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15 de Maio de 2024

Inacreditável Judicial Clube: uma condenação sem denúncia

Publicado por Consultor Jurídico
há 9 anos

Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa

Seria possível uma condenação sem denúncia? A hipótese que remonta a Inquisição, pasmem, aconteceu. Todos sabemos que a função do jogo denominado processo é a de acertamento do caso penal[1]. Cometida a conduta imputada, a pena somente será executada a partir de uma decisão jurisdicional, presa ao seguinte pressuposto: a reconstituição significante da conduta imputada no presente, acolhida por decisão fundamentada, a partir de uma visão de verdade processual decorrente de processo em contraditório e com julgador sem função de jogador. Logo, necessário que a haja possibilidade de verificação da conduta, a partir de critérios mínimos pelos quais a defesa possa impugnar, bem assim o julgador possa considerar verificado. E isso exige denúncia/queixa apta.

O artigo 41 do Código de Processo Penal exige que a denúncia contenha a exposição do fato criminoso, com todas as circunstâncias, a qualificação do acusado, quando possível, a imputação e o rol de testemunhas. Também precisa ser assinada pelo Ministério Público ou pelo advogado com poderes para tanto (CPP, artigo 44). E a denúncia/queixa fixa os limites da narrativa acusatória. Assim, deve narrar não só o que, mas como ocorreu. Por isso deve seguir o modelo tópico-interrogativo[2] (quis, quid, ubi, quando, quibus auxiliis), segundo o qual é preciso apontar a) quem é o acusado?[3] b) que condutas são imputadas? C) onde teriam sido realizadas? D) quando, a data das condutas? E, e) com que meios a realizou?

A importância reside justamente que não se pode defender de condutas não narradas. O sujeito na democracia deve se defender de fatos precisos. Evidentemente que nem sempre todos os itens do modelo tópico-interrogativo poderão ser descritos, mas isso não pode ser implícito. Sem isso o processo não consegue garantir a ampla defesa e o contraditório. A acusação fixa os limites da instrução probatória e da decisão (correlação entre denúncia e sentença), justificando o indeferimento de provas, por exemplo. Daí serem ineptas as denúncias que descrevem longos espaços de tempo em que a conduta poderia ter acontecido, sem precisar minimamente datas e, assim, autorizar o contraditório. A imputação pressupõe a realização do núcleo do tipo penal e, como tal, deve ser descrita.

Pois bem, o colega João Santos Neves encaminhou julgado inacreditável. Não se trata de uma questão de prova da OAB. Não. Pelo contrário, um sujeito, no pós-Constituição de 1988, foi condenado em primeiro grau sem que o Ministério Público tivesse formulado sequer acusação. Ficamos curiosos para entender como aconteceu o devido processo legal no caso. Por sorte o Ministério Público, no exercício de sua função democrática, propôs revisão criminal. Consta expressamente da ementa:

REVISÃO CRIMINAL INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL - PLEITO DE NULIDADE DO PROCESSO - ENQUADRAMENTO NA HIPÓTESE DO ARTIGO 621, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - POSSIBILIDADE - SENTENÇA CONDENATÓRIA PROFERIDA SEM O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA PELO TITULAR DA AÇÃO PENAL - PEDIDO JULGADO PROCEDENTE. 1. Como é cediço, para se declarar a nulidade do processo, necessário se faz, em sede de Revisão Criminal, que o requerente demonstre a existência de elementos suficientes para a comprovação. 2. No caso focado, o parquet estadual demonstrou de forma clara que a sentença condenatória foi proferida em desconformidade com a lei, por não ter havido denúncia, ou seja, não houve deflagração da ação penal por parte do seu titular, a saber, o Ministério Público Estadual, estando configurada, portanto, a situação prevista no artigo 621, inciso I, do Código de Processo Penal. 3. Pedido julgado procedente.” (TJES, Revisão Criminal, 100120005739, Relator Des. José Luiz Barreto Vivas - Relator Substituto: Des. Fabio Brasil Nery. Órgão julgador: CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS. Data de Julgamento: 08/10/2012, Data da Publicação no Diário: 20/11/2012.

