova testemunhal. Os ministros concordaram que a palavra da vítima é importante quando não se há outros meios de provas, mas ainda sim o recurso especial foi julgado improcedente mostrando que somente a palavra da vítima não tem força de incriminação. Vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO EM SEDE DE APELAÇÃO. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 1 - Em delitos sexuais, normalmente praticados na clandestinidade e sem testemunhas presenciais, a palavra da vítima é de extrema relevância, desde que corroborados pelos demais elementos probatórios. 2 - O acórdão absolutório destacou que "os fatos afiguram-se nebulosos", que "a prova é frágil", que "inexiste a requestada prova inconcussa para edição de sentença de natureza condenatória" e que "o toque sobre a roupa na parte pudica da ofendida até pode ser ocorrido, mas, nas circunstâncias, não se pode dizer que se deu com o escopo de desafogar a lascívia". 3 - Concluindo a instância ordinária, soberana na análise das circunstâncias fáticas da causa, em absolver o recorrido, o enfrentamento dessa conclusão exigiria revolvimento aprofundado da prova, vedado em recurso especial, a teor da Súmula n. 7 do STJ. 4 - Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no REsp: 1360940 SP 2013/0008364-1, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 04/09/2014, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/09/2014)

Pode-se afirma que isso é fruto de uma construção histórica enraizada na dúvida quanto à palavra da vítima, que analisamos supra no capítulo de evolução histórica, onde a mulher deveria provar que era honesta. Refletindo nos dias atuais, em que por vezes existe o julgamento da sociedade e até mesmo dos agentes de segurança pública, que ao invés de questionarem o ato criminoso em si, continuam insistindo na mesma tecla quanto ao comportamento da vítima, o qual não é o cerne da questão nos crimes sexuais.

Nota-se ainda, que o réu foi absolvido também pelo entendimento do ministro Neri Cordeiro de que o toque sobre a roupa da criança não se deu com o intuito de desafogar lascívia, mesmo sendo na parte íntima e no momento em que não tinha ninguém por perto, circunstâncias que por si só não configura o delito. Sobre esse assunto, posteriormente, no ano de 2015 foi julgado o seguinte:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL CONSUMADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. FATOS INCONTROVERSOS NOS AUTOS. DESCLASSIFICAÇÃO PARA FORMA TENTADA. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. - Não viola o princípio da colegialidade a apreciação unipessoal, pelo relator, do mérito do recurso especial quando obedecidos todos os requisitos para a sua admissibilidade, bem como observada a jurisprudência dominante desta Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal. - Encontra-se consolidado, no Superior Tribunal de Justiça - STJ, o entendimento de que "o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que caracteriza o delito tipificado no revogado art. 214 do Código Penal, inclui toda ação atentatória contra o pudor praticada com o propósito lascivo, seja sucedâneo da conjunção carnal ou não, evidenciando-se com o contato físico entre o agente e a vítima durante o apontado ato voluptuoso" (ut, AgRg no REsp 1.154.806/RS, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe de 21/03/2012). - Impossibilidade de desclassificação do delito para a forma tentada, sob o argumento de menor lesividade da conduta, como procedeu o acórdão recorrido de modo contrário ao entendimento desta Corte Superior, não sendo o caso de reexame fático-probatório. Agravo regimental desprovido.

Observa-se que a sexta turma entende nesse julgado, como em outros, que o contato físico é importante para evidenciar e assim configurar o artigo 217-A do Código Penal brasileiro. Eis que surgiu uma decisão excepcional em 2016 tomada pela quinta turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde se discute algo inovador: a relevância do contato físico em crimes de estupro de vulnerável. Essa decisão é de extrema importância, pois pode vir a pacificar todos os tribunais estaduais em julgados do artigo 217-A. Vejamos a ementa:

DIREITO PENAL. DESNECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DE AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL.

