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26 de Maio de 2024

A proteção da vida privada e as violações na internet: lições de René Dotti e a orientação das Cortes Superiores

Rogéria Fagundes Dotti

Em obra publicada nos anos 80 e valendo-se de lições de Michel Crozin, René Ariel Dotti destacou que "a informação não é neutra, a informação é poder" (DOTTI, 1980, p. 251). Nada poderia ser mais atual do que a preocupação com o mau uso das informações, amplamente disponíveis na rede mundial de computadores. Prova disso são a edição do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014) e a recente Lei Geral de Proteçâo de Dados (Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, já alterada pela Lei nº 13.853, de 2019). Tal tema tem estado também no centro dos debates entre juristas, empresários e professores, constituindo o motivo de inúmeros embates judiciais. O presente texto tem por objetivo analisar o cenário atual desses conflitos gerados pelas manifestações na internet, valendo-se de relevantes lições doutrinárias. Ele procura ainda abordar as orientações que prevalecem nos tribunais superiores (STJ e STF) em relação à matéria. E, como não poderia deixar de ser, pretende fazer isso demostrando a maior gravidade desses ilícitos, justamente porque ocorrem com uma abrangência imensurável, uma velocidade extraordinária e mediante atos de difícil controle.

Palavras-chave: vida privada; internet; violações.

INTRODUÇÃO

O presente texto tem por objetivo analisar o cenário atual desses conflitos gerados pelas manifestações na internet, valendo-se de relevantes lições doutrinárias. Ele procura ainda abordar as orientações que prevalecem nos tribunais superiores (STJ e STF) em relação à matéria. E, como não poderia deixar de ser, pretende fazer isso demostrando a maior gravidade desses ilícitos, justamente porque ocorrem com uma abrangência imensurável, uma velocidade extraordinária e mediante atos de difícil controle.

1 PROTEÇÃO DA VIDA PRIVADA E LIBERDADE DE INFORMAÇÃO

A necessária ponderação entre a preservação da intimidade das pessoas e o direito à informação constitui uma das principais preocupações de juristas, legisladores e magistrados há muitos anos. E, inobstante o decurso do tempo, esse continua sendo um tema bastante atual e desafiador.

Em 1980, ou seja, há mais de quarenta anos, foi publicado pela Editora Revista dos Tribunais o livro Proteção da vida privada e liberdade de informação: possibilidades e limites. O trabalho, de autoria de René Ariel Dotti, havia sido o vencedor no Concurso Nacional de Letras Jurídicas no ano anterior. A comissão julgadora, formada pelos professores Miguel Reale, Seabra Fagundes, Oswaldo Trigueiro e Washington de Barros Monteiro, debruçou-se na análise de 82 monografias, enviadas de todas as partes do país.

O texto vencedor analisava os meios de comunicação, o direito à informação, o confronto entre os direitos e as exceções à proibição de invasão na vida privada, baseadas no interesse da investigação criminal, da saúde pública, da história, da crítica e da cultura, dentre outras. Trazia, assim, uma forma de equação para solucionar esse conflito de garantias constitucionais.

O mais interessante é que o texto já apresentava o que denominava de "novas formas de invasão da vida privada", dando como exemplo a "utilização abusiva da informática". Nesse aspecto, destacava que "o respeito à privacidade abrange não só o direito de impedir a compilação de certos dados de natureza íntima que não podem ser levados a registro, como a possibilidade de corrigir informações inexatas, inoportunas ou desatualizadas, prevenindo sua utilização abusiva" (Dotti, 1980, p. 256).

As lições constantes nessa obra merecem ser revisitadas para o enfrentamento dos conflitos que decorrem da proteção da vida privada versus ameaças da ampla propagação de notícias e imagens na internet.

2 A INTERNET E A EXTREMA URGÊNCIA

Passados quarenta anos desde a edição da obra, podemos constatar que vivemos tempos de urgência. A rapidez dos meios de comunicação e a velocidade das relações comerciais tornaram tudo muito mais urgente.

Chegou-se, inclusive, ao ponto de se priorizar a celeridade em detrimento da reflexão. Como bem lembra François Ost, verifica-se atualmente um ambiente cultural no qual se promete tudo, imediatamente (Ost, 1999, p. 279). Ainda que correspondente à parte da realidade, tal concepção é extremamente negativa pois reduz a atenção dadas às situações que, verdadeiramente, merecem um tratamento diferenciado, isto é, urgente.

