Juiz da 15ª Região escreve Carta Aberta sobre terceirização
Jorge Luiz Souto Maior
A sociedade brasileira está tendo a oportunidade de ver o que representa o processo de terceirização, sobretudo no setor público, a partir da realidade vivenciada – mais uma vez, infelizmente, na Universidade de São Paulo. Esta é uma situação muito triste, mas, ao mesmo tempo, grandiosa, ao menos por quatro aspectos: primeiro, porque os trabalhadores tercerizados estão tendo visibilidade (logo eles que estão por aí nos ambientes de trabalho como seres invisíveis); segundo, porque eles próprios estão se reconhecendo como cidadãos e estão demonstrando possuir, ainda, capacidade de indignação frente à injustiça; terceiro, porque os demais trabalhadores e cidadãos estão tendo a chance de exercitar um sentimento essencial da condição humana, a solidariedade; e, quarto, porque aos profissionais do direito está sendo conferido o momento para questionar os aspectos jurídicos que conduziram à presente situação. O fato é que a terceirização é, antes de tudo, um fenômeno criado pelo direito, tendo, portanto, o direito toda a responsabilidade quanto às injustiças que tal fenômeno produz.
A Universidade de São Paulo, como tantos outros entes públicos e privados, achou por bem contratar uma empresa para a realização dos serviços de limpeza no âmbito de suas unidades de ensino. E se assim fez é porque considerou que o direito lhe permitia fazê-lo. Tratando-se de um ente público a contratação se fez, por determinação legal, por meio de licitação.
Ocorre que, respeitando-se a lógica do procedimento em questão, quem sai vencedor da licitação é a empresa que oferece o menor preço – não sendo muito diferente o que se passa no âmbito das relações privadas.
Pois bem, o que se extrai desse contexto é a conseqüente lógica da precarização das garantias dos trabalhadores, pois há a transferência da responsabilidade de uma empresa economicamente sólida ou de um ente público para uma empresa que não possui, necessariamente, nenhum lastro econômico e cuja atividade não vai além de organizar a atividade de alguns trabalhadores e lhes repassar o valor que lhe seja pago pelo ente contratante dos serviços, o qual, ademais, não faz mesmo questão de saber se o valor pago vai, ou não, fragilizar o ganho dos trabalhadores, pois que vislumbra destes apenas o serviço prestado, sendo certo que considera, por óbvio, a utilidade de obter esse serviço pelo menor preço possível.
Do ponto de vista dos trabalhadores terceirizados as conseqüências dessa situação vão muito além da mera precarização das garantias do trabalho, significando mesmo uma forma de precarização da sua própria condição humana, vez que são desalojados do contexto da unidade em que prestam serviços. Os “terceirizados”, assim, tornam-se em objetos de contratos e do ponto de vista da realidade, transformam-se em seres invisíveis. E isso não é mera figura de retórica, pois a maior forma de alguém ver reduzida a sua condição de cidadão é lhe retirar a possibilidade concreta de lutar pelo seu direito e é isso, exatamente, o que faz a terceirização.
Vejamos esta afirmação a partir do exemplo da USP. O ente público contratou a empresa União, para uma prestação de serviços durante 05 (cinco) anos e o fez a partir do pressuposto do menor preço. Para extração de seu lucro, a empresa União, diante do valor que lhe era pago mensalmente, em diversas ocasiões deixou de cumprir os direitos dos trabalhadores e a Universidade de São Paulo bem sabia disso.
A situação em questão está documentada no Termo de Ajuste de Conduta n. 94, firmado pela referida empresa perante o Ministério Público do Trabalho (PRT – 2ª. Região), em 2007, pelo qual se comprometeu a fornecer vale-transporte aos trabalhadores, a efetivar os depósitos do FGTS e a recolher a contribuição previdenciária, assim como no Inquérito Civil, instaurado no âmbito do Ministério Público do Trabalho (PRT – 2ª. Região), em novembro de 2010, para apurar novas irregularidade cometidas pela empresa em questão com relação aos trabalhadores que executam seus serviços na USP, sobretudo no que tange denúncias de assédio moral, ameaças aos empregados e transferências com propósito de retaliação, seguindo, inclusive, reportagem elaborada no próprio “Jornal do Campus” e no Termo de Ajuste de Conduta n. 2.139, firmado também junto ao Ministério Público do Trabalho (PRT – 2ª. Região), em abril de 2011, desta feita para que a empresa União assumisse o compromisso de respeitar o intervalo legal de 11 (onze) horas entre duas jornadas de trabalho dos trabalhadores “terceirizados” em atividade na USP.
Ou seja, o que se passou a partir de 05 de abril de 2011, quando os trabalhadores da empresa União já estavam cumprindo aviso prévio, em razão do término do contrato de prestação de serviços entre dita empresa e a USP, vencido o prazo de 05 (cinco) anos, já era uma tragédia anunciada. Ora, como uma empresa que durante todo o curso do contrato de prestação de serviços se viu, de certo modo, “obrigada”, diante do valor do que lhe era repassado pela USP, nos termos do contrato, a eliminar direitos dos trabalhadores, tais como “vale-transporte”, teria condições financeiras de arcar com os custos legais do término de 400 relações de emprego?1 E olha que os exemplos apresentados de descumprimento da legislação não indicam as situações individualizadas, que de fato existem, de supressão de férias e exercício de trabalho em horas extraordinárias, fato que, ademais, é possível
razoavelmente supor a partir do próprio conteúdo do Termo de Ajuste de Conduta, firmado em abril de 2011 (acima citado), pois para que haja supressão do intervalo de 11 horas, ou o empregado trabalhava além de oito horas por dia ou tem que se submeter a um revezamento de horário que pode lhe integrar a novo regime de limitação da jornada.
Cumpre esclarecer, ainda, que, segundo versão da Empreza Limpadora União, expressa em nota pública, a Universidade de São Paulo já estava lhe pagando apenas 70% da nota de serviços há quatro meses e, em março/11, já tinha obtido decisão judicial, de caráter liminar, conferindo-lhe o direito ao recebimento integral da fatura, o que não teria sido respeitado pela Universidade.