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. No caso, cumpre ainda ressaltar que o delito imputado encontra-se em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena. (RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik)

Os ministros da quinta turma demonstram um interesse na questão psicológica. A respeito disso sabe-se que o predador sexual não se excita exatamente e apenas com o contato físico entre as genitálias ou outras partes dos corpos. Há evidências de que o estuprador por vezes sente prazer na situação da qual a vítima está vulneravelmente exposta. A adrenalina, os sentimentos de submissão da vítima como medo, vergonha e negação também satisfazem a libido do agente ativo nos crimes contra a dignidade sexual. Um exemplo lúcido dessa tese foi o tenebroso estupro coletivo que aconteceu recentemente em São Paulo, onde uma jovem teve seu corpo violentado por pedaços de cana-de-açúcar usados pelos agressores (BARBOSA, 2016).

Não obstante em fazer uma breve análise do comportamento de um predador sexual, há de se investigar também as condições psicológicas da vítima. Vejamos um trecho do artigo caracterização do abuso sexual em crianças e adolescente:

Assim, a criança, quando não assistida, fica sozinha, abandonada à sua sorte e às suas possibilidades psíquicas, com a formação de sua personalidade comprometida, especialmente quando as figuras parentais, que poderiam ser os pilares, a sua base sólida de sustentação, são perversamente introjetadas e, de dentro, passam a dominar as suas ações psíquicas (CAPITÃO, 2008).

É um dever Constitucional que a sociedade tem em proteger as crianças e adolescente, possivelmente pensando em como os abusos sexuais afetam a psique e formação de um impúbere que o Superior Tribunal de Justiça decidiu por dar uma sentença mais severa aqueles que usam da boa-fé de menores para atingir seus objetivos. Vejamos alguns comentários feitos pelos ministros do Supremo Tribunal de Justiça. O ministro Joel Illan Parciornik em seu voto disse que:

“A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido (Parciornik, 2016).

Para o ministro Ribeiro Dantas a situação denunciada pelo Ministério Público preenche os requisitos da legislação brasileira em seu artigo 217-A do código penal. O mesmo ministro também expõe que é indispensável não considerar que a vítima sofreu abalos emocionais. O ministro Jorge Mussi, embora ache que a situação é delicada e deve-se refletir se o contato físico é relevante ou não e diz que a denúncia apresentada pelo Ministério Público é válida e suficiente.

Essa decisão excepcional da qual originou este artigo foi fruto de um processo tramitado em segredo de justiça, o qual o acusado submeteu criança a tirar a roupa para contemplar o corpo da jovem mediante pagamento. Vale ressaltar que o elemento subjetivo é o animus do agente de praticar a conduta. Se a vontade de agente era satisfazer sua lascívia contemplando jovem nua, não há que se falar em descriminalização ou absolvição do acusado, pois sem dúvidas esse caso não poderia ser mais um dos que caem na esfera da impunidade. É importante frisar que a questão referente ao contato físico não se tornou jurisprudência, falou-se em irrelevância do contato físico para a caracterização do crime de estupro a vulnerável em uma decisão excepcional a qual revela uma possibilidade plausível de mudança.

CONCLUSÃO

Conforme foi relatado ao longo do artigo, o crime de estupro em si não mudou o que mudou foi à forma como passou a ser tratado socialmente e as penas. No Brasil império tinha-se a ideia de que uma mulher desonrada não poderia ser agraciada com a Lei que punia o estupro. Além disso, uma herança que se perpetuou foi à crença de que o sujeito do sexo masculino não poderia ser a vítima na violência sexual. Entretanto, foi com vigência da Lei nº 12.015 de 2009 que a regulamentação do delito afastou distinções entre as vítimas, podendo a partir de então ser qualquer pessoa.

