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4 de Maio de 2024

Institutos do Princípio da Boa-fé e da probidade contratual no Direito Civil Brasileiro

há 2 anos

  • “A morte de Julio Cesar” – Vincenzo Camuccini

“Amigos, romanos, conpatriotas ouçam-me. Eu vim para enterrar César e não para exaltá-lo. O mal que os homens fazem sobrevive depois deles, o bem é quase sempre enterrado com seus ossos."(Shakespeare, William. Júlio César [com índice ativo] . Centaur. Edição do Kindle).

1. Introdução

A boa-fé é um instituto que permeia o direito, sendo considerado um princípio norteador que rege as relações jurídicas, principalmente as relações jurídicas contratuais, advindas de um negócio jurídico entabulado entre duas partes.

Diante disso," o princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. " [1]

Assim, a regra da boa-fé é uma cláusula que gravita o direito obrigacional e que permite a resolução de grande parte dos conflitos levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais.

Isso porque, conforme Pablo Stolze leciona:

[...] podemos observar que a boa-fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer, a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente. [2]

Destarte, a boa-fé pode ser caracterizada como um princípio ético-jurídico que regula as relações jurídicas e contratuais.

2. Boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva

O princípio da boa-fé pode ser dividido em boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva, sendo que a boa-fé subjetiva é também denominada de concepção ética ou psicológica da boa-fé.

Isso porque "esta última consiste em uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivencia dada situação, sem ter ciência do vício que a inquina"[3].

Diferente do que ocorre com a boa-fé objetiva a qual possui natureza de princípio jurídico, consistindo em uma regra de comportamento e exigibilidade jurídica.

3. Funções da Boa-fé objetiva

3.1 Função interpretativa ou Hermenêutica

Em sua função hermenêutica, a boa-fé objetiva auxilia a teoria legal, ou seja, a interpretação de um negócio jurídico não se dará apenas a partir da análise das declarações emitidas, mas também quais eram as expectativas que uma parte depositava no comportamento da outra.

Essa função está expressa no art. 113 do Código Civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III – corresponder à boa-fé;

Ora, o referido dispositivo legal, consagra a função interpretativa da boa-fé objetiva ao se referir a boa-fé como um critério hermenêutico, conforme comenta Anderson Shreiber:

O caput do art. 113 do Código Civil veicula parâmetros de interpretação dos negócios jurídicos. Consagra, em primeiro lugar, a função interpretativa da boa-fé objetiva, cláusula geral que impõe a adoção de comportamento compatível com a mútua lealdade e confiança nas relações jurídicas. O presente artigo refere-se à boa-fé como critério hermenêutico, exigindo que a interpretação das cláusulas prestigie sempre o sentido mais conforme à lealdade e à honestidade entre as partes. A boa-fé impede, aí, interpretações maliciosas, dirigidas a prejudicar a contraparte, mas vai além, impondo que se reserve ao negócio jurídico o significado mais leal e honesto. [4]

3.2 Função Integrativa ou supletiva

Essa função está estampada no art. 422 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Vale dizer que o art. 422 possui inegável semelhança com o § 242 do BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão), o qual estabelece que" O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego "[5].

Ademais, nesse dispositivo a boa-fé objetiva cria deveres anexos ou acessórios à prestação principal, como deveres de cuidado, de informação e de assistência.

3.3. Função proibitiva

Essa função serve para limitar por meio da boa-fé o exercício de direitos, quando se mostrar contrário aos parâmetros de comportamento leal e confiável nas relações jurídicas e contratuais [6].

