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3 de Maio de 2024

O instituto do "Cramdown" na reorganização do Plano de Recuperação Judicial: o abuso de direito de voto e a ineficácia do Judiciário

Por Priscila Jales Portela

há 7 anos

Onde há empreendedorismo há risco de insolvência, ou situação de crise econômica[1], o que acaba sendo o motor da falência[2]. Nem toda empresa obrigatoriamente alcança o sucesso, algumas apresentam equívocos, visto que a falha faz parte do processo empreendedor e está intimamente ligada com assumir riscos[3].

Liquidar o devedor, apenas decretando sua falência, seria, em muitos casos, a forma mais barata e célere para satisfazer as reivindicações dos credores, pelo menos parcialmente; contudo não atenderia à lógica de um sistema preocupado com a perpetuação da atividade empresarial e da ordem econômica, e à solução de mercado[4]. Muitos sistemas oferecem, embora com intuitos díspares, a possibilidade de reorganizar os débitos da empresa, com o escopo de mantê-la em funcionamento, ao invés de apenas proceder à decretação de falência desta. Enquanto o processo de falência leva à eliminação completa do devedor, da empresa, servindo como mera punição que em nada acrescenta à sociedade; a recuperação judicial permite que o devedor, possuidor de potencial econômico para se reconstruir e importância social, [5] se reabilite e continue a atuar no mercado.

A satisfação dos direitos dos credores é sempre um dos objetivos principais de um processo de recuperação judicial. A nova Lei de Falência Brasileira demonstrou se preocupar, assim como a legislação Norte-Americana, fonte de inspiração dessa, com a fase da recuperação judicial, expondo estar consciente da importância que possui a empresa para a ordem econômica e social, proporcionando modos mediante os quais promover-se-á a preservação desta[6].

O ordenamento jurídico, obviamente, não pode conceder direitos dessa amplitude aos credores e retirar toda proteção que possui a empresa devedora, visto que, malgrado seja a solução dada por estes a solução de mercado, tida como a mais adequada, há quem entenda haver um tom de parcialidade e egoísmo nela, posto ser apenas possível em um mundo ideal a acepção de uma Assembleia de Credores que de fato segue as regras “puras” do mercado. Nesta lógica, para sopesar o poder resguardado aos credores, dada a lógica eminentemente social do Direito Falimentar e não meramente econômica, foi criado o instituto do Cramdown, mediante o qual o juiz pode superar eventual veto ao plano de recuperação judicial, salvaguardando a existência da empresa e, por conseguinte, ratificando o postulado da função social da empresa.

A forma mediante a qual a falência, a recuperação judicial e o devedor são tratados difere consoante o regime jurídico. O sistema legal reflete o que a sociedade percebe como método apropriado para um determinado conjunto de circunstâncias. Essas diferenças de mentalidade se refletem não só pela concepção da própria lei falimentar, mas também pela forma como é aplicada.

O Cramdown, positivado no direito brasileiro no art. 58 § 1º, Lei nº 11.101/2005, trata da concessão ao magistrado, dada a verificação do preenchimento do quórum alternativo, do poder de superar a rejeição do plano de recuperação pelos credores, aprovando o plano e impondo-o àquela classe. Há que se falar que o Cramdown é, de fato, ainda muito pouco explorado na prática jurisdicional brasileira e com uma aplicação um tanto quanto espúria quando se tem conhecimento da essência do instituto através da análise da aplicação do mesmo nas decisões das cortes Norte-Americanas.

Surge, diante da necessidade de se respeitar as limitações postas no artigo 58 da lei 11.101 de 2005 a importância de discussão acerca de dito instituto, posto que não é o Cramdown Brasileiro, com juízes desqualificados tecnicamente para proceder a decisões com cunho eminentemente econômico, necessariamente a solução mais justa à aprovação do plano de recuperação judicial[7].

Para que seja plausível compreender o Cramdown vale avaliar a classificação do voto proferido mediante Assembleia Geral de Credores, o qual será denominado aqui por “voto abusivo” para dar o condão de aplicação do instituto.