Com efeito, "se tudo se torna urgente, nada mais o é" [1]. Essa é a expressão utilizada por Yves Strickler para demonstrar o fenômeno da generalização que banaliza a noção de urgência na França.

Tal exigência de celeridade fica ainda mais clara nas situações de divulgação de conteúdos falsos ou ofensivos via rede mundial de computadores (internet). Nesses casos, surge uma urgência ainda maior pois a cada minuto milhares de pessoas poderão ter acesso à informação inverídica ou ofensiva. Com efeito, a velocidade das chamadas fake news é, ao mesmo tempo, algo extraordinário e temível.

Essa é a razão pela qual o tempo no processo assume uma importância vital. A aceleração das formas de comunicação via web, fax, celulares e em conjunto com a globalização social, cultural e econômica, têm gerado uma cobrança ainda maior para a solução rápida dos processos judiciais e administrativos (Nery Junior, 2016, p. 361). Isso decorre, também, das garantias constitucionais do acesso adequado à jurisdição ( CF, art. 5º, XXXV) e da duração razoável do processo ( CF, art. 5º, LXXVIII).

Como bem defende Sergio Cruz Arenhart

vê-se, assim, a pesada responsabilidade que assume o Estado ao definir direitos. Quando o faz, deve assegurar, paralelamente, mecanismos de tutela que sejam adequados a satisfazer as carências daquele específico direito, sob pena de jogar ao ostracism a garantia e, o que é muito pior , pôr em perigo

sua legitimidade e sua própria sobrevivência (Arenhart, 2000, p. 31).

O Poder Judiciário e os magistrados são os destinatários das esperanças dos jurisdicionados. Abordando as garantias fundamentais, Egas Dirceu Moniz de Aragão faz referência a uma decisão da Corte Europeia dos Direitos do Homem, a qual condenou o Estado Espanhol a indenizar um cidadão pela demora processual. Tal orientação, abriu novos rumos para o exame da efetividade e de acesso adequado aos tribunais. E, referindo-se ao Poder Judiciário afirmou:

Se este, e os magistrados que o consubstanciam, são providos de prerrogativas, que asseguram sua independência, e são tradicionalmente os depositários das esperanças de legiões de moleiros Sans Souci, que diariamente lhes batem às portas, é essencial que deles se exija o julgamento em prazo razoável, sem o que o jurisdicionado ficará ao desamparo e a justiça terá faltado em sua mais importante missão (Moniz De Aragão, 1991, p. 97-105).

Justamente em virtude da urgência na remoção de conteúdos ilícitos da internet, a tutela provisória ganha imensa importância prática.

Na medida em que não é possível obter a cognição exauriente (em virtude da necessidade de uma decisão célere), o objetivo consiste em se alcançar um juízo a respeito do que é provável. Essa antinomia entre certeza e celeridade constitui um convite para soluções criativas e inovadoras, a partir das técnicas processuais (Dotti, 2020, p. 35).

Nesse universo, a tutela provisória, por se basear na probabilidade, consegue evitar os dois excessos no processo civil: o excesso do muito pouco (trop peu) e o excesso do muito cheio (trop plein) [2].

3 TUTELA DE URGÊNCIA E PAUTAS MÓVEIS DE PROBABILIDADE E PERICULUM IN MORA

Nos termos do art. 300 do CPC/2015, a concessão da tutela de urgência depende da existência concomitante da probabilidade do direito e do risco da demora. Ocorre que, há algum tempo, a doutrina brasileira já vem sustentando que a presença de um dos elementos pode ser mais forte que a do outro e, nem por isso, estaria afastado o cabimento da medida.

Nesse sentido, entende-se que a exigência dos requisitos não segue uma lógica do tudo ou nada, mas sim algo que varia em função dos graus de urgência e evidência. Não há como deixar de ver aqui uma certa mobilidade: a presença fraca de um requisito da tutela provisória pode ser compensada pela forte existência do outro e vice-versa (Costa, 2011, p. 24 e 178).

A propósito, dos requisitos para a concessão de liminares nos Estados Unidos, James, Hazard e Leubsdorf igualmente afirmam que a demonstração forte de um dos fatores pode compensar a presença fraca do outro ( James Jr; Hazard Jr; Leubsdorf, 2001, p. 339). A ideia que está na base desse raciocínio é que o fumus boni juris e o periculum in mora são vistos como pautas móveis, que agem em correlação e se apresentam em graus ou níveis distintos (Costa, 2011, p. 169). Em outras palavras, admite-se que nos casos concretos, ocorra a prevalência de um requisito sobre o outro, no que diz respeito ao convencimento judicial para a concessão da decisão sumária.