Pois bem, com todo esse imbróglio, o que se verifica, na seqüência, é a utilização do Direito para, enfim, acabar de fulminar com os terceirizados!
O fato é que a USP já sabia, há muito, por óbvio, que a situação financeira da empresa prestadora não lhe permitiria arcar com os custos das cerca de 400 rescisões. Então, alguns meses antes do término do contrato da prestação de serviços, por oportuno, “descobriu” que a empresa prestadora tinha dívida com a União Federal (inscrita no CADIN) e, assim, deixou de repassar parte (precisamente, 30%) da prestação mensal que devia à prestadora. Mas, o fez, certamente, como forma de argumentar, mais adiante, apegando-se no novo entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da terceirização no âmbito público, que não poderia ser responsabilizada subsidiariamente pelas dívidas de natureza rescisória dos empregados da Empreza União (e mesmo com relação a todos demais direitos que restassem pendentes, considerando a situação individualizada dos trabalhadores terceirizados), pois que teria agido com a devida atenção ao fiscalizar a atuação da empresa de terceirização, tanto que logo que soube de sua condição de inadimplente perante o Estado tratou de reter o pagamento que lhe era devido...
Ora, só não querendo enxergar para não perceber a estratégia jurídico-econômica estabelecida pela Administração da Universidade no caso, tanto que não há precisão quanto a este número, dada a absoluta falta de transparência quantos aos termos do contrato firmado entre a USP e a Empreza Limpadora União (pela internet só se consegue saber que o contrato foi firmado no PROCESSO: TC-016602/026/06).
1. sequer se dispôs a dizer, publicamente, quando, afinal, fez essa grande “descoberta”. De todo modo, ainda que a descoberta tenha ocorrido, de fato, após a Universidade ter pago 70% da prestação à empresa prestadora, o fato concreto é que pelo próprio conteúdo do contrato é possível saber que lhe estava embutida uma lógica de supressão de direitos.
E, ademais, segundo versão da Empreza União, a Universidade vem adotando tal procedimento há quatro meses e, assim, mesmo com o conhecimento da dívida, tem pago 70% do valor da fatura. Mas, por que 70%? Qual a explicação jurídica para esse percentual?
Conforme os dados que vieram a público, a USP depositou em juízo 30% do valor da prestação mensal devida à empresa prestadora pelos serviços contratados de limpeza, que inclui mão-de-obra de cerca de 400 empregados e material de limpeza. Os 30% representaram, conforme consta do processo n. 0008336-48.2011.8.26.0053, com trâmite na 8ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São
Paulo, no qual o depósito foi realizado, a importância de R$146.493,43. Isso significa dizer que o valor total da prestação mensal é de R$488.311,43, o que se demonstra totalmente insuficiente para o pagamento sequer dos cerca de 400 empregados, ainda mais se considerarmos que do pagamento em questão a empresa prestadora retira ainda valores necessários à compra de material de limpeza, tributos e, por óbvio, o seu lucro. A matemática é implacável: o salário desses trabalhadores é, em geral, o salário mínimo, qual seja, R$545,00 e segundo o professor da FEA/USP, José Pastore, “Em decorrência da legislação, as empresas pagam cerca de 102% sobre o valor do salário” (Emprego e encargos sociais, artigo publicado em O Jornal da Tarde, 09/02/1994), acrescentando, ainda, que “O custo da rescisão do contrato de trabalho é elevado, podendo chegar a 2 salários (em alguns casos, até mais).” (Idem, Relações de trabalho - flexibilizar para sobreviver, artigo publicado em A Folha de São Paulo, 21/04/1990). Assim, chegar-se-ia ao custo total mensal de R$440.360,00, a título exclusivo de mão-de-obra, isto sem considerar a custo do material de limpeza para 10 (dez) unidades, os tributos e o lucro da empresa prestadora, além do custo adicional das rescisões.
Resta claro, pois, que o desrespeito aos direitos trabalhistas está inserido no contexto da terceirização operada, o que, aliás, não é um privilégio da situação em exame. A precarização trata-se, como se verifica em diversas outras experiências, da própria lógica do fenômeno, proporcionando, até mesmo, o exercício, de forma natural, da perversidade, pois, afinal, como se verifica na situação em comento, não pode mesmo ser outro o sentimento que inspira a Administração da Universidade ao engendrar uma “saída” jurídica para mais adiante tentar se desvencilhar de qualquer obrigação perante os direitos dos trabalhadores terceirizados, não tendo, para tanto, a menor preocupação com o que se passará na vida dessas pessoas sem o concreto recebimento do salário e a perda do emprego seguida do não recebimento de verbas rescisórias. Se pessoas vão, de fato, passar necessidade isso não lhe importa; o que vale mesmo é defender o “interesse público” de sugar as forças de pessoas sem qualquer comprometimento jurídico ou humanístico.
Cumpre não olvidar que estamos falando de pessoas que recebem salário mínimo, cujo montante, portanto, é estritamente alimentar.
E sabem o que dirão os Administradores da USP? Dirão que estão agindo em conformidade e nos limites da lei e que não podem, “infelizmente”, por mais que compreendam os dilemas humanos dos “terceirizados”, fazer algo a respeito. Dirão, ainda, que o que podiam fazer já fizeram, que foi efetuar o pagamento do valor contratualmente fixado, mediante depósito judicial. A empresa prestadora, por sua vez, dirá que o problema não é seu, pois só não efetuou o pagamento do salário por conta do procedimento adotado pela Universidade...
No jogo de empurra, resta aos terceirizados esperar a boa vontade de alguém, que não virá! O final da história já se sabe: se receberem os salários, sabe-se lá quando, não receberão, por certo, a integralidade de suas verbas rescisórias e se verão obrigados a ingressar na Justiça para o recebimento de tais valores, o que, com otimismo, deve levar dois ou três anos, a não ser que aceitem receber menos do que tem direito mediante um “acordo”, no qual conferirão “quitação” de todos os seus demais eventuais direitos, até porque, como apregoa o Supremo Tribunal Federal, “conciliar é legal”. E tudo se acertará, sem muitos incômodos... Afinal, por que se preocupar tanto com direitos de terceirizados que já estão acostumados com essa situação?