Nesse processo, buscou-se demonstrar que o estupro é um crime reprovável e de grande gravidade principalmente quando se trata de pessoas vulneráveis. Para isso, foi demonstrada a ocorrência de casos em que não há a violência física, mas há inegável violência psíquica dos vulneráveis, que são chamados assim pelo fato de ainda não possuírem discernimento suficiente para decidir sobre atos relacionados à suas vidas sexuais e por isso devem ser protegidas pela lei e pela sociedade.

O trabalho também trás a importância das fontes que o juiz pode se fundamentar para proferir uma sentença. Além da lei, que é a fonte primária do ordenamento jurídico brasileiro, destacamos a jurisprudência como uma fonte essencial e que ajuda na dinâmica incansável do Direito em ser coerente com a realidade. Nesse sentido, pode-se afirmar que a preocupação dos guardiões da justiça e a própria justiça, convergem para a proteção da dignidade sexual da vítima. Prova disso é que ao longo da história foi-se modificando o tipo penal, na medida em que se entendia que as vítimas de estupro necessitavam de mais proteção.

Assim, fala-se da necessidade de alteração do tipo penal, pois se constata que em diversas decisões o órgão superior em questão menciona que contato físico é relevante, por vezes absolvendo os acusados quando não há esse elo, dando assim grande margem para impunidade. Nesse cenário, dois grandes problemas são constatados, a desproteção dos menores que estão sendo vitimas dessa modalidade de satisfação da libido e o número crescente de ocorrências, tendo em vista que a impunidade incentiva a pratica do crime.

Por isso, destacou-se uma decisão recente e excepcional onde o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou um caso concreto e decidiu que não há que se exigir, necessariamente, o contato físico entre agente e vítima para que o crime de Estupro de Vulnerável se configure. Na citada decisão o agente levou uma menina, menor de 14 anos, ao motel, e a obrigou a se despir, sem, contanto, seguir no caminho ignóbil da prática sexual forçada.

Entretanto, é oportuno lembrar que há um paradigma que deve servir de suporte para subsunção do fato ao tipo penal do artigo 217-A, do Código penal: qualquer que seja o ato praticado pelo agente, deve ser constatada sua real finalidade, que nos casos de estupro é a satisfação da lascívia. Em outras palavras, o agente necessariamente, procurar satisfazer seu desejo sexual, sensualidade exacerbada, sua libido. Essa é uma premissa básica que não pode, em hipótese alguma, ser deixada de lado.

Ademais, essa decisão inovadora pode vim a pacificar que para agente ativo ser enquadrado no artigo 217-A do código penal o contato físico não será um fator dispensável, nem abolido, mas caminha-se para deixar de ser um fator decisivo. Como foi visto nos julgados há muitos indivíduos que buscam satisfazer seu desejo concupiscente usando menores de 14 anos. Assim, este artigo tem a finalidade, não de defender que em todos os casos o crime seja enquadro no estupro, mas sim que haja punição sempre que a dignidade sexual do menor for atingida de maneira inquestionável, para isso faz-se necessário observar a intenção e atitude do agente perante a vítima e que este seja responsabilizado por seus atos.

Em suma, diante da problemática exposta onde há casos em que os réus são absolvidos por não ter o contato físico, mesmo tendo este atingido o bem jurídico protegido, faz-se necessária a análise de cada caso concretamente, pois acredita-se que esses devem nortear a interpretação da norma penal. Com isso, objetiva-se uma punição correta e até mesmo mais severa sempre que os atos de outrem viole a dignidade sexual do vulnerável. Usando o princípio da proporcionalidade, já que este obriga ao intérprete que faça uma valoração, como o próprio nome determina proporcional entre a gravidade da conduta, a lesão à vítima e às hipóteses abstratamente previstas em nossas leis. Entretanto, não se pode abrandar as penas ao ponto do infrator sair impune. Para isso urge-se a necessidade de discursão sobre a criação de um tipo penal para enquadrar condutas violadoras da dignidade sexual do menor, com a finalidade de reduzir a prática delituosa, protegendo os interesses mais importantes da vida do incapaz.

REFERÊNCIAS

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