A Assembleia Geral de Credores (sigla AGC) é órgão (re) instituído pela Lei 11.101 de 2005, que proporciona que a decisão acerca da viabilidade da recuperação judicial seja aferida em favor do interesse coletivo dos credores, possuindo, justamente por essa acepção ligada à coletividade natureza jurídica de órgão[8].

Ainda procedendo à análise da AGC, vale expor que é seu procedimento dividido em três fases, quais sejam: fase postulatória (fase em que haverá o requerimento do benefício); fase deliberativa (caracterizada pela elaboração e aprovação ou rejeição do plano) e fase executória (cumprimento do plano de recuperação judicial aprovado em juízo). No presente artigo o foco é dado à fase deliberativa, motivo pelo qual há que se analisar de forma aprofundada como se procede a participação dos credores na AGC.

É necessário expor que o direito de voto não é sinônimo da participação no plenário da AGC, visto que esta inclui além dos credores possuidores de direito de voto outros credores, como aqueles cujo crédito não é afetado pelo plano de recuperação judicial, conforme ditames do art. 45, § 3º da LRE. O argumento para promover a separação entre a participação em Assembleia e o direito a voto, seria a ausência de interesse para deliberar por parte destes[9], o que é, no mínimo, questionável visto que mesmo que não atingido diretamente pelo plano, o credor que não possui o direito de deliberar em assembleia acerca do plano, sofrerá seus efeitos, principalmente em sendo um plano sem viabilidade econômica[10].

O voto sofre, todavia, limitações objetivas em defesa de interesses supraindividuais, isto é, busca-se com o voto na AGC não apenas proteger o direito particular de cada credor de ter seu crédito satisfeito, mas, também que haja ratificado o princípio da preservação da empresa, tendo o legislador a intenção de afastar o estrito interesse particular do credor em detrimento de uma visão institucional e preservadora da atividade empresária. A preservação da atividade empresária ultrapassa o interesse do devedor e do credor, se tornando um interesse de Política de Estado, motivo pelo qual surgem institutos voltados a corrigir decisões de aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial mediante abuso de direito de voto[11].

O exercício de um direito deve manter proximidade com a finalidade para o qual fora criado, tendo-se no abuso de direito uma ilegalidade camuflada como ato legítimo[12], sendo uma conduta perpetrada mediante abuso de direito quando, autorizada pela norma jurídica (votar em Assembleia) extrapola os limites do direito subjetivo, considerando a lesividade ou não do direito de outrem (aqui leva-se em consideração o direito dos demais credores e da sociedade). É, assim, uma fórmula aparentemente contraditória, que traduz a contradição entre cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do próprio direito[13]. Apresenta o abuso de direito de voto afastamento de conceitos como a boa-fé, os bons costumes e a finalidade econômica e social do direito[14].

Cabe expor aqui que, malgrado a Lei 11.101 de 2005 não tenha tratado do abuso de direito, mas apenas de matéria suscetível a abusos e fraudes, defende-se nessa tese a aplicação subsidiária de outros diplomas normativos ao procedimento recuperacional, bem como que sirva de argumentação à ampliação das hipóteses em que é cabível a aplicação do Cramdown, aproximando-se o modelo brasileiro do norte-americano. O que se argumenta aqui é que deve o juiz, em observando a ocorrência do abuso de direito de voto, ser capaz de aprovar plano mediante Cramdown, com o fito de ratificar o princípio da preservação da empresa. Há, atualmente, julgados que expõem a aplicação de dito instituto de forma mais ampla, até mesmo em casos em que não se cumpre o posto no art. 58, § 1º da LRE, contudo não é esta posição pacificada na jurisprudência, devendo haver ainda a ampliação dos poderes do juiz, inclusive, para definir o que seja “abuso de direito”. Nessa toada, cumpre colacionar entendimento que corrobora com o ponto de vista aqui elencado:

RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Pedido de convolação em falência, em virtude da rejeição do plano de recuperação pela maioria qualitativa dos credores quirografários, única classe de credores quirografários a deliberar. Cinco credores financeiros que se opuseram ao plano, em detrimento de outros quinze credores que o aprovaram. Descumprimento do quórum supletivo (cram down) previsto no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005. Moderno entendimento dos tribunais no sentido de que cabe ao juiz intervir em situações excepcionais, quer para anular, quer para deferir planos de recuperação judicial. Ausente qualquer justificativa objetiva para rejeição do plano de recuperação, com a ressalva de que os créditos financeiros são dotados de garantias pessoais dos sócios, que se encontram executados em vias próprias. Concordância do Administrador Judicial e dos representantes do Ministério Público em ambas as instancias com a homologação do plano. Constatação de que os credores que rejeitaram o plano agiram em abuso de direito, na forma do artigo 187 do Código Civil. Rejeição de caráter ilícito, devendo prevalecer o princípio da preservação da empresa. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJ-SP - AI: 01066618620128260000 SP 0106661-86.2012.8.26.0000, Relator: Francisco Loureiro, Data de Julgamento: 03/07/2014, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 17/07/2014)

Malgrado seja primoroso o avanço jurisprudencial acima elencado, o que faz com que o Cramdown brasileiro se aproxime paulatinamente do instituto que o originou, o Cramdown Norte-Americano, há, ainda, certo receio quanto ao limite em que pode se utilizar do argumento de voto abusivo dos credores para superar a limitação posta no art. 58, § 1º da LRE e quanto à ausência de aplicação do Cramdown com base na análise da viabilidade financeira do plano.

Há que se ratificar não ser absoluto o resultado da votação realizada pelos credores, como já se comentou ao longo do capítulo terceiro, não indo necessariamente à falência o devedor que tenha seu plano rejeitado mediante Assembleia[15]. Quando se diz que o resultado obtido pela AGC não apresenta caráter absoluto, há referência tanto à aprovação do plano, quando ocorreu mediante abuso de direito de voto ou qualquer outra irregularidade na feitura da Assembleia, mas, primordialmente, à reprovação deste. Isso ocorre porque, está presente na inteligência do artigo 58, §§ 1º e 2º da LFRE a possibilidade de o juiz promover a superação do voto assemblear caso se verifique a viabilidade econômica do plano, o que foi denominado pela doutrina brasileira de Cram down, herdando a nomeação do instituto Norte-Americano que teria servido de inspiração. A lei permite, de tal forma, que mesmo que não alcançado quórum para aprovação do plano de recuperação judicial, o juiz intervenha no resultado impondo a aprovação aos credores, incluso os dissidentes.

Transcreve-se aqui o artigo que trata do Cram Down no Direito Falimentar Brasileiro;

Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia geral de credores na forma do art. 45 desta Lei.

§ 1o O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembleia, tenha obtido, de forma cumulativa:

I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes;

II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;

III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 desta Lei.

§ 2o A recuperação judicial somente poderá ser concedida com base no § 1o deste artigo se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado.

Ora, da leitura do artigo já se pode observar o quão limitada é a possibilidade que tem o juiz de superar o voto assemblear, sendo indispensável que todas as condições postas nos incisos do artigo 58 estejam presentes para que seja possível a análise da aprovação do plano. Não há liberdade quanto à análise do limite do que seja abuso de direito de voto dos credores. Não há análise mais aprofundada da viabilidade econômica do plano. Não há, sequer, a análise se o voto dos credores ocorreu em conformidade com a solução de mercado. O magistrado não se mostra livre, desta feita, para a concessão da recuperação judicial em caso de reprovação pelos credores, só o podendo o fazer no caso de ter havido aprovação substancial dos credores ao plano, tendo alcançado uma “quase aprovação” na AGC. Desde já se mostra claro que o suposto cram down brasileiro não possui de correta nem ao menos a denominação, sendo muito mais um mero quórum alternativo aferido mediante operação matemática simples de contagem de votos[16].

É a concessão de recuperação judicial malgrado reprovação do plano pelos credores denominada Cram down, que leva a entender uma ideia de imposição, unilateralidade, visto ser a tradução livre do termo “empurrar goela abaixo”[17]. Também é conhecido o instituto como washout[18], que se refere à eliminação pelo juiz dos votos que rejeitaram o plano e é justamente o ato de o juiz impor aos credores discordantes o plano apresentado pelo devedor e já aceito pela maioria o que assemelha o instituto previsto no § 1129 do Bankruptcy Code e o “cram down” à brasileira[19].

