Busca sem resultado
Comentários ao Código Civil - Ed. 2023

Comentários ao Código Civil - Ed. 2023

Seção I. Disposições Gerais

Entre no Jusbrasil para imprimir o conteúdo do Jusbrasil

Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro

TÍTULO VI

DAS VÁRIAS ESPÉCIES DE CONTRATO

Capítulo I

DA COMPRA E VENDA

Seção I

Disposições gerais

ALEXANDRE DE MELLO GUERRA

Contrato. Direitos fundamentais. O contrato é a manifestação mais forte do negócio jurídico 1 . Clóvis Beviláqua define-o como “acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos” 2 . É um instrumento de cooperação entre os sujeitos de direito à realização dos seus objetivos e à adequada composição dos interesses. É um meio eficaz de circulação e de transferência de riquezas, assim como de escoamento de produção industrial em uma sociedade de consumo massivo. Segundo Enzo Roppo 3 , o contrato é “a veste jurídico-formal de operações econômicas”. Onde há uma operação econômica, há contrato. Sem o contrato, portanto, não há circulação de riqueza, o que é vital para o desenvolvimento da sociedade. Por meio do contrato, as partes concretizam os direitos fundamentais assegurados pela Carta Constitucional nas relações jurídicas privadas 4 . O contrato é uma das fontes voluntárias das obrigações. Renan Lotufo adverte que o contrato “torna--se um instrumento de cooperação entre as pessoas que, no âmbito do sinalagma e da comutatividade, há que preservar a igualdade de sacrifícios, que, se não decorrer da colaboração conjunta dos que participam da avença, será por força da lei que busca a concretização dos princípios fundamentais” 5 .

Princípios. Regras. Necessária harmonização. A visão contemporânea do Direito Contratual é iluminada pelos princípios da solidariedade social 6 e da dignidade da pessoa humana. O dever de respeito aos direitos fundamentais e à proeminência do dever bilateral de cooperação dos contratantes é valor supremo que serve como norte nesse campo da ciência do direito. Decerto, as regras jurídicas continuam a ter valor nos dias que correm. Os conceitos jurídicos sedimentados ao longo da história devem ser relativizados com cautela pelo intérprete. Os valores e os princípios ocupam papel de relevo no direito contemporâneo, por certo. Entretanto, não significa afirmar que se está abandonando as regras jurídicas, dotadas, por sua essência, de concretude. O direito dos contratos atual continua dependendo das regras jurídicas (concretas, por excelência) para ter sua adequada aplicação à realidade. As regras jurídicas servem como um mecanismo garantidor da previsibilidade dos comportamentos humanos no ambiente do contrato. Servem igualmente para fornecer a segurança jurídica no plano negocial. O intérprete contemporâneo deve encontrar um termo médio , um ponto de equilíbrio entre os princípios jurídicos (normas de maior densidade axiológica) e as regras jurídicas (normas dotadas de maior concretude) no plano do direito contratual 7 . Note bem: é preciso cautela do intérprete no processo de crescente relativização dos conceitos jurídicos. No dizer de Giovanni Ettore Nanni 8 , “tem-se verificado uma frequente, progressiva e reprovável prática de relativização dos conceitos, como se tratasse de uma providência corriqueira e elogiável. Mas não é. Se são conhecidos universalmente, servindo para a interpretação e a aplicação do Direito, seu âmago deve ser preservado inalterado”. A revisitação dos conceitos jurídicos na contemporaneidade é necessária, por certo. Contudo, a visão exacerbada da extrema flexibilização dos conceitos no plano do direito dos contratos, no seu correto dizer, “é muito diferente de se repudiar a significação do próprio conceito, relativizando-o, o que coloca em xeque o primado da segurança jurídica”.

Contrato. Cooperação. O direito contemporâneo impõe ao credor um dever de cooperação. A ninguém mais é dado negar esse fato. O credor deve concretamente viabilizar o adimplemento da prestação devida pela contraparte 9 . A função social do contrato 10 impõe ao jurista compreender que o fundamento precípuo do direito contratual é a liberdade do devedor e a possibilidade da reconquista da sua liberdade (cerceada por ato de vontade do próprio devedor) pelo comportamento daquele que a tanto se obriga. O contrato é “querer estar preso por vontade” (Camões). O direito pessoal é marcado pela transitoriedade do vínculo obrigacional. Significa dizer que todo contrato é estruturalmente transitório. Insere-se no rol dos chamados direitos pessoais , aos quais se contrapõem os direitos reais (que são marcados pela perpetuidade, como regra), na clássica divisão herdada do direito romano. Pelo contrato, a liberdade individual fica afetada pela própria relação jurídica nascida. O vínculo jurídico que afeta a esfera de liberdade do contratante é rompido em virtude do exato cumprimento da prestação devida por aquele que a tanto se compromete. No contrato, o homem readquire a sua liberdade pelo seu próprio comportamento 11 .