O devido processo legal substancial pressupõe que o sujeito seja acusado de uma conduta específica, no tempo e no espaço. Não se pode falar, sequer, de processo, uma vez que inexiste acusação e parece que o magistrado proferiu sentença condenatória de ofício. Insustentável, por agredir a lógica, é a versão corrente de que o acusado se defende dos fatos e seria desnecessária a denúncia formalizada. A atitude relembra as acusações próprias da Inquisição, afinal, sem uma conduta definida, como pode o acusado se defender?[4]

Na verdade inexistiu processo e mesmo assim o sujeito foi condenado. Foi necessária uma revisão criminal para anular a decisão! Teria o acusado cumprido pena? Começamos, assim, a nossa série do Inacreditável Judicial Clube. Se você possui uma decisão ou um caso, mande-nos por email. Esperamos que não tenhamos muitas colunas, embora nunca saibamos o nível da criatividade forense.

[1] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. A lide e o conteúdo do processo penal, p. 137. [2] CALVO GONZALEZ, José. El discurso de los hechos. Madrid: Tecnos, 1998. [3] Muitas vezes há dificuldades na identificação criminal do acusado, mas o processo segue adiante (CPP, art. 259). Ver Identificação Criminal. [4] TOVO, Paulo Claudio; TOVO, João Batista Marques. Apontamentos e Guia Prático sobre a denúncia no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; SILVÉRIO JUNIOR, João Porto; Opinio Delicti. Curitiba: Juruá, 2005. Vale destacar ser incabível a denúncia alternativa.

Diz Lopes Jr:

"Mas, se a denúncia genérica pode (ria) ser admitida em casos complexos e excepcionais, a denúncia alternativa deve ser plenamente vedada, pois ela inequivocamente impossibilita a plenitude de defesa. Não há como se defender sem saber claramente do que. Constituiria ela numa imputação alternativa, do estilo, requer-se a condenação pelo delito x, ou, em não sendo provido, seja condenado então pelo delito y (só falta dizer: ou por qualquer outra coisa, o que importa é condenar...). (...) Para encerrar a questão em torno da denúncia alternativa, verdadeira metástase inquisitorial, concordamos com DUCLERC, quando sintetiza que:" acima das exigências do princípio da obrigatoriedade, está, sem dúvida, o princípio da ampla defesa, a impedir, segundo pensamos, que qualquer pessoa seja acusada senão por fatos certos, determinados e descritos de forma clara e objetiva pelo acusador. [...] Daí por que a queixa tem de ser sempre certa e determinada, não se admitindo a acusação privada de cunho genérico ou alternativo. "

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Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/inacreditavel-judicial-clube-uma-condenacao-sem-denuncia/171780227

4 Comentários

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Aê, tá vendo aê por que o Garantismo Penal é importante? Tá vendo aê por que os Direitos Humanos são importantes? E fica a galera achando que defender direitos individuais é coisa de esquerdopata. :( continuar lendo

Ou eu não li corretamente ou não fiquei sabendo! Não fala nada sobre os defensores dos direitos humanos fazendo alguma coisa, ou defendendo algo.

Não sou contra os ativistas dos direitos humanos!
Só acredito que eles estão defendendo os indíviduos ao invés dos direitos que este deveriam ter! Independente de bandido profissional ou um coitado vitima de erro ou abuso judicial! continuar lendo

"Só acredito que eles estão defendendo os indíviduos ao invés dos direitos que este deveriam ter!"

Ficou meio confuso. Como assim defende os indivíduos, mas não defendem seus direitos? Se defende os indivíduos defende os seus direitos e se não defende estes não defende aqueles. Certo?

Boa sexta, Tony. E bom final de semana!!! continuar lendo

Meu Espírito Santo querido...

Quando tem denúncia não sentença, mas quando tem sentença não houve denúncia. continuar lendo