Funciona, então, o Cram Down, como uma espécie de superação do veto, contudo é imprescindível que seja a proposta ora recusada justa, equitativa, viável e sem que haja discriminação entre credores, observando a judicialização de uma decisão que deveria ser eminentemente econômica. Desta forma, apesar do modelo inserido pela LRF retirar do juiz o poder de intervenção na decisão concreta referente ao destino da empresa, a AGC continua sendo meramente órgão deliberativo e, por depender dita deliberação de homologação judicial para que possa produzir efeito, o poder decisório final continua sendo do magistrado, devendo o juiz proceder à análise do conteúdo das deliberações tomadas[20].

O instituto, inspirado no ordenamento jurídico norte-americano, para ser de possível aplicação no Brasil requer que se observe certos requisitos formais, previstos no art. 58, § 1º da Lei 11.101 de 2005, limitando a atuação do magistrado. Trata-se o Cram down de mecanismo absolutamente favorável à consecução do propósito da preservação da empresa. Contudo, também não se pode fechar os olhos para as dificuldades geradas por uma importação imperfeita do instituto, sendo impossível compreender as razões pelas quais uma lei que prima pela salvação da empresa viável estipule tantos requisitos formais para a superação do veto de um plano viável de uma classe de credores[21].

Dessa forma, diferentemente do modelo americano, em que o juiz possui amplo poder de julgamento e fundamentação das decisões, sendo possível que, com respeito a requisitos básicos que apenas ratificam a boa-fé e igualdade necessária entre credores, podem submeter suas decisões a escolhas econômicas e politicas, de forma a melhor atender o princípio da preservação da empresa.

A forma hermética pela qual o instituto opera no Brasil, acaba por esvaziar seu significado, não se fundando a análise quanto a aprovação do plano nos princípios da função social e da preservação da empresa, mas configurando espécie de quórum alternativo de deliberação, alcançado por mera contagem de votos[22].

O juiz brasileiro teve a si concedido pouco espaço de intervenção quanto a possibilidade de intervir na rejeição de um plano de recuperação judicial pelos credores, diferindo os critérios estabelecidos na lei brasileira da norte-americana. A lei norte-americana prevê que é possível ao juiz superar o veto imposto por classes de credores afetados pelo plano desde que não implique unfair discrimination e seja fair and equitable. A lei brasileira, contudo, se afasta das diretrizes normalmente tidas como válidas, revelando clara intenção e preocupação em limitar o poder do juiz, quando deveria dita preocupação se voltar à preservação da empresa[23]. Dessa forma, quando se compara a disciplina da matéria sob a lei brasileira e sob a experiência estrangeira, conclui-se que o sistema nacional afastou-se das práticas comuns no que diz respeito ao tema e perdeu a oportunidade de cuidar de forma completa o assunto de imensa relevância ao construí-lo de forma eminentemente legalista e hermética[24].

Houve, desta forma, a limitação da concessão do plano mediante Cramdown à análise mediante fundamento meramente jurídico, posto haver vinculação com os votos obtidos em assembleia de credores em cada classe e não apenas a necessidade de aprovação por uma classe do plano, como ocorre no Direito americano.

Nesse momento, há que se expor ser de benigno ao Direito Brasileiro a previsão do instituto, malgrado não o seja adequado da forma pela qual está sendo tratado atualmente na legislação, de maneira enrijecida e eminentemente legalista, tornando, por vezes, o instituto inócuo, caso sejam os limites seguidos pelo magistrado. Felizmente observou-se que grande parte das decisões das cortes nacionais caminha no sentido de maior flexibilização do instituto estudado, buscando, paulatinamente, permitir que o magistrado tenha maior poder de decisão para que possa salvar a empresa.

É importante comentar, todavia, que mesmo que se almeje que tenha o magistrado maior flexibilidade na tomada de decisões acerca do Cram Down, analisando a viabilidade do plano recuperacional, há que se preocupar com a forma pela qual se regulamenta dita liberdade. Não deve ser o juiz um dogmático cego, mas também não o pode ser um realista sem limitações. Há, de fato, que se conceder maiores poderes ao judiciário brasileiro, mas de forma paulatina, visto ser o sistema jurídico do país extremamente ineficaz e moroso, não possuindo os juristas brasileiros especialização técnica suficiente para aplicar o Cram Down nos moldes americanos.

