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16 de Maio de 2024

A Função Garantidora do Compliance Officer

Omissão Imprópria e Lavagem de Capitais

Publicado por Rafael Castro
há 17 dias

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo traçar panorama geral da figura do compliance officer, destacando seu papel no contexto corporativo, bem como a responsabilidade assumida no âmbito da ética e lisura empresarial. Nessa senda, valendo-se das construções doutrinárias pertinentes ao tema, até mesmo de origem internacional, dever-se-á, ao longo do artigo, relacionar o exercício da profissão à figura do agente garantidor, com enfoque especial nos crimes de capitais. Ao fim, serão tecidas conclusões críticas, em linhas gerais, acerca das eventuais responsabilidades criminais que lhe podem ser imputadas nos casos de omissão imprópria.

2. NOVA DEMANDA DE MERCADO

O capitalismo financeiro, iniciado na segunda metade do século XX, provocou graves modificações em múltiplas esferas da sociedade. A formação dos oligopólios, conglomerados de multinacionais, contribuiu para a efetiva quebra das fronteiras territoriais, fenômeno motivado, principalmente, pela ampliação das novas atividades econômicas, voltadas aos mercados digitais. Alteram-se, além disso, as estruturas corporativas, que passam a demandar segmentos profissionais cada vez mais autônomos e especializados; nesse contexto, o conhecimento técnico-formal se torna mercadoria de alto valor para o universo do grande capital.

De forma concomitante, surge, no Brasil, em 2013, a Lei anticorrupcao (Lei nº 12.846), posteriormente regulamentada pelo Decreto 8.420/15, impondo maior observância aos rigores ético-legais sob os quais as empresas devem ser regidas. Para tanto, o diploma impõe responsabilização objetiva (indiferente a dolo ou culpa), com indenizações de até 20%, sobre faturamento total, às corporações que, por ventura, provoquem lesões à administração pública ou a terceiros.

Diante dessa nova conjuntura, as grandes empresas, sobretudo aquelas cujos negócios envolvem redes de maior complexidade, passaram a adotar, na sua política interna, a figura do compliance officer, isto é, um gestor de programas voltados para o aperfeiçoamento ético-legal, prevenção de riscos e execução de auditorias internas. Cuida-se, portanto, de uma profissão com atribuições intimamente ligadas ao segmento jurídico-empresarial, com o cristalino compromisso de proteger a empresa pela qual foi contratado, bem como os parceiros que com ela se relacionem.

3. INSTITUTO DA OMISSÃO E A FIGURA DO GARANTIDOR

Para assimilar a relação constatável entre as atividades exercidas por esse profissional do novo mercado jurídico e a categoria penal de agente garantidor, desponta inadiável proceder breve tecitura analítica a respeito do instituto da omissão. É o que se dará a adiante:

Consoante a segunda oração do artigo 13 do Código Penal, “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”, sendo passível de punição, portanto, não apenas a conduta que propriamente deu causa à lesão, mas também o não-agir, a omissão, que poderia ter evitado o resultado. “O que o legislador pune nesses crimes é a não-realização da ação mandada” (CONDES, 1988:29).

Introduzido o conceito principal, insta, doravante, registrar as duas formas através das quais o instituto da omissão pode-se apresentar. Na sua classificação pura, ou própria, o crime é simplesmente configurado por ação humana negativa, tal como ocorre na omissão de socorro ( CP, art. 135). Já na tipologia imprópria (crime comissivo-omissivo ou comissivo por omissão), verificar-se-á a figura do agente garantidor, aquele que, necessariamente, tem poder e dever de agir, para evitar lesão ao bem-jurídico.

Nessa segunda categoria aludida, prevista no art. 13, § 2º do Diploma Substantivo, o agente garantidor que se abster de executar ação, por meio da qual evitaria os resultados, quando poderia fazê-la, deverá responder como se de maneira comissiva tivesse agido. É a situação de um bombeiro, em serviço, que, ao se deparar com um prédio em chamas, não toma as devidas providências de salvamento; nesse caso, o sujeito responderá pelo crime de incêndio (art. 250, CP).