Por oportuno, vale o registro de que alguns empregados terceirizados, que vivenciaram a mesma situação, em 2006, ao término do contrato de outra empresa de terceirização, não receberam até hoje os seus direitos, como se verifica no Processo nº 01654200501802000, com trâmite no TRT da 2ª. Região (18ª. Vara), no qual são partes: Reclamante: Érica Rodrigues da Silva e Reclamadas: Bioclean Serviços Ltda. e IPEN - Instituto de pesquisas Energéticas e Nucleares (Autarquia Estadual vinculada à USP). A reclamação trabalhista em questão, movida em 2005, ainda não resultou no recebimento de qualquer valor por parte da reclamante, embora a sentença lhe tenha sido favorável, sendo mantida pelo Tribunal Regional. Ocorre que o IPEN interpôs Recurso de Revista, seguido de Agravo de Instrumento, para tentar levar o processo ao Tribunal Superior do Trabalho, talvez na tentativa de se ver livre de qualquer obrigação perante à Sra. Érica Rodrigues da Silva, vislumbrando, até mesmo, no caso de insucesso, recorrer ao Supremo Tribunal Federal, seguindo a “moderna” jurisprudência daquela Corte a respeito do assunto. A propósito, só para constar: a empresa Bioclean Serviços Ltda. possui processo de Falência (n. 0834106-14.2007.8.26.0000/02 - 000.05.092909-7/00002), em trâmite na 2ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais...
Assim, não se pode deixar de considerar que há um grande risco, na verdade, uma quase certeza, de que os trabalhadores terceirizados jamais receberão os seus direitos, pois segundo o entendimento de “vanguarda” do Supremo Tribunal Federal a respeito da questão, inexiste responsabilidade do ente público pelas dívidas trabalhistas das empresas prestadoras de serviço na terceirização, a não ser nas situações em que se consiga fixar, em concreto, a culpa do ente público no que tange ao inadimplemento das obrigações trabalhistas. Só que a considerar a estratégia utilizada pela USP, de depositar em juízo parte dos valores que devia repassar à empresa terceirizada, sob o argumento de que esta tinha dívidas com o Estado, não é difícil imaginar a dificuldade que os trabalhadores terão em apontar a culpa da Universidade.
É interessante perceber que esse efeito fático, de deixar os terceirizados literalmente na mão, provocado pela decisão do STF na já famosa ADC n. 16, tem sido encarado como uma “vitória” pelos entes públicos, como anuncia a nota da Procuradoria Geral do Distrito Federal: "A Procuradoria-Geral do Distrito Federal obteve vitória hoje à tarde, em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, referente à Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, referente ao artigo 71, da Lei nº 8.666/93. A decisão afasta em definitivo a responsabilidade do Poder Público em relação a qualquer débito trabalhista e fiscal das empresas contratadas. Importa destacar que esta decisão implica a economia de milhões de reais para os cofres distritais, já que existem mais de 4 mil ações judiciais em quais o Distrito Federal foi condenado a arcar com dívidas de empresas que prestaram serviços ao ente federativo. A importância do tema se revela na medida em que todos os estados-membros, a União e diversos municípios se uniram à iniciativa pioneira do DF em propor a ADC."2
Aliás, é mesmo impressionante a quantidade de entes públicos que interferiram como “amigos” do Distrito Federal na referida Ação Direta de Constitucionalidade acerca do art. 71, da Lei n. 8.666/93, quais sejam: Departamento de Trânsito do Estado do Pará; Município de Belo Horizonte, Município de Jundiaí/SP, Município de Arcoverde, Município do Rio de Janeiro, Município de São Paulo, Município de Juiz de Fora, Município de Santo André, Município de Goiânia.
2. Nota do Gabinete da PGDF. In: http://www.apdf.org.br/index.php ?option=com_content&view=article&id=68:vitoria-da-pgdf-na-adc-16-afastaaresponsabilidade-do-estado-pelo-pagamento-de-debitos-de-empresas-erceirizadoras-de-mao-de-obra&catid=18:noticias&Itemid=36, acesso: em 14/04/11.
Município de Boa Vista, Município do Recife, Município de Belém, União Federal, Estados do Amazonas, Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Espírito Santo, Maranhão, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo e Tocantins).
Essa situação revela que, de fato, estão todos unidos contra os “terceirizados”, pois, afinal, segundo se quer acreditar, talvez seja a concessão de direitos aos terceirizados o que trava o desenvolvimento do país...
Não pode haver dúvida: o entendimento do Supremo será utilizado para enterrar, de vez, os direitos dos trabalhadores terceirizados. E se dirá: não há injustiça nenhuma nisso, pois tudo tem o respaldo do Direito!
O problema é que não tem.
Como dito pelo Ministro Peluso, na mesma Ação Direta de Constitucionalidade, a terceirização no serviço público não tem amparo constitucional. De fato, não há um dispositivo constitucional sequer a autorizar o ingresso na realização de serviços essenciais ao ente público se não for por meio de ingresso por concurso público, salvo em situações de excepcional interesse público em caráter temporário.
Dizem o art. 37 e seus incisos I e II da CF: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
Têm-se, assim, expressamente, fixados na Constituição os requisitos antes mencionados, para a execução de serviços públicos: impessoalidade; publicidade; moralidade; acesso amplo; concurso público; tudo para evitar os defeitos por demais conhecidos do favorecimento, do nepotismo e da promiscuidade entre o público e camadas privilegiadas do setor privado.
Resulta desses dispositivos que a execução de tarefas pertinentes ao ente público deve ser precedida, necessariamente, de concurso público. Nestes termos, a contratação de pessoas, para prestarem serviços à Administração, por meio de licitação fere o princípio do acesso público. Assim, se, por exemplo, algum município quiser contratar um servidor, deverá fazê-lo mediante realização de concurso público
de provas e títulos, que será acessível a todos os cidadãos, respeitados os requisitos pessoais exigidos em termos de qualificação profissional, por acaso existentes e justificados em razão do próprio serviço a ser realizado. Ao se entender que o mesmo município possa realizar esse mesmo serviço por meio de uma empresa interposta, estar-se-á, simplesmente, dando uma rasteira no requisito do concurso público e mais permitindo o favorecimento de uma pessoa jurídica, que, no fundo, estará recebendo dinheiro público, sem uma justificativa para tanto.
