Para punir índio, ele deve saber que cometeu ato ilícito
Imputabilidade é definida como a aptidão de o ser humano compreender que determinado fato não é lícito e de agir em conformidade com esse entendimento. É imputável a pessoa capaz de entender o caráter ilícito de um fato e determinar-se de acordo com tal entendimento[1]. Segundo Damásio Evangelista de Jesus[2], imputável “é o sujeito mentalmente são e desenvolvido, capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Dita o artigo 26 do Código Penal brasileiro ser isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
O parágrafo único do artigo 26 do Código Penal prevê a possibilidade de redução da pena, de um a dois terços, se o agente não era capaz de entender o caráter ilícito do fato, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Na lição de Francisco de Assis Toledo[3]: “Para que o agente de um crime seja, pois, dotado de imputabilidade, além da idade de 18 anos, deverá à época do fato estar no gozo de certas faculdades intelectivas e de determinado grau de saúde mental. A lei penal exprime essas exigências, de modo negativo, ao estabelecer as hipóteses de inimputabilidade ou de redução da responsabilidade (arts. 26 e parágrafo único e 28, §§ 1º e 2º).
(...)
As primeiras hipóteses de inimputabilidade estão previstas no artigo 26: tendo o legislador usado termos bastante genéricos, como facilmente se percebe, a exata extensão e compreensão das expressões ‘doença mental’ e ‘desenvolvimento mental incompleto ou retardado’ fica deferida ao prudente arbítrio do juiz que, em cada caso, se valerá do indispensável auxílio de perícias especializadas.
O que importa ter em mente é a parte final do preceito, que traça os limites normativos extremos desse poder discricionário: doença ou qualquer anomalia que torne o agente, à época do fato, incapaz de ter a compreensão do injusto que realiza ou de orientar-se finalisticamente em função dessa compreensão.”
Questão que inquieta os operadores do direito é a relacionada com a imputabilidade penal dos índios. No sítio eletrônico da Funai[4], consta estimativa de existirem no Brasil entre 100 e 190 mil índios vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Não é rara na rotina forense, pois, a ocorrência de ações penais relacionadas com crimes praticados por índios em suas relações com a sociedade não índia envolvente, ou em suas próprias comunidades.
Antes do advento da Constituição de 1988 e do novo Código Civil (Lei 10.406/02), a doutrina e a jurisprudência interpretavam a imputabilidade penal dos índios à luz do artigo 26 do Código Penal, e do artigo 4º do Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), segundo o qual os índios são considerados isolados, em vias de integração, e integrados[5]. O entendimento predominante, em síntese, era no sentido da inimputabilidade dos índios isolados, da imputabilidade dos integrados e da necessidade de exame pericial para aferição da responsabilidade penal dos índios em vias de integração.
Esse tratamento era forjado, sobretudo, na regra constante do artigo 6º, inciso III, do Código Civil revogado (Lei 3.071/16), que elencava os índios entre os relativamente incapazes de praticar atos da vida civil, e pela ultrapassada visão integracionista que envolve o Estatuto do Índio, como se o ideal, o correto e inexorável fosse os índios deixarem de ser índios e, de forma paulatina, passassem a viver de acordo com a “doce, humana e pacífica” cultura dos não índios.
A Constituição de 1988 reconhece a pluralidade étnica e cultural do país. Assegura aos índios o direito à alteridade, é dizer, o direito de serem diferentes e tratados como tais, direito esse reforçado pela Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 19.04.2004[6]. O Código Civil em vigor[7] dispõe que a capacidade dos índios será regulada por lei especial. Assim, emerge ultrapassada e incorreta qualquer interpretação que trate os índios como inimputáveis ou semi-imputáveis em virtude da diferença étnica.
Como registrou Solange Rita Marczynsky[8], em debate promovido em abril de 1990 pela Comissão Pró-Índio de São Paulo em conjunto com a Procuradoria da República em São Paulo e a Faculdade de Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari assim se manifestou sobre o assunto:
“Os índios brasileiros estão em diferentes estágios em relação ao conhecimento dos hábitos da sociedade nacional. Como exemplo, há índios com cursos universitários e índios que sequer falam o português. Existem índios que estão no meio do caminho. São situações diferenciadas e que merecem ser consideradas distintamente...o índio é mentalmente normal, o que ele tem é cultura diferente, e por ve...
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