Essa concepção de pautas móveis é extremamente importante para a aplicação da tutela provisória em relação aos ilícitos cometidos na internet. Nesse âmbito de extrema urgência, como já exposto no tópico acima, a demonstração de um significativo periculum in mora pode dispensar a aferição de um direito altamente provável, bastando nesse caso um mínimo de probabilidade.

4 A PREOCUPAÇÃO EM PRESERVAR A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E OS SEUS LIMITES

A respeito do fenômeno da grande divulgação de informações e a consequente violação à vida privada, Mario Vargas Llosa afirma que a justiça deveria fixar os limites a partir dos quais uma informação deixa de ser de interesse público e viola o direito à privacidade dos cidadãos. Contudo, segundo ele, "muitas vezes os juízes, adotando um critério respeitável, resistem a proferir sentenças que pareçam restringir ou abolir a liberdade de expressão e informação, garantia da democracia" (Vargas Llosa, 2013, p. 122).

Nesse ponto, tem toda a razão. Respeitar a garantia constitucional da liberdade de expressão é algo de extrema relevância. Trata-se de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Sob a garantia da liberdade de expressão estão os direitos de informar, ser informado e divulgar fatos e opiniões.

Todavia, assim como ocorre com todos os direitos fundamentais, a liberdade de expressão não pode ser exercida de forma absoluta. Os outros direitos fundamentais impõem certos limites. Essa é precisamente a razão pela qual o Poder Judiciário tem a função de conter os abusos. Não apenas no que diz respeito às indenizações após a prática das violações, mas também com o intuito de prevenir ou remover os ilícitos. Isso abrange inclusive a possibilidade de proibir rapidamente a divulgação daquilo que seja falso ou destoante do interesse público. A celeridade constitui, portanto, um elemento valioso nessas demandas. Como dito em outro momento "a evolução do conflito pela demora só faz aumentar a sensação de insatisfação das partes, especialmente do autor que tem razão" (Dotti, 2020, p. 41- 42).

5 A (RELATIVA) NECESSIDADE DE INDICAÇÃO DAS URLS

É bastante conhecido e reiterado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que para a remoção de conteúdo da internet é necessária a indicação precisa das URLs [3] (Uniform Resource Locator) [4]. Essa é a orientação que prevalece na imensa maioria dos julgados. A exigência se justifica na medida em que não se pode exigir a exclusão de determinada postagem ou manifestação sem indicar precisamente o local em que ela se encontra.

Contudo, no julgamento do Recurso Especial 1.738.628/SE, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, embora fosse necessária a indicação precisa das URLs, tal exigência poderia ser dispensada nos casos em que já houvesse na petição inicial elementos suficientes para a exclusão do conteúdo difamatório. Concluiu-se então que, inobstante a ausência de tal informação, o descumprimento da decisão judicial pela empresa requerida caracterizou conduta omissiva autorizadora de sua responsabilização civil. Conforme o voto do Relator:

nas hipóteses em que for flagrante a ilegalidade da publicação, com potencial de causar sérios gravames de ordem pessoal, social e profissional à imagem do autor, a atuação dos sujeitos envolvidos no processo (juiz, autor e réu) deve ocorrer de maneira célere, efetiva e colaborativa, mediante a conjunção de esforços que busque atenuar, ao máximo e no menor decurso de tempo, os efeitos danosos do material apontado como infringente [5].

Tal decisão, longe de desrespeitar o precedente já formado pela Corte, extraiu dele a sua ratio, concluindo que o motivo da indicação das URLs consistia na facilitação da localização. Por via de consequência, se já existiam nos autos outros elementos que permitiam essa identificação, não havia razão para a recusa no cumprimento da decisão judicial.

6 O CABIMENTO DE MULTA DIÁRIA PELO NÃO FORNECIMENTO DE ENDEREÇO IP

Em decisão de grande relevância, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a incidência de multa cominatória (astreintes) para o cumprimento de decisão visando o fornecimento de dados para a identificação de usuário na internet.