Observando as estatísticas dos dois países pode-se observar a seriedade pela qual são ambos os processos falimentares conduzidos, visto que, enquanto no Brasil há uma espécie de “indústria da recuperação judicial”, sem que se analise de fato a viabilidade dos planos, nos EUA tanto os credores, quanto os magistrados, especializados para analisar economicamente os planos, se preocupam em apenas permitir que siga a recuperação àquelas empresas viáveis, para que a máquina estatal não seja movimentada inocuamente. Nos Estados Unidos da América muitas empresas que têm contra elas oferecido pedido de falência são submetidas ao Capítulo 11 do Código de Falências dos EUA, o qual trata da recuperação judicial, contudo pode se observar não ser a recuperação banalizada, como uma espécie de “etapa obrigatória” do direito falimentar. Dentre 911.086 processos falimentares nos EUA no ano de 2015, um número total de 7.053 foram submetidos sob o Capítulo 11, enquanto 596.867 foram submetidas ao Capítulo 7, que trata da liquidação da empresa[25]. No Brasil, por outro lado, o numero de falências requeridas (10.541) é muito inferior, bem como também não é expressivo o quantitativo de recuperações judiciais requeridas (5.376), contudo o percentual de processos submetidos à lógica da recuperação judicial é surpreendentemente maior do que se comparado com as estatísticas Norte-Americanas visto que, malgrado tenha o Brasil há pouco adotado o instituto, já apresenta-o como uma espécie de “alternativa obrigatória” à empresa. O ano de 2016, espantosamente, apresentou no mês de julho basicamente a equiparação da quantidade de requerimentos de falência (189) e de recuperação judicial[26].

O problema enfrentado pelo Direito Falimentar Brasileiro é o fato de ser a recuperação judicial utilizada, não para salvar a empresa possuidora de viabilidade econômica, garantido uma second chance, mas, como cano de escape para adiar a falência, não atingindo, de certa forma, a finalidade posta no artigo 47 da lei 11.101 de 2005[27].

Devido a ineficácia do judiciário brasileiro, se defende apenas com ressalvas a ampliação do poder do magistrado no processamento do Cram Down. Em um primeiro momento se defende que haja a possibilidade de Cram Down quando configurado patente abuso de direito de voto por parte dos credores, sem que se adentre a qualquer tipo aprofundado de análise econômica de viabilidade do plano ou equidade entre os credores. Paulatinamente, talvez, com o investimento nas varas especializadas em direito falimentar, possa-se iniciar a de fato aplicar o Cram Down no Brasil, abrindo nova fase de tratativas e aplicando os requisitos norte-americanos para análise do plano.

São os limites estabelecidos à atuação do magistrado, bem como a inexistência de nova fase de tratativas, que leva a discussão quanto se ocorreu efetivamente a implantação do Cram Down no Brasil. A decisão quanto à reprovação do plano não resta fundada, neste ordenamento jurídico, no interesse social ou na ratificação do principio da preservação da empresa, mas em mera verificação de um quórum alternativo. O percalço que surge dessa forma de configuração é o domínio do processo recuperacional pelos credores que, atendendo aos próprios interesses e não à logica de mercado (não há espaço aqui para utopia), acaba por determinar o futuro da empresa: recuperação ou falência, bem como das despesas que serão custeadas pela sociedade como um todo.

Resta inócuo no Brasil a existência do principio da preservação da empresa, da preocupação com a continuidade da atividade empreendedora, não existindo nem ao menos juízo mais técnico da viabilidade do plano.

Como se expôs, talvez, no futuro possua o Brasil o Cram Down, atualmente seria inocência defender a existência do instituto, visto que o que está presente no direito do país é mera aprovação pelo juiz do plano mediante quórum diferenciado ou, quando é o juiz defensor da flexibilização do instituto, controle da legalidade das votações no âmbito da AGC. Não há no Brasil Cram Down, este ainda terá que ser verdadeiramente importado.