Claro, se poderá dizer que há previsão, também na Constituição, no inciso XXI, do mesmo artigo 37, no sentido de que o ente público poderá contratar serviços mediante processo de licitação: “XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
É tão óbvio que a expressão “serviços” contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário. Ora, como já dito, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta se teria como efeito a ineficácia plena dos incisos I e II, pois que ficaria na conveniência do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para tanto, a qual se incumbiria de escolher, livremente, a partir dos postulados jurídicos de direito privado, as pessoas que executariam tais serviços.
O inciso XXI, evidentemente, não pode ter tal significação.
Tomando o artigo 37 em seu conjunto e mesmo no contexto do inciso XXI, em que se
insere, o termo “serviços” só pode ser entendido como algo que ocorra fora da dinâmica
permanente da administração e que se requeira para atender exigência da própria
administração, como por exemplo, a implementação de um sistema de computador,
ou a preparação dos servidores para trabalhar com um novo equipamento. Para esses
serviços, o ente público poderá contratar, por prazo certo, uma empresa especializada,
valendo-se, necessariamente, de processo de licitação.
Não se pode entender, a partir da leitura do inciso XXI, que
o ente público, para implementar uma atividade que lhe seja própria e permanente,
possa contratar servidores por meio de empresa interposta, até porque, se pudesse,
qual seria o limite para isto? Afinal, serviço é o que realizam todos os que trabalham
no ente público. O que fazem os juízes, por exemplo, senão a prestação de serviços ao
jurisdicionado?
Costuma-se dizer que a “execução de tarefas executivas”3,
como, por exemplo, os serviços de limpeza, podem ser executados por empresa
interposta, baseado no que prevê um decreto de 1967, número 200 e em uma Lei de
1970, número 5.645. Em primeiro lugar, um decreto e uma lei ordinária não podem
passar por cima da Constituição, ainda mais tendo sido editados há mais de 40 anos
atrás. Segundo, a Constituição não faz qualquer distinção quanto aos serviços para fins
da necessidade de concurso público. Mesmo a contratação por tempo determinado, para
atender necessidade temporária de excepcional interesse público, deve ser precedida
de pelo menos um processo seletivo. E, terceiro, como justificar que os serviços de
limpeza possam ser exercidos por uma empresa interposta e não o possam outros tipos
de serviço realizados cotidianamente na dinâmica da administração, como os serviços
burocráticos de secretaria e mesmo todos os demais?
Se nos “serviços” a que se refere o inciso XXI pudessem ser
incluídos os serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente
não haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam,
naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não declarado
da discriminação. Mas, isto, como se sabe, ou se deveria saber, fere frontalmente
os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da
cidadania.
Vale a pena, por isto, relembrar alguns textos constitucionais
que devem ter incidência neste assunto, pois não é somente um pretenso interesse do
administrador que pode ser considerado:
Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (....) III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º: Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: (....) IV - promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
3.
Maria Sylvia Zanella di Pietro, Parcerias na Administração Pública, Atlas, São Paulo, 1999, p. 168.
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: XLI - a lei punirá qualquer discriminação
atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
Art. 7º: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social: (....)
XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e
intelectual ou entre os profissionais respectivos;
Retomando, a normatividade interna e o aspecto da abrangência
da expressão “serviços”, contida no inciso XXI, do art. 37, da Constituição, interessante
verificar que a própria Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regula o processo
de licitação, considera, para fins da referida lei, “Serviço - toda atividade destinada a
obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição,
conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação,
manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-
profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo o seu caráter temporário, conforme
previsão do art. 8o.: “A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre,
em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua
execução.”
Verdade que na mesma lei, encontra-se o inciso II, do artigo 57, que ao dispor do limite da duração dos contratos firmados com a Administração
por meio de processo licitatório faz menção, excepcionando a regra, “à prestação
de serviços a serem executados de forma contínua” à Administração. Mas, em
primeiro lugar, referido dispositivo foi inserido na Lei em 1998, alterando inovação
do texto legal realizada, em 1994, talvez no sentido de legitimar algumas práticas de
terceirização já existentes no setor público, só que, evidentemente, não há legitimação
de uma situação fática que contrarie a Constituição. Como a Constituição, como visto,
determina que os serviços atinentes à dinâmica da Administração sejam realizados por
servidores concursados, não será uma lei ordinária que dirá, validamente, o contrário.
Assim, adotando-se o princípio da interpretação em
conformidade com a Constituição, o serviço contínuo, referido no inciso II, do
art. 57, da Lei n. 8.666/93, só pode ser entendido como um serviço que se preste à
Administração, para atender uma necessidade cuja satisfação exija alta qualificação de
caráter técnico, requerendo, portanto, por meio de processo licitatório, a contratação
de uma empresa especializada e que, embora permanente sua execução, se inclua na
lógica do contexto de sua dinâmica organizacional apenas esporadicamente, como, por
exemplo: a manutenção de elevadores; o transporte de valores em vultuosa quantia...
Para além disso ter-se-á uma flagrante inconstitucionalidade.
Verdade que o artigo 175, também da Constituição, fornece ao
administrador a possibilidade de escolha no que se refere aos serviços públicos. Diz o
referido texto constitucional: “ Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente
ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de
serviços públicos.”
No entanto, não se há confundir os “serviços” mencionados
no inciso XXI, com serviço público. O serviço público, como explica Celso Antônio
Bandeira de Mello, “é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade
material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente
pelos administrados”4.
Os “serviços públicos”, mencionados no artigo 175, têm,
portanto, natureza diversa dos “serviços” a que se referem o inciso XXI, do art. 37.
Os serviços públicos são prestados aos administrados e não à própria administração.
A execução desses serviços públicos pressupõe, por óbvio, a criação de uma estrutura
que seja própria a consecução de seus fins e que requer, portanto, o exercício de alguma
atividade de natureza empresarial, que o Estado pode realizar por si ou mediante
outorga a um ente privado, mediante licitação. Não se concebe, pela regra do art. 175,
que o Estado transfira para o particular um serviço atinente à sua própria organização
interna ou mesmo um serviço que se destine à população, mas que não requeira nenhum
tipo de organização de caráter empresarial, pois neste último caso, a interposição do
ente privado se faria apenas para possibilitá-lo explorar, economicamente, a atividade
pública, sem oferecer nada em troca. Esta última questão pode ser mais polêmica,
concordo, mas de todo modo não pode haver dúvida de que o art. 175 não é fundamento
para a mera terceirização de serviços no âmbito da administração pública.