Obrigação. Contrato. Relação jurídica complexa. Assim como a obrigação o é, também o contrato é uma relação jurídica complexa 12 . Nas suas perspectivas estrutural e funcional, o contrato é uma fonte de direitos, de obrigações, de ônus, de poderes e de deveres. Por sua estrutura, toda relação jurídica (na qual se inserem as relações contratuais) é uma relação entre situações jurídicas. Não se trata simplesmente de uma relação estabelecida entre sujeitos de direito 13 . No contrato, os valores acolhidos pelo ordenamento jurídico são concretamente equacionados pela justa disciplina dos opostos centros de interesses dos próprios contratantes. O contrato é um instituto jurídico dinâmico. Isto é, no contrato, somente se chega a um bom termo se efetivamente houver leal colaboração dos que dele participam. O programa contratual exige colaboração bilateral para viabilizar o seu eficiente adimplemento. A boa-fé lealdade (reiteradamente referida pela doutrina como boa-fé objetiva) e a probidade das partes contratantes são essenciais para o cumprimento do programa contratual. O art. 422 do Código Civil explicita tais deveres 14 , por certo. A relação dos contratantes deve pautar-se pela cooperação e pelo mútuo respeito às respectivas situações jurídicas, assim como pela proteção dos interesses assegurados a cada um dos seus titulares.

Contrato. Boa-fé lealdade. A boa-fé lealdade (boa--fé objetiva) é um princípio cardeal que inspira todo o direito contratual. Representa um essencial vetor de interpretação dos negócios jurídicos. A boa--fé lealdade preserva, conserva e garante a eficácia jurídico-social do contrato. A boa-fé deve ser considerada um requisito de validade de todo negócio jurídico. O art. 113 do Código Civil, conforme lição de Renan Lotufo 15 , soma a boa-fé (lealdade) aos demais requisitos de validade do negócio jurídico previstos no art. 104 do Código Civil. A boa-fé lealdade é uma “cláusula geral de interpretação conforme”. Faz expressar-se em reação ao positivismo jurídico exacerbado que não mais vinga entre nós. Decerto, o conceito de boa-fé (assim como os de lealdade e veracidade, por exemplo), enfatiza Judith Martins--Costa 16 , não é oferecido por regras jurídicas preestabelecidas. A conformação jurídica da boa-fé lealdade sobressai no processo de construção do significado de todo negócio jurídico. A boa-fé lealdade é um princípio basilar de toda vida negocial. A boa-fé é um vetor que orienta todos os comportamentos humanos em sociedade. É um paradigma de interação adequada e eficiente nas relações jurídicas. Dada a sua hiperpotência, a boa-fé lealdade ilumina a salvaguarda da vitalidade do próprio contrato. Marca o direito fundamental de segurança jurídica no plano das relações negociais. Serve ainda como garantidor da tutela da confiança negocial e o da proteção de expectativas legítimas dos contratantes 17 . O Enunciado 24 aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal (STJ) dispõe corretamente que “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.