Essa função está presente no art. 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Diante disso, vale destacar que o referido dispositivo traz a ideia do abuso de direito:

O conceito de abuso do direito tem origem na jurisprudência francesa e foi desenvolvido para impedir os resultados iníquos derivados do exercício de direitos subjetivos, aos quais a dogmática liberal havia dado um caráter absoluto. Em sua concepção original, o ato abusivo identificava-se com o ato emulativo, ou seja, aquele praticado com o exclusivo intuito de causar dano a outrem. Entretanto, a noção de abuso do direito foi gradativamente se distanciando da noção de ato emulativo. A intenção de prejudicar já não servia mais de fundamento exclusivo à coibição de todas as hipóteses de ato abusivo. Doutrina e jurisprudência empenharam-se na busca de critérios menos intimistas. A figura foi remetida à proteção aos bons costumes ou ao conteúdo moral do direito[...] Conseguiu-se, finalmente, certo consenso em torno da associação do abuso do direito ao próprio conceito de direito subjetivo, e da definição do ato abusivo como aquele que supera os limites ou os fins econômicos e sociais do próprio direito subjetivo exercido. [7]

Contudo, o Código Civil Brasileiro adotou a teoria eclética do abuso do direito, pois, "o legislador brasileiro aproveitou-se de sua tradição em nossa experiência para criar uma ampla cláusula geral de controle de legitimidade do exercício de situações jurídicas subjetivas."[8].

Além disso, o abuso de direito independe de culpa e se fundamento no critério objetivo finalístico. [9]

4. Institutos ou desdobramentos da boa-fé objetiva

4.1. Adimplemento substancial ou inadimplemento mínimo ou substancial performance.

Esse princípio estabelece que quando um contrato já tiver sido cumprido em sua maior parte, restando uma pequena parcela do contrato a ser adimplida, não pode ser arguida a exceção do contrato não cumprido ou a resolução do contrato por inadimplemento, em razão da boa-fé.

Vale destacar o desdobramento desse instituto na jurisprudência pátria:

(...) 3. A pretensão dos consumidores, ora recorridos, consiste na reparação por danos morais em decorrência de cancelamento unilateral de voo, com posterior reacomodação em voo diverso, e atraso de mais de 4 (quatro) horas em relação ao horário originalmente contratado. (...) 14. Se de um lado a companhia aérea não promoveu a reacomodação em idênticas condições, de outro, verifica-se que houve adimplemento significativo (substancial) do programa contratual inicial. Desse modo, condená-la ao pagamento integral da passagem para o destino previsto (Brasília) configuraria desestímulo aos arranjos disponibilizados ao consumidor em situação de emergência, ao passo que deixar de condená-la a algum valor seria livrá-la do cumprimento da obrigação originariamente contratada e impor ônus excessivo à parte vulnerável da relação.” ( Acórdão 1339072, 07265385920208070016, Relator Designado: CARLOS ALBERTO MARTINS FILHO, Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 12/5/2021, publicado no DJe: 18/5/2021.)

4.2. Venire contra factum proprium:

Essa teoria estabelece que"a ninguém é dado vir contra os seus próprios atos", tendo como finalidade reprimir a adoção de comportamentos contraditórios quando estes violarem a confiança depositada pela outra parte.

Ou seja, os contratantes devem agir de forma coerente e lógica, segundo a expectativa gerada por seus próprios comportamentos.

4.3. Supressio

A expressão supressio advém do alemão e consiste na perda de um direito pelo seu não exercício, conforme observa Pablo Stolze:

"Decorrente da expressão alemã Verwirkung, consiste na perda (supressão) de um direito pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal. Decorrente da expressão alemã Verwirkung55, consiste na perda (supressão) de um direito pela falta de seu exercício por razoável lapso temporal. Trata-se de instituto distinto da prescrição, que se refere à perda da própria pretensão. Na figura da supressio, o que há é, metaforicamente, um “silêncio ensurdecedor”, ou seja, um comportamento omissivo tal, para o exercício de um direito, que o movimentar-se posterior soa incompatível com as legítimas expectativas até então geradas. Assim, na tutela da confiança, um direito não exercido durante determinado período, por conta desta inatividade, perderia sua eficácia, não podendo mais ser exercitado. Nessa linha, à luz do princípio da boa-fé, o comportamento de um dos sujeitos geraria no outro a convicção de que o direito não seria mais exigido. O exemplo tradicional de supressio é o uso de área comum por condômino em regime de exclusividade por período de tempo considerável, que implica a supressão da pretensão de cobrança de aluguel pelo período de uso. [10] "

4.4. Surrectio

É o oposto da supressio, sendo definida quando uma das partes ao adotar um comportamento ativo e reiterado, induz as expectativas da outra, e a interrupção abrupta daquela sequência poderia gerar a quebra da confiança alheia.