Contra a “tese” que se está sustentando neste texto pode-se,
ainda, mencionar o disposto no artigo 247 da Constituição: “As leis previstas no inciso IIIdo § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais
para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições
de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.”
Assim, segundo a própria Constituição haveria uma distinção
entre as atividades desenvolvidas no âmbito da Administração, sendo algumas
consideradas “atividades exclusivas de Estado” e, outras, conseqüentemente, não.
Sim, isto é inquestionável, diante dos inequívocos termos
do dispositivo constitucional. No entanto, abstraindo a dificuldade do que seria,
Curso de Direito Administrativo, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 634.
propriamente, atividade exclusiva de Estado, o fato é que a diferenciação feita pela Constituição diz respeito, unicamente, aos critérios específicos para a “perda do
cargo”, não tendo, portanto, nenhuma influência no aspecto do ingresso no serviço
público, do que se trata a questão posta em discussão. Aliás, é o próprio artigo 247 que
acaba reforçando a idéia de que o ingresso de todos os servidores da Administração,
independente da tarefa que exerçam, se dê por intermédio de concurso público, pois, do
contrário, não haveria sentido em trazer a distinção quantos aos critérios para a perda do
cargo.
Conclusivamente, não há em nosso ordenamento constitucional
a remota possibilidade de que as tarefas permanentes e constantes que façam parte
da dinâmica administrativa do ente público serem executadas por trabalhadores
contratados por uma empresa interposta. A chamada terceirização, que nada mais
é que uma colocação da força de trabalho de algumas pessoas a serviço de outras,
por intermédio de um terceiro, ou seja, uma subcontratação da mão-de-obra, na
esfera da Administração Pública, trata-se, portanto, de uma prática flagrantemente
inconstitucional.
E aí é que mora a maior gravidade do presente assunto.
Desrespeita-se, frontalmente, a Constituição ao se efetuar a contratação de
trabalhadores, no setor público, por intermédio da terceirização e, depois, constatada
a precarização dos direitos desses trabalhadores, que está na própria lógica do
fenômeno, busca-se permitir ao ente público valer-se do “direito” para se eximir de
responsabilidade, como se este fosse, de fato, o interesse público. Mas, o que sobressai
não é a razão jurídica e sim a pura maldade, que tem, pesarosamente, adquirido
inúmeros adeptos no mundo do “direito”.
Voltando ao caso da USP, sabem o que a Administração da
Universidade promoveu no momento em que os trabalhadores terceirizados paralisaram
suas atividades como forma política de pleitearem o recebimento de seus salários?
A USP contratou, em caráter de urgência, outra empresa de prestação de serviços,
demonstrando, claramente, como estava “preocupada” com a situação humana dos
terceirizados! E as contradições, então, emergem ainda mais. Ora, se o argumento
da terceirização dos serviços de limpeza parte do pressuposto de que a atividade
de limpeza não é essencial à dinâmica da Universidade, como a Universidade não
consegue prosseguir suas atividades, durante um só dia, sem o serviço de limpeza?
Cumpre observar que, em concreto, o que a Universidade fez foi
frustrar o direito de greve dos trabalhadores terceirizados, sendo certo que a lei de greve
impede a contratação de trabalhadores durante o período da paralisação dos serviços.
Bem verdade que, do ponto de vista estritamente legal, os terceirizados não estavam,
tecnicamente, em greve, vez que o movimento não foi deflagrado pelo sindicato que os
representa. Isso, no entanto, não retira a legitimidade do movimento, pois, ademais, os
terceirizados não estavam em busca de melhores condições de trabalho, que é o objeto
de uma greve, e sim exercendo o direito de não cumprirem a sua obrigação contratual
de prestar serviços enquanto as partes contrárias não cumprissem a parte que lhes cabia,
que era a do pagamento do salário em face de um serviço já executado.
Resumo da ópera: os cerca de 400 trabalhadores terceirizados
da USP não receberão seus salários e perderão seus empregos sem o conseqüente
recebimento das verbas rescisórias, isto sem falar em outros direitos que possam não
lhes ter sido pagos no curso das respectivas relações de emprego. Essa situação, que,
ademais, representa a história de milhões de trabalhadores terceirzados brasileiros, não
agride a consciência de ninguém que não se sinta inserido nela. Aliás, a perspectiva
de análise sobre o tema em questão tem sido a do tomador dos serviços, unindo-se
as inteligências nacionais a serviço da proteção do Estado (Executivo, Legislativo e
Judiciário) em face dos “ameaçadores” direitos dos terceirizados.
Talvez o que falta, para uma melhor análise jurídica do
fenômeno, seja uma efetiva compreensão do que se passa na vida dessas pessoas e quem
sabe a presente greve dos terceirizados da USP possa se constituir uma oportunidade
para tanto. Com vistas a contribuir para essa reflexão, permitam-me fazer o relato da
recente experiência que vivi em “meio dia como terceirizado”.
No dia 11 de abril, diante da notícia de que os trabalhadores
terceirizados da USP haviam entrado em greve, compareci no Campus para
compreender a situação. No local, fui convidado pelos trabalhadores para integrar uma
comissão de 10 (dez) trabalhadores que queriam conversar com representantes da USP,
para que lhes fosse passada uma posição a respeito de seus salários e demais direitos. A
comissão restou formada por volta das 8h, quando, então, foi transmitida a informação
aos representantes da Universidade o propósito da comissão. Pediram-nos, em resposta,
que aguardássemos e assim fizemos...