Com efeito, ao julgar o Recurso Especial nº 1.359.976 [6], a Corte concluiu não ser aplicável ao caso dos autos a Súmula 372, a qual afastava o cabimento da multa para as ações de exibição de documentos. Justificou tal entendimento afirmando que as sanções processuais que incidem nas exibições de documentos (presunção de veracidade e busca e apreensão) são ineficazes para medida que busca apenas a informação dos dados do usuário na rede de computadores. Logo, a imposição da multa era necessária para assegurar o cumprimento da ordem judicial. Destacou ainda que se tratava da técnica da distinção em relação ao entendimento contido na súmula. No mesmo sentido, vale citar também a decisão proferida no REsp nº 1.560.976/RJ [7].

Atualmente, até mesmo a Súmula 372 encontra-se superada, diante do entendimento posterior, proferido em 26.05.2021, pela 2ª Seção do STJ, ao fixar o Tema 1.000/STJ:

Desde que prováveis a existência da relação jurídica entre as partes e de documento ou coisa que se pretende seja exibido, apurada em contraditório prévio, poderá o juiz, após tentativa de busca e apreensão ou outra medida coercitiva, determinar sua exibição sob pena de multa com base no art. 400, parágrafo único do CPC/2015 [8].

Assim, a Corte entendeu que no sistema do CPC/2015, mesmo em relação a qualquer exibição de documentos, admite-se a fixação de multa diária.

De qualquer forma, é importante demonstrar que, antes mesmo dessa mudança de orientação, a Corte já admitia a fixação das astreintes para o fornecimento de endereço de IP.

7 A ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA APLICADA À URGÊNCIA NA INTERNET

O legislador de 2015 inovou ao prever a possibilidade da estabilização da tutela antecipada antecedente ( CPC arts. 303 e 304). Rompeu, assim, o liame necessário entre cognição sumária e cognição exauriente. A partir da vigência do novo sistema processual, passou-se a admitir no Brasil que uma decisão baseada em tutela provisória sobreviva isoladamente, não precisando mais ser confirmada por uma decisão ao final do processo.

A estabilização da tutela sumária tem inspiração no référé-provision do direito francês, o qual permite que o processo seja extinto após a concessão da medida provisória. Como afirma Roger Perrot, o réu, ciente de que não tem argumentos, não dá continuidade ao processo: "E aí, lucram todos: o autor que teve o seu pleito atendido e a Justiça que evita um longo processo" [9].

O sistema processual italiano também considera que em muitas demandas, a solução jurisdicional baseada em tutela provisória possa ser suficiente. O jurista italiano Remo Caponi usa a expressão “coisa julgada cabível”, referindo-se à sua utilização apenas quando assim exigirem as partes (Caponi, 2011, p. 397).

Tal inovação tem grande aplicação no âmbito das tutelas de urgência envolvendo a internet. Isso vale tanto para a remoção de conteúdos falsos e ofensivos, quanto para a obtenção de dados e identificação dos usuários que cometem atos ilícitos pela rede mundial de computadores. A razão é simples: em muitas demandas, o provedor ou o autor das postagens não terá interesse na continuidade do litígio. A tutela sumária, nessas hipóteses, atingirá o objetivo do processo, dispensando a instrução e a concessão da tutela definitiva.

A título de exemplo pode-se mencionar decisao do Tribunal de Justiça de São Paulo, em medida judicial na qual se pretendia apenas o fornecimento dos dados cadastrais de usuário que praticara ofensas por meio da internet. A vítima, cuja honra fora atingida, procurava identificar seu ofensor, bem como obter os seus registros de conexão e acesso. Formulou então pedido de tutela antecipada antecedente, tendo obtido a concessão liminar. A parte requerida, Google Brasil Internet Ltda, não teve interesse em se opor ao pedido e, consequentemente, não interpôs o recurso de agravo de instrumento. Diante disso, a autora da ação não apresentou o aditamento à inicial (art. 303, § 1º, I do CPC), no pressuposto de que a decisão se estabilizaria. Apesar do juízo de primeiro grau ter entendido que a não apresentação do aditamento levaria à revogação da liminar e extinção do processo, tal entendimento foi afastado em segundo grau. A 7ª Câmara de Direito Privado do TJSP concluiu, por unanimidade de votos, que a melhor interpretação do art. 303, § 1º, I e § 2º era a de privilegiar a estabilização da tutela de urgência concedida [10].