4. COMPLIANCE OFFICER NA FUNÇÃO DE GARANTE

Finalizadas as considerações propedêuticas, urge adentrar efetivamente na indagação que vem sendo desenvolvida pela doutrina penal, em torno da figura do compliance officer. Trata-se de lacuna normativa, ensejada pelo fato de que esse profissional, responsável pelo departamento jurídico das empresas, incumbido, portanto, de executar projetos que previnam fraudes e lesões a terceiros, poderia estar ocupando o papel, criminalmente previsto, de agente garantidor.

Para melhor compreender o tema, torna-se indispensável trazer à luz o pensamento de Bernad Schünemann (2013), segundo o qual haveria um pré-requisito comum entre as omissões impróprias e os atos comissivos, qual seja, o domínio sobre os fundamentos do resultado. Em resumidas palavras, o autor destaca que não seria possível punir aquele que não possui pleno controle dos acontecimentos que ferem o bem jurídico.

Condizente com essa linha de raciocínio, o Código Penal, no seu artigo 13, § 2º, mantém expresso que, para que se caracterize o garantidor, o sujeito não somente “deve”, mas “pode” agir para evitar o resultado. Portanto, para aferir se o compliance officer de uma determinada empresa deverá ser “comissivamente” responsabilizado por qualquer ilícito que venha a ser cometido, sob sua gerência, é importante analisar quais são suas reais competências executivas naquele empreendimento.

É que, via de regra, deve responder pela empresa os indivíduos que se encontram em cargos de maior escalão (diretores, administradores...), ou seja, aqueles que detêm maior poder deliberativo. Por outro lado, a depender do contrato firmado, a adoção de uma estrutura de compliance pode significar uma verdadeira delegação de competências, uma vez que o responsável por esse setor de integridade, quando constatar alguma irregularidade legal, poderá ou não gozar do controle dos meios administrativos necessários para solucionar o problema.

Nesse diapasão, consoante o entendimento de Mateo Berjerno e Omar Palermo (2013), a partir do concebimento da estrutura de compliance, haveria uma divisão entre as funções de garante: a diretoria (garantidor primário/ mediato) teria a responsabilidade de fiscalizar o trabalho do agente contratado (garantidor secundário/ imediato), o qual, por sua vez, desde o momento que assumir função, possuirá plena responsabilidade de agente garantidor.

5. PROGRAMAS DE INTEGRIDADE E LAVAGEM DE CAPITAIS

Arrematando brevemente o que foi até aqui exposto, um programa de compliance se refere a um maior compromisso com os ditames legais de um dado ordenamento jurídico; em síntese, é um conjunto de fórmulas aplicadas, com expressa finalidade de evitar a prática de condutas ilícitas no quadro de colaboradores, seja na dimensão interna ou externa da empresa.

O criminal compliance foi adotado no Brasil, como consequência do estabelecimento de diretrizes internacionais, voltadas à prevenção de crimes do mercado financeiro, também referidos como “reciclagem de capitais”. Posto isso, a Lei nº 9.613, que trata da “lavagem de dinheiro”, surge, justamente, como fruto dessa nova demanda socio-legal contra a corrupção. Nesse enquadramento, o compliance officer apresentar-se-ia como gestor do setor corporativo, voltado ao exercício da fiscalização e execução dos regulamentos normativos instituídos na esfera interna das entidades privadas.

Segundo o artigo da Lei 9.613, define-se lavagem de capitais como “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Com relação a esse dispositivo, infere parte da doutrina que, na maioria das vezes, a conduta do referido crime é plurissubsistente, razão pela qual, para que se possa imputar responsabilidade ao agente de compliance, far-se-ia indispensável que ele estivesse em posição de obstar o ato de “ocultação” ou de “dissimulação” do capital indevidamente transacionado.