Enquanto isso, fui conhecendo um pouco mais aquelas
pessoas e as suas dificuldades. Muitos estavam mesmo desesperados, sem saber
como fariam se os salários não lhes fossem pagos o quanto antes. Eles não se
conformavam com a situação. Não entendiam como aquilo poderia estar ocorrendo
dentro da maior Universidade do país. Sua indignação advinha, sobretudo, do fato
de que eram constantemente assediados pelos supervisores, que lhes exigiam, com
bastante rigor, a execução regular de suas tarefas e o cumprimento de horários e
demais obrigações e, agora, os mesmos rigores não serviam ao seu empregador e
à Administração da Universidade quanto ao respeito de seus direitos. Diziam, com
freqüência: “Comparecemos aqui todos os dias a partir das 5h e 30’, cumprimos todas
as nossas tarefas sob ameaças e coações de todo tipo, e, agora, eles simplesmente não
pagam nossos salários nem aparecem para nos dar explicações!” Os supervisores, aliás,
estavam por ali, passando as mesmas dificuldades dos demais...
Conheci histórias de diversos deles, relatando a supressão
de direitos, como a que atingia alguns que se encontravam já há dois anos sem tirar
férias, mas a de uma, em especial, me chamou a atenção. Esta trabalhadora (a Sra.
Moura) estava atuando na USP, na condição de faxineira, há 17 (dezessete) anos, tendo
passado por diversas empresas de prestação de serviços. Ela não se via, por óbvio, como
empregada da empresa de prestação de serviços, que era plenamente transitória em
sua relação com a USP e cujos proprietários sequer conhecia. O seu vínculo era com a
Universidade, a qual conhece como poucos, conforme os relatos que me fez... Passei a
perceber, então, que este era um sentimento comum. Em geral, eles consideravam que
faziam parte da Universidade, com a peculiaridade marcante de que não se vinculavam
a uma unidade específica, conhecendo a dinâmica de várias delas. Claro, a visão deles
era periférica, já que não tinham, em quaisquer das unidades, uma reciprocidade. Em
concreto, os servidores, professores e alunos dos vários locais onde trabalhavam não
lhes conheciam. Seu contato era restrito com os responsáveis pelo serviço de limpeza.
A conversa ia bem, até que percebi que já estávamos há mais
de três horas esperando. Dirigi-me, então, acompanhado dos membros da comissão,
à entrada do prédio da Administração da Universidade e qual não foi minha surpresa
ao ver a montagem de um forte aparato de proteção contra a nossa presença no local.
Queríamos entrar para ficar na sala de espera até o momento de sermos atendidos, pois
já estávamos cansados de ficar sentados no chão do lado de fora do prédio, mas as
portas estavam fechadas para nós, mediante a presença de seguranças. Pouco adiantava
eu dizer que aquele era um prédio público e que eu e “meus companheiros” tínhamos
solicitado uma audiência. Os seguranças pouco se importavam. Tinham ordens
expressas para impedir a nossa entrada e o fariam de forma violenta se fosse necessário,
pelo que pude perceber quando ameacei forçar um pouco a barra...
Em meio a tudo isso, servidores da Unidade em questão
entravam para trabalhar e sequer nos olhavam. Era como se não existíssemos e quando
percebiam nossa presença sentiam-se incomodados. Lá pelas tantas, já um pouco
cansado, indaguei a um servidor, que buscava entrar no prédio, se ele não se importava
com o que estava se passando com os terceirizados. Ele disse-me, simplesmente,
que “as pessoas hoje em dia estão muito individualistas...”
Depois de muita insistência, veio uma ordem lá de dentro no
sentido de que eu poderia entrar. Quando me dirigi à entrada, junto com um trabalhador
terceirizado que ainda estava comigo (o Sr. André), pois os demais já haviam desistido,
fomos novamente barrados, sob alegação do segurança de que eu poderia entrar, mas o
terceirizado não. Aquela discriminação doeu forte e decidimos não entrar...
Passadas mais de 05 (cinco) horas, resolveram nos atender.
Exigiram, no entanto, uma redução do número dos membros da comissão para três
e indicaram, estrategicamente, um local para tanto bastante distante daquele onde
nos encontrávamos. Aceitamos assim mesmo e quando, enfim, fomos atendidos, as
explicações foram aquelas já relatadas acima, as quais, duas horas depois, repassamos
aos demais trabalhadores (e fui, pessoalmente, questionado, com certo veemência,
pelos manifestantes, como se parte da culpa por aquela situação fosse minha...) Foram,
assim, cerca de 07 (sete) horas de espera para ter informação sobre o problema e
os esclarecimentos foram, traduzidos para o bom português, no sentido de que a
Universidade não poderia fazer nada por eles. Não havia nenhuma perspectiva de que os
seus salários fossem efetivamente pagos.
Enquanto isso, alguns alunos e professores de uma dada unidade
começaram a se mobilizar para manter a Faculdade limpa para o devido funcionamento,
buscando demonstrar que os meus companheiros não faziam falta. Eles percebiam isso
e se incomodavam profundamente, como se incomodavam, também, ao ver outros
trabalhadores chegando para ocuparem os seus lugares, mediante contratação da nova
empresa de prestação de serviços que fora chamada, em regime de urgência, pela
Universidade. Esse autêntico desprezo pela sua causa lhes doía ainda mais forte...
Extenuado, por volta das 17h, fui embora. Mas, cumpre
perceber. Eu fui embora e meu “meio dia como terceirizado” teve fim. Cheguei em casa
e almocei. Meus filhos já haviam almoçado e estavam cuidando dos seus interesses.
Minha conta-corrente tinha saldo mais que suficiente para as minhas necessidades e da
minha família. Ou seja, bastou que eu me sentisse cansado para que deixasse aquela
realidade. Mas, e os terceirizados? Eles, simplesmente, não tinham condições de fazer o
que eu fiz, vez que estavam condenados a continuar vivendo aquela que é, afinal, a sua
vida, sem possibilidade concreta de fuga. No dia em que escrevo este texto, madrugada
do dia 18 (segunda-feira), ou seja, uma semana depois, a situação daquelas pessoas só
piorou e imagino como estejam se sentindo... Consigo visualizar a situação porque sei
seus nomes, conheço seus rostos e um pouco de suas vidas, o que, ademais, tem me
impedido de fingir que nada esteja se passando de muito grave com aquelas pessoas.