Contratos existenciais. De acordo com Antônio Junqueira de Azevedo, os contratos podem ser divididos entre contratos existenciais e contratos de contratos de lucro (ou contratos empresariais). Essa dicotomia é relevante na interpretação contratual contemporânea. Cuida-se de um fundamental critério de classificação, nos quais o contrato se vê funcionalizado e inspirado por valores. Os contratos existenciais, segundo Azevedo, são aqueles vocacionados a satisfazer o acesso aos bens jurídicos essenciais para a existência humana digna. Nesse rol inserem-se os contratos de trabalho, os celebrados entre os particulares e as empresas operadoras de planos de saúde privados, assim como os contratos de aquisição de casa própria, os de conta corrente bancária e os contratos de locação residencial para moradia. Os contratos existenciais são os que dizem respeito aos bens jurídicos imbricados diretamente à garantia de existência humana digna. Decerto, o desafio do direito contratual contemporâneo é identificar um critério científico adequado para estabelecer a diferenciação entre os contratos existenciais e os contratos não existenciais. A própria nomenclatura é equívoca. Os contratos existenciais merecem atenção do intérprete na compreensão das linhas a seguir. Como se verá, os contratos existenciais reclamam um procedimento próprio na revelação do seu conteúdo e no poder de revisão do contrato pela autoridade judicial. “Os contratos empresariais teriam um regime de menor interferência judicial; neles, por exemplo, não caberia a revisão judicial por questões de onerosidade excessiva subjetiva, – possível, porém, sob a ideia de função social, quando se trata de pessoa humana e contrato existencial” 18 , ensina Antônio Junqueira de Azevedo. Teresa Negreiros, a respeito, afirma que “contratos incidentes sobre bens essenciais deverão ser mais sensíveis a um regime intervencionista; no outro extremo, contratos incidentes sobre bens supérfluos deverão ser pautados por maior liberdade e autonomia” 19 . A classificação doutrinária em destaque é central na tarefa de bem equacionar os conflitos de interesses surgidos no processo de interpretação e de revelação do conteúdo contratual. A nosso ver, na revisão judicial dos contratos, a essencialidade do objeto deve captar a atenção do intérprete.

Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.

Compra e venda. Conceito. O Código Civil brasileiro inaugura o tratamento jurídico dos chamados contratos típicos (ou contratos nominados) pela compra e venda. Na definição de Clóvis Beviláqua 20 , a compra e venda é o contrato por meio do qual uma pessoa se obriga a transferir para outra o domínio de uma coisa determinada por certo preço em dinheiro ou em valor fiduciário equivalente. A expressão “coisa” não deve ser aqui tomada na sua acepção ampla. Não abrange as coisas materiais e imateriais. A compra e venda refere-se ao domínio, necessariamente. Significa dizer que a compra e venda diz respeito à titularidade das coisas essencialmente corpóreas. Certo é que o negócio jurídico pode ter como seu objeto tanto os bens corpóreos quanto os incorpóreos. Os direitos de invenção e a propriedade literária igualmente podem ser objeto de relações negociais. Ocorre que, nessas situações, a transmissão de titularidade ocorre por meio de cessão 21 .

Origem. O contrato de compra e venda tem a sua gênese na organização das sociedades. Surge com o aparecimento da própria moeda. Até esse momento histórico, prevaleceu entre as civilizações a troca (o escambo ou a permuta). O contrato de compra e venda reflete a evolução dos povos com a facilitação da circulação da riqueza e com a aquisição de bens necessários para satisfazer às necessidades individuais. Como enfatiza Paulo Luiz Netto Lôbo, “à medida que cresceu a compra e venda, reduziu--se a importância da troca” 22 . No direito romano, as solenidades exigidas para a compra e venda e para a tradição assumiam relevo mais intenso que a própria manifestação do consenso das partes. Somente mais tarde, em um estágio mais evoluído da civilização (século II), com o jus gentium , com a necessidade de contratar com os outros povos, o direito romano passa a admitir as formas contratuais que se constituíam pelo consenso, isto é, com a suficiência do acordo das vontades. Foi o que se observou em relação à compra e venda e aos contratos de locação, de mandato e de sociedade 23 . Na contemporaneidade, ultrapassada há muito a compreensão marcada pela influência decisiva do Estado Liberal (como foi desejado pelo revolucionário francês e assim refletido no Code), a hipertrofia da vontade individual 24 cede lugar à compreensão do contrato como um meio de realização dos valores e dos princípios constitucionais nas relações intersubjetivas 25 . Por força das exigências impostas pelos direitos do consumidor e concorrencial, a ciência jurídica busca encontrar um “ponto de equilíbrio” entre os contratantes. A ciência do direito visa identificar meios para se garantir concretamente o direito à informação 26 , à segurança jurídica 27 e à tutela do contratante vulnerável 28 . As exigências próprias da sociedade de consumo e da massificação das relações contratuais permeiam, na atualidade, o contrato de compra e venda.