[1] FERNÁNDEZ-RÍO, Angel José Rojo. El Estado de crisis económica. In: Jornadas Sobre la Reforma del Derecho de Quiebra. Madri: Civitas, 1982. P. 157.

[2] FERGUSON, Niall. A ascenção do Dinheiro: a história financeira do mundo. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. P. 48.

[3] DORNELAS, Jose Carlos Assis. Empreendedorismo Corporativo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. P. 127.

[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito comercial – volume 3. São Paulo: Saraiva, 2013. P.247.

[5] KÖHLER, Etiane Barbi. Direito Falimentar e da Recuperação da Empresa. Rio Grande do Sul: Editora Unijuí, 2011. P. 25.

[6] ZANOTI, Luiz Antonio Ramalho; ZANOTI, André Luiz Depes. A preservação da empresa sob o enfoque da nova lei de falência e de recuperação de empresas. In: Hórus – Revista de Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas, da Faculdade Estácio de Sá. P1.

[7] SILVA, Elton Figueiredo. O Cram Down e a análise do artigo 58, § 1º da Lei nº 11.101/2005. Orientadora: Professora Elizabeth Nantes Cavalcanti. Dissertação: Universidade Paulista (UNIP), Santana de Parnaíba, 2015.

[8] FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. In SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Sérgio A. De Moraes. Comentários à Lei da recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. P. 187.

[9] GUIMARÃES, L. M. In: GUERRA, E.; LITRENTO, M. C. F. Nova Lei de Falências: Lei 11.101 de 9/2/2005, comentada. Campinas: LZN Editora, 2005. P. 87.

[10] COELHO, F. U. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101, de 9-2-2005). São Paulo: Saraiva, 2010. P. 111.

[11] SILVA, Aldo Eduardo Santos. O direito de voto e os limites de seu exercício na recuperação: o norte hermenêutico trazido pelo artigo 47 da lei 11.101, de 2005. Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos, 2012. P.62-67.

[12] VENOSA, Sílvio Salvo. Direito civil. Vol 1. São Paulo: Editora Atlas, 2003. P. 603.

[13] LAUTENCSCHLAGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Abuso do Direito. São Paulo: Atlas, 2007. P. 24-25.

[14] PINHEIRO, R. F. O abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 427.

[15] SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Tratado de direito falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 117

[16] SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Tratado de Direito Falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 183.

[17] TOKARS, Fábio. As limitações de aplicação do “cram down” nas recuperações judiciais

brasileiras. O Estado do Paraná. Publicado em 06/12/2010. Disponível em: http://www.paranaonline.com.br/colunistas/277/82274/?postagem=AS+LIITACOES+DE+APLICACAO+DO+CRAM+DOWN.... Acesso em: 23 de novembro de 2016.

[18] RESTIFFE, Paulo Sérgio. Manual do novo direito Comercial. São Paulo: Dialética, 2006. P. 392-393.

[19] MOREIRA, Alberto Camiña. Poderes da assembleia de credores, do juiz e a atividade do Ministério Público. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de. Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. P. 257.

[20] ARAGÃO, Paulo Cezar, BUMACHAR, Laura. A Assembléia Geral de Credores na Lei de Recuperação e Falencias. In: SANTOS, Paulo Penalva. A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas – Lei nº 11.101/05. Rio de Janeiro: Forense, 2006. P. 115

[21] CEREZETTI, Sheila Cristina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa e a Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros, 2012. P.268-316.

[22] SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Tratado de Direito Falimentar. Rio de Janeiro: Forense, 2008. P. 183

[23] SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de, PITOMBO, Antônio Sérgio A. De Moraes Comentário à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P. 291.

[24] CEREZETTI, Sheila Cristina Neder. A recuperação judicial da sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa e a Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros, 2012. P.268.

[25] Disponível em: www.uscourts.gov/statics/table/f-2/bankruptcy-filings/2015/03/31 Acessado em: 01/09/2017

[26]Disponível em: www.serasaexperlan.com.br/release/indicadores/falencias_concordatas.htm Acessado em: 01/09/2017

[27] Art. 47: A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

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