Mas, minha angústia aumenta ainda mais quando tenho que
admitir que é, afinal, a forma como o Direito tem sido aplicado o que dá alimento
para essa situação. Como defensor do Direito do Trabalho e das instituições jurídicas
estatais, vendo essa realidade justificada pelo Direito, o que sinto é uma profunda
tristeza e a minha única vontade é a de terminar esse texto abominando as estruturas
estatais e me declarando “inimicus curiae” da ordem jurídica e de todos que a utilizam
para o fim de justificar a situação pela qual passam os terceirizados. Mas, como se
diz, sou brasileiro, e brasileiro não desiste nunca! Fora, ademais, mais essa lição que
apreendi do contato que tenho tido com aquelas pessoas desde então...
Além disso, os meus amigos terceirizados merecem que me
esforce para lhes dar uma resposta que possa constituir, de alguma forma, um alento
para a situação a que foram submetidos.
Aos terceirizados, aos quais esse texto é dedicado, cumpre,
então, dizer:
a) mantenham-se mobilizados, exercendo a sua capacidade de
organização, advinda da indignação e do sentido de cidadania, que se alimenta pela luta
por direitos;
b) nesta mobilização, atuem de forma pacífica, não cometendo
nenhum ato de agressão do patrimônio alheio, isto para que não sofram ainda mais, na
medida em que no primeiro deslize a espada da lei, que não pesou sobre quem não lhes
pagou salários, será, por certo, debruçada sobre seus esqueletos;
c) não tenham esperança de que seus salários serão pagos em
curto espaço de tempo e tampouco suas verbas rescisórias. Tudo se arranja para que
vocês sejam forçados a ingressar com ações na Justiça do Trabalho, onde, depois de
meses, lhes será proposto um acordo para recebimento de parte de seus direitos, em
suaves parcelas, com quitação de todos os eventuais direitos que lhes possam ter sido
suprimidos durante o curso da relação de emprego, isto se, seu empregador, a empresa
prestadora de serviços, não pedir falência e nada lhe pagar, concretamente;
d) a Universidade de São Paulo em nenhum momento vai descer
de seu pedestal para dialogar com vocês, reconhecer seus direitos e muito menos lhes
pagar, diretamente, o que vocês tem direito;
e) diante do pressuposto jurídico, estabelecido pelo Supremo
Tribunal Federal, e em conformidade com a estratégia jurídica já assumida pela
Universidade, a possibilidade de se chegar à declaração da responsabilidade da USP
pelo adimplemento de seus direitos, mesmo daqui há vários anos, é bastante restrita,
o que lhes impõe sério risco de não receberem, agora ou depois, nenhuma verba de
natureza estritamente trabalhista.
O que fazer, então? Primeiro, tentar por todos os meios, lícitos,
sobreviver: arrumar novo emprego; manter os “bicos” em que geralmente se envolvem
e organizar um fundo de greve, buscando atrair a solidariedade social para sua causa,
o que, ademais, já se demonstra uma realidade, como demonstra o abaixo-assinado
organizado por alunos da Faculdade de Direito da USP, com cerca de 500 assinaturas
e um manifesto, subscrito por professores e servidores, em elaboração. E, segundo,
persistir na luta pelos direitos, pela via judicial, mantendo-se a crença na estrutura
judiciária trabalhista, só que com formulação jurídica em bases diversas daquela que
tradicionalmente se apresentam para situação como tais.
Ora, os fatos acima, uma vez concretizados, embora ruins
por um lado, porque põem em risco a sua sobrevivência, por outro lado, pela própria
atrocidade que os caracteriza, dão ensejo a direitos que vão muito além do mero
recebimento dos valores inadimplidos. Quem trabalha, cumprindo as obrigações fixadas
na relação jurídica trabalhista, tem direito ao recebimento do salário. Quem não recebe
o salário sofre um dano que não se supre pelo mero pagamento, em momento posterior,
do salário. Em outras palavras, o não pagamento do salário constitui, por si, um fato
jurídico que enseja efeito próprio, já que fere o direito fundamental à vida.
Concretamente, todo o sofrimento que vocês estão passando e
que está registrado publicamente, proveniente das humilhações sofridas, identificadas,
sobretudo, na constatação da forma fugidia que as entidades que ensejaram a situação
tem adotado, tentando fugir da responsabilidade perante o grave problema da ausência
de pagamento de salários e a perda do emprego sem o pagamento de verbas rescisórias,
deve ter reparação específica, que se supõe seja, necessariamente, condizente com a dor
experimentada, ou seja, milionária.
Esta indenização por dano moral, cujo montante cabe a cada um
avaliar, não desafia o entendimento estampado na decisão do Supremo Tribunal Federal
na referida ADC n. 16, vez que não se trata de recebimento de verbas de natureza
trabalhista e sim de reparação por danos morais, sendo certo que os entes públicos são
objetivamente responsáveis pelos atos praticados por seus prepostos perante terceiros.
Para se ter uma idéia, recentemente o Estado do Maranhão foi
condenado a pagar R$33 mil de indenização por danos morais a três pessoas de uma
mesma família – pai e dois filhos – por agressão verbal e física que lhes fora desferida
por policiais militares na saída de um clube na Vila Maranhão, fato que ocorreu em
maio de 2004. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça manteve a condenação de
primeira instância.
Já, a 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de
São Paulo manteve condenação contra o Estado, que deverá pagar indenização por
danos morais e materiais à esposa e ao filho (R$60 mil para cada, além de um salário
mínimo por mês – a viúva receberá a pensão até a data em que o esposo completaria 65
anos e o filho, até atingir 24 anos, quando possivelmente já terá concluído os estudos
superiores e estará apto a trabalhar.) de um detento assassinado na penitenciária. O
homem cumpria pena no Complexo Penitenciário I de Hortolândia e foi morto por outro
preso da mesma cela.
De acordo com o voto do relator, desembargador Oswaldo Luiz
Palu, “a partir do momento em que o indivíduo é detido, este é posto sob a guarda
e responsabilidade das autoridades policiais e (ou) penitenciárias, que se obrigam
pelas medidas tendentes à preservação da integridade corporal daquele, protegendo-
o de eventuais violências que possam ser contra ele praticadas, seja da parte de
seus próprios agentes, seja por parte de outros detentos, seja por parte de terceiros”
(Apelação nº 0201335-95.2008.8.26.0000).
