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19 de Maio de 2024

Sistema acusatório e o inquérito judicial das fake news

ano passado

Em razão do famigerado inquérito judicial das “fake news” muito se tem discutido sobre o sistema acusatório de processo. O que é isso?

Por esse sistema existe nítida divisão entre o órgão acusador e o julgador. Enquanto a acusação é, em regra, formulada por um órgão estatal (Ministério Público), o poder Judiciário é o responsável pela aplicação da lei e a solução dos conflitos entre o Estado e o particular. As partes estão em igualdade de condições, sobrepondo-se a elas, como órgão imparcial de aplicação da lei, o Juiz. Como corolário lógico desse sistema, vigoram os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ( CF, art. , LIV e LV), além das garantias da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do acesso à Justiça (art. 5º, LXXIV), do Juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII) e do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput, e I), estando vedado ao Juízo instaurar ação penal de ofício (“ne procedat judex ex officio”) e investigar na fase pré-processual, usurpando a função da polícia judiciária (art. 144 da CF) e do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I, da CF), que também possui o poder investigatório criminal, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal ( RE 593727/MG – Rel. Min. Cezar Peluso – Tribunal Pleno – j. em 14.05.2015).

Há questão que até agora não foi levantada e poderá se transformar em sério problema hermenêutico em breve, com sensíveis consequências no processo penal. Explico.

A Lei nº 13.964/2019 introduziu no Código de Processo Penal, no capítulo que trata do juiz de garantias, dispositivo específico que consagra no direito objetivo o sistema acusatório de processo, o que já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência pacíficas, por interpretação decorrente do nosso sistema constitucional e processual. Diz a norma: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Por força de liminar em ação direta de inconstitucionalidade que questiona o juiz de garantias no sistema processual, foram sustados os efeitos desse dispositivo e de vários outros no capítulo (STF: ADI 6.299 MC/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 22.01.2020).

Referida decisão liminar foi proferida por conta de questionamento da constitucionalidade do juiz de garantias e não desse dispositivo específico, cujo fundamento já é reconhecido de forma praticamente unânime em todos os tribunais.

Isso quer dizer que, ao julgar o mérito do pedido nesta ADI, muito provavelmente referida norma vai voltar a ter eficácia.

Tal conclusão é reforçada por decisão do Min. Dias Toffoli, na qualidade de presidente da Corte, sobre o juiz de garantias, na qual concedeu parcialmente a liminar apenas para suspender a eficácia de alguns dispositivos por tempo determinado, sem qualquer menção ao artigo 3º-A, do Código de Processo Penal. Fundamentou o Ministro “Nossa ordem constitucional consagra, a partir do art. 129, inciso I, da CF/88 – que atribui ao Ministério Público a titularidade da ação penal –, o sistema acusatório, o qual se caracteriza pela nítida divisão entre as funções de investigar e acusar e a função de julgar, sendo o réu sujeito de direitos” (STF: ADI 6.298 MC/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 15.01.2020).

Quando se trata de revogação ou cassação de liminar, os efeitos da decisão são “ex tunc”, ou seja, vigoram para o passado, devendo a situação retornar ao “status quo” anterior. Aplica-se, à hipótese, por analogia, o disposto na Súmula 405 do STF: “Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”.

O artigo 3º-A do Código de Processo Penal é norma eminentemente processual, que apresenta reflexos no direito penal. Isso porque as provas produzidas por magistrado na fase pré-processual, em manifesta violação ao sistema acusatório de processo, podem resultar na condenação do acusado com aplicação de uma sanção penal.

Não se trata de norma mista (processual e penal), que ensejaria sua retroatividade para fatos anteriores à vigência da novel legislação. Toda norma processual penal terá algum reflexo no direito penal, vez que a grande finalidade desse ramo do direito é justamente a aplicação do direito penal. E nem por isso pode ser considerada mista, já que, se assim não for, qualquer norma processual penal também vigorará para o passado e não apenas para o futuro em homenagem à regra do “tempus regit actum”, prevista no artigo do Código de Processo Penal.

Com isso, não obstante a decisão da Suprema Corte que reconheceu sua constitucionalidade ( ADPF 572, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 18.06.2020), toda prova originária e decorrente do inquérito judicial será considerada ilícita ou processualmente ilegítima, a depender da hipótese, e não poderá ser empregada no processo.

Podem os ministros modular os efeitos da decisão, é claro. Mas como fazer se toda jurisprudência dos tribunais, inclusive superiores, consagra o sistema acusatório de processo?

E, também, não vejo como excepcionar apenas o inquérito judicial, dizendo que o dispositivo em comento não o atinge. O sistema acusatório decorre da Carta Magna. O novo dispositivo processual veio apenas inserir no direito objetivo algo que já era aceito de forma praticamente unânime por toda a doutrina e jurisprudência. Seria negar o óbvio. Não me parece razoável vigorar o sistema acusatório para todas as demais hipóteses e menos para o inquérito judicial criado por uma mera portaria interna da Corte, embasada no seu regimento interno, que tem a finalidade de regular sua organização judiciária e procedimentos administrativos, cujo dispositivo autorizativo claramente não foi recepcionado pela Constituição Federal.

Em diversos artigos e entrevistas cansei de criticar o famigerado inquérito judicial desde sua instauração, que ocorreu de ofício, por ato do Presidente da Corte, sem sorteio de relator, com distribuição dirigida, para apurar fatos indeterminados à conta-gotas, quando forem surgindo, praticados contra os próprios Ministros, sem a participação do Ministério Público, que, aliás, promoveu seu arquivamento inicialmente, alcançando pessoas sem prerrogativa de foro, em cristalino atentado à competência constitucional e ferindo o princípio do juiz natural, além de evidente violação ao sistema acusatório de processo por não existir em nosso direito a figura do magistrado investigador. Em suma, não obstante a decisão da Excelsa Corte, com o devido respeito, reputo flagrantemente inconstitucional o referido inquérito judicial por não ter o dispositivo autorizativo previsto no artigo 43 do RISTF sido recepcionado pela Carta Constitucional e sequer os fatos ocorridos na sede ou dependência da Corte, não podendo ser alargada a interpretação para atingir a todo o Brasil tão somente porque muitos foram cometidos por meio da Internet.

Percebam o que ocorre quando o sistema processual é subvertido. Pessoas podem ser condenadas e cumprir sua pena, e posteriormente todo o processo ser declarado nulo por não ter sido observada regra constitucional clara, consagrando-se a injustiça.

Autor: César Dario Mariano da Silva - Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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