Nessa senda, para que o programa de compliance, ou de integridade, revele-se eficaz, é forçoso que o agente controlador detenha poderes suficientes para efetivar a quebra do nexo causal da conduta-crime (e.g. vetar medidas tomadas pela própria administração). Com isso, conclui-se não ser razoável imputar a responsabilidade de agente garantidor ao compliance officer, na forma desenhada pelos artigos 10 e 11 da Lei 9.613, cuja única prerrogativa, reconhecida ao cargo, seria notificar seus superiores, ou a autoridade competente, acerca das eventuais ilicitudes identificadas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o que foi, ao longo do artigo, sedimentado, afigura-se evidente que a discussão relacionada à imputabilidade penal por omissão imprópria do compliance officer, sob o aspecto legal e doutrinário, ainda se encontra em estágio embrionário, de sorte que soaria deveras pretencioso atribuir, a tese ora exposta, caráter absoluto.

Nada obstante, há o entendimento majoritário na doutrina, de acordo com o qual, para averiguar a natureza de garante do agente de compliance, é necessário avaliar suas reais competências executivas no empreendimento em que sirva. É que as meras atribuições comunicativas, consistentes na notificação dos segmentos hierarquicamente superiores, são insuficientes para imputar, ao sujeito, crime de omissão imprópria, em face de alguma ilegalidade cometida a sua revelia.

Se, por outro lado, o compliance officer celebrar contrato, por meio do qual lhe sejam garantidas possibilidades de aplicar medidas de correção administrativa, capazes de restabelecer a ordem legal na empresa, poderá vir a ser responsabilizado por eventuais danos, que ele, dolosamente, absteve-se a inibir. Nesse caso, concretizar-se-ia a alínea b do art. 13, § 2º CP, isto é, a responsabilidade de garante contratual (definição doutrinária).

Resta, por fim, a inequívoca conclusão de que os crimes omissivos impróprios, no caso do compliane officer, merecem interpretação restritiva, uma vez que a exacerbada ampliação desse instituto culminaria no total desvirtuamento do fim maior das leis Anticorrupção e de Lavagem de capitais, qual seja: a punição daquele que efetivamente praticou a conduta delituosa, provocando danos ao patrimônio público ou privado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 ARAÚJO, Fábio Roque. Direito Penal Didático: Parte Geral. 3ª edição, revista, atualz. e ampl. Salvador: Juspdivm, 2020

2 NETTO, Thaís. A Lei nº 12.846 de 2013 e Responsabilidade Penal dos Administradores e do Compliance Officer. Direito real, 21 de out, 2020. Disponível em: https://direitoreal.com.br/artigos/a-lein12-846-de-2013eresponsabilidade-penal-dos-administradoresedo-compliance-officer. Acesso em: 22 de mar, 2021

3 CARDOSO, Ricardo do Espírito Santo. Responsabilidade Penal Do Compliance Officer por Omissão Imprópria Nos Crimes De Lavagem De Dinheiro. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição, Disponível em: https://indexlaw.org/index.php/direitopenal/article/view/1428/PDF. Acesso em: 24 de mar, 2021.

4 BRITES, Júlia. O que é a Lei Anticorrupção? Instituto de Direito Real, 20 de jan, 2020. Disponível em: https://direitoreal.com.br/artigos/o-queea-lei-anticorrupcao. Acesso em: 22 de mar, 2021.

5 GOMES, Adriana. Saiba mais sobre a Lei Anticorrupcao. Aurum, 30 de ago, 2019. Disponível em: https://www.aurum.com.br/blog/lei-anticorrupcao/. Acesso em: 21 de mar, 2021.

6 RECHULSKI, David. Compliance officer: A missão. Migalhas, 31 de jan, 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/319440/compliance-officer-amissao. Acesso em: 21 de mar, 2021.

7 BRASIL, LEI nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores, Brasília, DF, mar 1998.

8 BRASIL, LEI nº 12.846, de 01 de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, Brasília, DF, ago 2013.

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