Judicialização da saúde e a repartição de competências do SUS
Tendo em vista a responsabilidade solidária dos entes federados na promoção do direito fundamental à saúde, em demandas judicias, como a autoridade judicial deve determinar qual ente da federação tem o dever da prestação positiva a qual se pleiteia no Judiciário?
INTRODUÇÃO
O presente texto busca avaliar a incidência da responsabilidade civil do Estado frente a dupla dimensão individual e coletiva do direito à saúde, analisando de que maneira os magistrados pode direcionar a responsabilidade dos entes federativos em demandas de saúde, levando em conta as atribuições próprias do Sistema Único de Saúde, e sua repartição de competência.
Primeiramente, pondera-se sobre o direito fundamental à saúde, sua previsão no texto constitucional; demonstra-se não só relação da promoção desse direito com promoção do conjunto de ações que constitui a seguridade social, como também a relação com o direito à vida. Aponta-se, também, o destinatário e a titularidade, além do bem jurídico tutelado por esse direito.
Posteriormente, reflete-se acerca dos limites do direito fundamental à saúde, ponderando sobre a proibição relativa do retrocesso, bem como sobre o princípio da reserva do possível.
Em seguida, é suscitado a competência comum que a Constituição atribui a todos dos entes federados, indicando também a adoção de diretrizes que favoreça a descentralização e regionalização da rede de ações públicas de saúde, além disso, aborda-se sobre a responsabilidade civil do Estado e a responsabilidade solidário desses entes em demandas de saúde.
Por fim, após exposição do conteúdo indispensável para compreensão do direito à saúde e a responsabilidade civil do Estado em demandas de saúde, elucida-se sobre a Lei orgânica de saúde, o Sistema Único de Saúde e sua criação, e a repartição de competências entre os entes federados, com o intuito de demostrar como a autoridade judicial por direcionar a responsabilidade desses entes quando da judicialização saúde.
1.Direito à Saúde
Como primeira vertente da seguridade social, o direito fundamental à saúde encontra-se assegurado no art. 196, in verbis: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Tal direito possui forte elo com promoção de outros direitos fundamentais em espécies, pois a promoção do direito à saúde integra um conjunto de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, isto é, a seguridade social, que é destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Outra relação é demostrada pela ADPF nº 45, a qual afirma existir uma relação inevitável entre o direito à saúde e o direito à vida. No voto do relator da ADPF, ministro Celso de Melo, é destacado que o direito à saúde compõe o mínimo existencial que representa o conjunto de prestações necessárias para a existência.
1.2 Um direito social de dupla vertente
Outrossim, é válido ressaltar que Sarlet (2002, p. 16) disciplina: “cumpre lembrar a circunstância elementar – embora nem por isso devidamente considerada – de que a saúde não é apenas dever do Estado, mas também da família, da sociedade e, acima de tudo, de cada um de nós”. Portanto, sabe-se que o Estado deve garantir a saúde e promovê-la de forma eficaz, entretanto, também cabe a nós, cidadãos, tutelar a saúde, fiscalizá-la e usufruir de forma justa e coerente para o bem da comunidade.
1.3 Objeto do direito fundamental à saúde
Há uma grande discussão sobre a definição do objeto do direito à saúde, visto que a Constituição não elucida sobre isso. Contudo, para Soares (2016), a vida é o maior bem jurídico protegido pelo direito à saúde, e complementa que todos os poderes devem assegurar esse direito, pois esses se encontram diretamente relacionados, sobretudo, com a ideia de dignidade da pessoa humana.
DESTINATÁRIO: ESTADO
TITULARIDADE: INDIVIDUAL E COLETIVA
2. LIMITES DO DIREITO À SAÚDE
2.1.Proibição relativa de retrocesso
A proibição de retrocesso enuncia que aquilo que foi estabelecido como direito fundamental não poderá ser retirado da ordem constitucional. Além disso, proíbe o Estado de garantir um direito em determinada medida e posteriormente diminua sua proporção.
Segundo a tese relativa, é possível admitir que se legitimaria o retrocesso em casos de graves crises econômicas , então o contexto validaria a relativização da proibição do retrocesso na oferta, por exemplo, de benefícios anteriormente dispostos pelo Sistema Único de Saúde.
2.2 Reserva do Possível
O Estado é destinatário de inúmeros direitos previstos pela Constituição, e o dever de progressivamente ofertar mais recursos para garantir os direitos fundamentais. Entretanto, esbarra na limitação financeira, visto que as demandas são infinitas mais os recursos são escassos.
O princípio ressalta a questão dos limites orçamentários, e que os direitos fundamentais devem ser limitados de acordo com a reserva do possível, e que não há como proporcionar direitos que demandam a ação positiva do Estado sem que haja recursos disponíveis.
SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA nº 175:
O Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento que o ônus é do Estado em comprovar a ausência de recursos , ou seja, a incidência da reversa do possível – assim a absoluta concedida de recursos para promover o direito.
3. Competência comum
A Constituição Federal no artigo 23, inciso II, institui que a saúde é competência comum da União, Estados e Municípios, ou seja, cabe aos entes federativos administrar com a finalidade de assegurar a efetividade do direito à saúde. A Carta Política ainda disciplina, no art. 198, que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, tendo como diretriz a descentralização.
A disposição da norma suprema é baseada na cooperação federativa, com o intuito de garantir o direito à saúde aos indivíduos.