A 20ª Câmara Cível do TJRJ, por sua vez, condenou o Estado
do Rio de Janeiro a pagar R$30 mil de indenização, por danos morais, a uma pessoa
que foi atingida por uma bala perdida em março de 2007, no bairro de Bonsucesso,
nas imediações da Linha Amarela. Segundo o relator do processo, Desembargador
Março Antonio Ibrahim, "Nos dias de hoje parece despropositado o entendimento
de que, numa cidade como o Rio de Janeiro, o Estado não deva ser responsabilizado
pelos diários episódios de balas perdidas que têm levado à morte e à incapacidade
física milhares de cidadãos inocentes. Não se pode olvidar que, sendo a segurança um
dever imposto constitucionalmente ao Estado, não há qualquer poder discricionário do
administrador quanto a isso. Há uma guerra não declarada, mas as autoridades públicas,
aparentemente, ainda não perceberam a extensão e a gravidade da situação".
E acrescentou: "A verdade é que as decisões que deixam o
Estado impune diante do grande descalabro que grassa na segurança pública de nosso
Estado servem de efetivo estímulo para que a Administração permaneça se omitindo
genericamente. Se o Estado não tem culpa, de quem será a culpa? Dizer que o Estado
não é responsável equivale, na prática, a atribuir culpa à vítima. O dano sofrido é a
sanção. Quando se multiplicarem as indenizações e os governos ficarem sem caixa para
realizar obras e projetos que rendem votos, a situação se transformará drasticamente".
Como se vê, é improvável que a USP não seja responsabilizada,
diretamente, pelo sofrimento experimentado pelos cidadãos brasileiros que ostentam
a qualidade de empregados de empresas prestadoras de serviços, contratadas pela
Universidade em processo licitatório estabelecido a partir da regra do menor preço,
que impõe a precarização da vida dessas pessoas, conduzindo-as à condição de semi-
escravidão e à “punição” de não verem respeitados os seus mais rudimentares direitos
trabalhistas, que possuem, como se sabe, “status” de direitos fundamentais, além
de caráter alimentar. Os terceirizados também são cidadãos brasileiros e se forem
vitimados por uma prática irresponsável cometida por um preposto do Estado, com
relação à qual a própria participação do Estado, ainda que indireta, não pode ser negada,
é impossível negar-lhes a devida reparação pelo dano experimentado junto ao Estado.
Já passou da hora, ademais, de se reconhecer que as estratégias
de supressão de direitos fundamentais constituem, por si, uma agressão jurídica que
induz efeitos jurídicos próprios, que sejam, efetivamente, coercitivos, punitivos e
desestimuladores.
Caros amigos terceirizados, documentem todo o sofrimento
que estão passando e depois busquem a devida indenização reparatória e, claro, não
abram mão de cobrar, também, o recebimento de seus direitos trabalhistas, buscando a
responsabilização de todos que tenham se valido direta ou indiretamente do trabalho que
vocês executaram.
À comunidade jurídica, o que resta dizer
é: há de se reconhecer o quanto o fenômeno da terceirização desmonta a condição
humana, sendo mais que urgente eliminá-la de nossa realidade, tanto na área pública
quando no setor privado, mediante a proliferação de declarações da existência de
vínculos jurídicos diretos com os tomadores de serviço, acompanhadas da
responsabilização solidária dos entes envolvidos, com base nos artigos 932, 933 e 942 e
seu parágrafo único do Código Civil, dentre outros, valendo lembrar que não há um só
dispositivo jurídico a legitimar a terceirização a não ser os próprios entendimentos
jurisprudenciais. Quanto ao vínculo direto com a Administração pública, importante
lembrar que a ausência da realização de concurso público não pode ser invocada
exatamente por aquele que descumpriu a Constituição, não sendo, portanto, obstáculo à
configuração da relação de emprego, a qual, cumpre lembrar, tem sede constitucional
no nível dos direitos fundamentais. A ausência do concurso pode ser invocada,
unicamente, para vetar a aquisição do direito à estabilidade no emprego público, que
está vinculada a este requisito. A esses efeitos deve se seguir a indenização por dano
moral acima sugerida, que advém, na esfera pública, do próprio procedimento de se
buscar o serviço de uma pessoa em desrespeito à sua condição de cidadão. O fato é que
a terceirização nos põe diante de um dilema que nos obriga a escolher entre preservar a
eficácia da ordem jurídica protetiva da dignidade humana ou aceitar a concreta
ineficácia do direito e com isso satisfazer os interesses econômicos que estão envoltos
em tal prática. O conhecimento da triste realidade a que são submetidos os
terceirizados, sobretudo quando se está próximo ao final de cada contrato de prestação
de serviços firmado entre as entidades tomadoras e prestadoras, não nos pode deixar
dúvida quanto a que posição tomar, não sendo desculpa alguma o argumento da
existência de um obstáculo criado pelo direito, o qual, de fato, não nos impõe uma
resposta contrária à preservação da condição humana dos terceirizados, muito pelo
contrário!
Assim, não há mesmo espaço para desânimo ou acomodação,
como se estivéssemos marcados, como gados, pela inexorabilidade da injustiça social.
Neste assunto, mais do que nunca, impõe-se uma luta vigilante e comprometida,
mantendo-se, sempre, a esperança de que a vitória não será daqueles que não se
importam com a vida alheia e com o respeito à ordem jurídica constitucional, cujo pilar
é a preservação da dignidade humana.
A luta continua meus amigos... É como dito na belíssima canção
de Ivan Lins e Vitor Martins:
Desesperar jamais
Aprendemos muito nesses anos
Afinal de contas não tem cabimento
Entregar o jogo no primeiro tempo
Nada de correr da raia
Nada de morrer na praia
Nada! Nada! Nada de esquecer
No balanço de perdas e danos
Já tivemos muitos desenganos
Já tivemos muito que chorar
Mas agora, acho que chegou a hora
De fazer Valer o dito popular
Desesperar jamais
Cutucou por baixo, o de cima cai
Desesperar jamais
Cutucou com jeito, não levanta mais
São Paulo, 18 de abril de 2011.
Fonte: Sindiquinze/SP
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