Características. O contrato de compra e venda (não “contrato de venda e compra”, como por vezes alguns referem incorretamente, por não ser esta a designação que lhe atribui o legislador) é um negócio jurídico bilateral, oneroso, consensual, não solene (salvo quando a lei determina que o seja, como ocorre nas situações versadas pelos arts. 107 e 108 do CC), aleatório ou comutativo, de execução instantânea ou diferida. Essencialmente, a prestação do vendedor reside na entrega da coisa. De outro lado, a prestação do comprador consiste no pagamento do preço. É um negócio jurídico que serve como causa 29 , isto é, como título jurídico para alteração de titularidade da coisa (assim como ocorre nos contratos de doação e de permuta). O contrato de compra e venda é um negócio jurídico oneroso: implica vantagens e sacrifícios recíprocos para os contratantes. Isso não significa, contudo, que deva necessariamente haver exata comutatividade (correspectividade) entre o preço e a coisa para que somente assim possa ser a compra e venda considerada válida (arts. 104 e 113 do CC).

Consenso. Compra e venda a crédito. Jurisprudência. Decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “(…) a ‘venda a prazo ou a crédito’ revela-se modalidade de negócio jurídico único, o de compra e venda, no qual o vendedor oferece ao comprador o pagamento parcelado do produto, perfazendo-se o contrato, nos termos do art. 482 c/c 491, do Código Civil, tão logo as partes acordem no objeto e no preço, efetivando-se a tradição (…)” 30 .

Compra e venda sucessiva. Por se tratar de alienação onerosa de bens, a compra e venda, como regra, antecede à tradição da coisa (no que diz respeito aos bens móveis) ou ao registro translativo de propriedade (em se tratando de bens imóveis) 31 . Havendo a alienação sucessiva de um bem imóvel para mais de um comprador, aquele que primeiro vier a levar o título ao registro imobiliário (pelo princípio da precedência) será considerado o seu proprietário. Assim agindo, recebe a proteção dispensada pelo direito ao direito real 32 . Em relação aos outros pretensos adquirentes da coisa sucessivamente alienada de má-fé por seu titular, cabe o manejo de pretensão indenizatória (pautada pelo direito pessoal) contra o alienante desleal.

Negócio jurídico consensual. Caráter (eficácia) real do contrato de compra e venda. A compra e venda não tem como objeto a transmissão de uma coisa. O seu objeto é a transmissão de um direito sobre uma coisa. Essa lição deve ser bem compreendida. Na compra e venda, o acordo de vontades faz originar a obrigação de dar. Vale dizer, a compra e venda, por si só, não implica a transferência de titularidade da coisa (domínio) para o comprador. 33 No Brasil, a constituição do direito real exige, por expressa disposição de lei, a tradição (em relação aos bens móveis) e o registro (no que diz respeito aos bens imóveis). Fundamentalmente, é o que acentuam os arts. 1.226, 1.227 e 1.245 a 1.247 34 do Código Civil. Na verdade, a compra e venda serve como título translativo da titularidade do direito de propriedade. A compra e venda é o “fundamento e a razão jurídica da tradição ou da transcrição”, como enfatiza Clóvis Beviláqua 35 . A compra e venda é um negócio jurídico consensual por meio do qual o direito pessoal (de ordem obrigacional) surge a partir do acordo de vontades. O sistema jurídico brasileiro filiou-se à tradição germânica e distanciou-se do sistema francês (que foi seguido pelo direito português, conforme estabelece o art. 408º, 1, do Código Civil de Portugal). Aquele que adquire a coisa, paga o preço e não a recebe, não tem ação fundada no direito de propriedade (direito de sequela) contra o vendedor inadimplente. Não dispõe das ações petitórias. Dispõe o comprador (credor da coisa) de ação na qual pode vir a pretender o cumprimento específico do contrato (obrigação de dar), na relação qual, por certo, podem incidir as chamadas medidas coercitivas (medidas de apoio estabelecidas com eficiência crescente na legislação processual) vocacionadas ao cumprimento da própria obrigação de entrega da coisa contra o devedor (vendedor). No Brasil, repito uma vez mais, a compra e venda faz surgir o direito essencialmente de …

Uma nova experiência de pesquisa jurídica em Doutrina. Toda informação que você precisa em um só lugar, a um clique.

Com o Pesquisa Jurídica Avançada, você acessa o acervo de Doutrina da Revista dos Tribunais e busca rapidamente o conteúdo que precisa dentro de cada obra.

  • Acesse até 03 capítulos gratuitamente.
  • Busca otimizada dentro de cada título.
Ilustração de computador e livro
jusbrasil.com.br
21 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/art-481-secao-i-disposicoes-gerais-comentarios-ao-codigo-civil-ed-2023/1929472617