4.5. Tu quoque

É um instituto que advém da frase atribuída ao imperador Júlio César quando verificou a traição de seu filho adotivo Brutus:" Tu quoque, Brutes, Fili mi " ou " Et tu Brute! ".

Isso porque, conforme se verifica:

A aplicação do tu quoque se constata em situações em que se verifica um comportamento que, rompendo com o valor da confiança, surpreende uma das partes da relação negocial, colocando-a em situação de injusta desvantagem. Um bom exemplo é a previsão do art. 180 do CC/2002, que estabelece que o “menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. [11]

4.6. Exceptio doli

" agit qui petit quod statim redditurus est "(age dolosamente quem pede aquilo que em seguida restituirá).

A “exceção dolosa”, visa a sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar a parte contrária.

4.7. Cláusula de Stoppel

Esse desdobramento da boa-fé objetiva é basicamente a aplicação da vedação do comportamento contraditório no plano do Direito Internacional:

Trata-se de uma expressão típica do direito internacional, em que se busca preservar a boa-fé e, com isso, a segurança das relações jurídicas neste importante campo. Consiste, em síntese, na vedação do comportamento contraditório no plano do Direito Internacional. [12]

Esse conceito é então uma aplicação da da boa-fé objetiva em relações internacionais.


[1] GONÇALVES, Carlos Roberto Direito civil brasileiro, volume 3 : contratos e atos unilaterais. – 16. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019. E-book.

[2] STOLZE, Pablo ; Pamplona Filho, Rodolfo Manual de direito civil – volume único – 4. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

[3]" Em geral, esse estado subjetivo deriva do reconhecimento da ignorância do agente a respeito de determinada circunstância, como ocorre na hipótese do possuidor de boa-fé que desconhece o vício que macula a sua posse. Nesse caso, o próprio legislador, em vários dispositivos, cuida de ampará-lo, não fazendo o mesmo, outrossim, quanto ao possuidor de má-fé (arts. 1.214, 1.216, 1.217, 1.218, 1.219, 1.220, 1.242, do CC/2002)."STOLZE, Pablo ; Pamplona Filho, Rodolfo Manual de direito civil – volume único – 4. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

[4] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência ... [et al.]. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.

[5] Trecho sem tradução do § 242 do BGB:" Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern. "

[6] Vale dizer que:"O Código Civil brasileiro de 2002 encampou a noção em diversas passagens, assumindo maior importância os arts. 113 e 187, ambos situados na Parte Geral da codificação, e o presente art. 422, que se situa no título dedicado aos contratos. A esses três dispositivos da nossa codificação civil tem-se, não sem algum esforço hermenêutico, conectado a construção dogmática que atribui à boa-fé objetiva uma tríplice função no sistema jurídico: a) servir de cânone interpretativo dos negócios jurídicos e, portanto, também dos contratos (art. 113); b) impedir o exercício de direitos quando tal exercício se mostrar, concretamente, contrário aos parâmetros de comportamento leal e confiável nas relações jurídicas e, portanto, também nas relações contratuais (art. 187); e c) criar deveres anexos ou acessórios à prestação principal, como deveres de cuidado, de informação e de assistência."( Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência ... [et al.]. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.)

[7] Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência ... [et al.]. – 3.ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.

[8] Ibidem.

[9] “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico” (Enunciado n. 37 da I Jornada de Direito Civil).

“O abuso de direito é uma categoria jurídica autônoma em relação à responsabilidade civil. Por isso, o exercício abusivo de posições jurídicas desafia controle independentemente de dano” (Enunciado n. 539 da VI Jornada de Direito Civil).

“O abuso do direito impede a produção de efeitos do ato abusivo de exercício, na extensão necessária a evitar sua manifesta contrariedade à boa-fé, aos bons costumes, à função econômica ou social do direito exercido” (Enunciado n. 617 da VIII Jornada de Direito Civil).

[10] STOLZE, Pablo ; Pamplona Filho, Rodolfo Manual de direito civil – volume único – 4. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.


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