3.1 Responsabilidade civil do Estado
Os entes da federação, bem como as pessoas jurídicas de direito público e às de direito privado, prestadoras de serviços públicos que compõe a Administração Pública se provocar a lesão aos bens jurídicos de terceiros são obrigados a reparar. O § 6º do art. 37 da CF atribui a responsabilidade à União, aos Estados, do Distrito Federal, Municípios e autarquias; dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo; das empresas públicas, sociedades de economia mista e sociedades privadas, quando no exercício de serviço público e por dano diretamente causado pela execução desse serviço, para cuja caracterização exclui-se o critério orgânico ou subjetivo (GONÇALVES, 2019).
3.2 Responsabilidade solidária do Estado em matéria de saúde
O Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 855178/2019, sob relatoria do Ministro Luiz Fux, fixou o entendimento: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro” (BRASIL, 2019).
Nesse diapasão, em processos que ensejam que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferte determinada tecnologia em matéria de saúde, podem ser chamados como litisconsortes passivos a União, Estado e Município. A parte autora então com o reconhecimento da solidariedade, pode ajuizar a ação contra qualquer dos entes federativos.
4.1 Disposições preliminares
Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080) sancionada em 19 de setembro de 1990, regula as ações e serviços de saúde em todo o território nacional, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, além de estabelecer os princípios, as diretrizes e os objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS). O primeiro artigo da Lei faz uma referência ao art. 196 da CF/88. Por isso, como você pode perceber, essa Lei é de abrangência nacional que regulamenta todo e qualquer serviço de saúde, seja ele de pessoa física, jurídica, iniciativa privada ou pelo Poder Público. Ainda em relação às disposições gerais, no que concerne o art. 2º desta Lei, a saúde é um direito fundamental do ser humano, e o Estado deve oferecer as condições indispensáveis ao seu pleno serviço. Além disso, cabe salientar que o art. 6º da CF/88, se refere a saúde como um direito social.
Sabe-se que quanto melhor o nível da saúde da população, medida por indicadores epidemiológicos, significa que o país tem uma boa organização social e uma economia estruturada. Assim, a partir dessa avaliação, o artigo 3º traz um conceito ampliado de saúde para entendermos que a mesma não é a ausência de doença, mas sim uma soma de determinantes e condicionantes, como: a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Portanto, as ações de saúde devem ser trabalhadas de forma integrada a fim de que as pessoas tenham um alcance maior na qualidade de vida com bem-estar físico, mental e social.
4.2 O Sistema Único de Saúde
O art. 4º se remete ao SUS com a premissa de que: “O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)”. Por isso, é importante se perguntar: o que é o SUS e para que serve? SUS é a abreviação de Sistema Único de Saúde e foi criado no texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, mais especificamente na Seção II – da Saúde, Capítulo II – da Seguridade Social, Título VIII – da Ordem Social. e de forma resumida, é o sistema de saúde público brasileiro que foi inspirado no National Health Service ou Sistema Nacional de Saúde presente no Reino Unido.
Nesse contexto, é mantido com os recursos oriundos da União e oferece atendimento gratuito à população através de suas unidades como os Postos, Centros de Saúde, Hospitais Públicos, Hemocentros, Vigilâncias Sanitária e Epidemiológica, assim como Institutos de pesquisa acadêmica e cientifica, como é o caso da Fundação Oswaldo Cruz. Segundo a própria Constituição, em seu capítulo dedicado à saúde, infere que o SUS possui as seguintes responsabilidades: controlar e fiscalizar produtos e substâncias, assim como procedimentos, medicamentos e equipamentos. Além disso, cabe ainda a tarefa de participar da execução de ações relacionadas ao saneamento básico; de inspecionar os alimentos e controlar o seu teor nutricional, assim como a água e outras bebidas para o consumo das pessoas e ordenar a formação dos recursos humanos no campo da saúde.
4.3 Repartição de competências do SUS
Conforme a tese fixada no Recurso Extraordinário nº 855178/2019, o magistrado deverá considerar a repartição de competência própria do Sistema Único de Saúde. Sobre isso, os artigos 16,17 e 18 dessa lei delibera sobre a repartição de competência “PRIVATIVA” entre os entes da federação:
· União deve atuar sobretudo na prestação de serviço de alta complexidade, isto é, em serviços de elevada capacitação técnica e elevada demanda tecnológica. (EX: teste de medicamento, tratamento de doenças raras).
· Os Estados, tem uma atuação principal em serviço de média complexidade, ou seja, em serviços com especialização também, mas com uma demanda de aparato técnico mais simples de oferta.
· E por fim, temos os Municípios que tem como incumbência basilar os serviços de baixa complexidade, que são serviços análogos às Unidades básicas de saúde.
Conclusões
Reiterando o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 855178/2019, o artigo 19-Q, da lei 12.401/11 disciplina: quando a demanda judicial se tratar de tecnologia avançada ainda não implementada no Sistema Único de Saúde e medicamentos ainda não aprovados pela ANVISA, porém que se enquadrem nos requisitos, é necessário que a União ocupe o polo passivo da relação processual. Posto que, é o ente que dispõe de maior recurso para arcar com custos do cumprimento da obrigação, e é o responsável imediato por essa prestação de serviço de alta complexidade - destaca-se que não impede que o Estado-membro e o município também figurem enquanto polo passivo da demanda judicial, já que há a solidariedade entre os entes federados.
Nesse sentido, a Lei Orgânica da saúde, ao dispor sobre as competências dos entes federativos, constitui umas das ferramentas para auxiliar os magistrados a direcionar a responsabilidade dos entes federados em demandas de saúde. Em consonância a isso, a autoridade judicial pode utilizar os recursos físicos e humanos do seu tribunal para definir o que seja alta, média e baixa complexidade.
REFERÊNCIAS
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Autores: CHAGAS, Marcos Paulo da Luz. ELIAS, Juliana Bertrand. LIMA, Ilderlane. LIMA, Marcio Holanda.
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