Observe-se que na França isso é bastante normal e corriqueiro. Lá, a decisão judicial baseada em tutela sumária (référé) é totalmente autônoma e independente do pedido principal. Logo, o requerente não é obrigado a provocar a denominada jurisdição do fundo do direito (jurisdição principal). Isso porque não há qualquer interdependência entre a jurisdição de référé e a jurisdição do droit du fond. Tal concepção gera duas boas consequências práticas: primeira, a parte só provocará a atuação do Judiciário com cognição exauriente se estiver convicta de seu direito, não havendo interesse em protelação; segunda, a dispensa da continuidade do processo promove a economia dos custos financeiros, materiais e humanos.

De qualquer forma, a boa aplicação dessa inovação processual no Brasil depende de uma mudança de mentalidade. Não se pode mais pensar que julgar é apenas examinar a lide com base em cognição

exauriente. Como ensina o sociólogo Pierre Bourdieu, "uma instituição só funciona quando há correspondência entre estruturas objetivas e estruturas subjetivas" (Bourdieu, 2014, p. 228). Isso significa que a alteração da lei somente surtirá efeitos práticos se encontrar repercussão na atuação dos magistrados, no dia a dia das varas e tribunais.

8 A HOSPEDAGEM DE E-MAIL NO EXTERIOR E O COMBATE À IMPUNIDADE

Em julgamento paradigmático, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça concluiu que a hospedagem de e-mail no exterior não impede a atuação do Poder Judiciário brasileiro para coibir atos ilícitos, tais como a realização de ofensas ou ameaças pela internet ( REsp nº 1.745.657/SP).

O Recurso Especial fora interposto pela Microsoft Informática Ltda, com o intuito de afastar a multa de R$ 310.000,00, fixada em virtude do descumprimento de ordem judicial para o fornecimento dos dados de usuário de e-mail. No caso, haviam sido veiculadas ameaças contra uma pessoa física e uma pessoa jurídica, ambas com domicílios no Brasil. Argumentava a recorrente que a Justiça brasileira seria incompetente para análise da causa, eis que o endereço eletrônico era acessado de fora do país e o provedor de conexão também tinha sua sede no exterior. Pretendia, então, impedir a atuação das autoridades judiciárias brasileiras.

No julgamento, contudo, prevaleceu o voto da Ministra Nancy Andrighi, a qual concluiu que o Poder Judiciário nacional é competente para a medida judicial proposta pela vítima com domicílio no país, onde também ocorreu o acesso à informação. Segundo a Ministra Relatora, seria um equívoco imaginar que qualquer aplicação hospedada fora do Brasil não pudesse ser alcançada pela jurisdição e pelas leis nacionais. Em suas palavras:

É evidente que, se há ofensa ao direito brasileiro em aplicação hospedada no estrangeiro (por exemplo, uma ofensa veiculada contra residente no Brasil em rede social), pode ocorrer a determinação judicial de que tal conteúdo seja retirado da internet e que os dados do autor da ofensa sejam apresentados à vítima. Não fosse assim, bastaria a qualquer pessoa armazenar informações lesivas em países longínquos para não responder por seus atos danosos.

A decisão protege os direitos de personalidade dos cidadãos brasileiros, mesmo nos casos em que o ofensor maliciosamente se oculta em endereços estrangeiros. O Superior Tribunal de Justiça mostra assim estar conectado às necessidades da vida atual, permitindo que a tecnologia seja utilizada para favorecer a realização da justiça, jamais para inviabilizá-la.

9 RESPONSABILIZAÇÃO DO PROVEDOR DE CONTEÚDO E A NECESSIDADE DE PRÉVIA ORDEM JUDICIAL

No que diz respeito aos provedores de conteúdo (também denominados provedores de aplicação), a orientação dos tribunais superiores é no sentido de que eles somente serão responsabilizados pelos atos ilícitos praticados por terceiros se houver descumprimento da ordem judicial de remoção do conteúdo. Trata-se da aplicação do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014), o qual prevê a reserva da jurisdição.

Por outro lado, em relação às cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado, o entendimento que prevalece é o da responsabilização excepcional caso não ocorra a imediata remoção após simples notificação da vítima (sistema de notice and take down) [11]. Isso decorre da aplicação do art. 21 da mesma Lei nº 12.965/2014. Mas, segundo o Superior Tribunal de Justiça, para isso são imprescindíveis os seguintes elementos: a) o caráter não consensual da imagem íntima; b) a natureza privada das cenas de nudez ou dos atos sexuais disseminados; c) a violação à intimidade.

Na aplicação do art. 21 do Marco Civil da Internet, o Superior Tribunal de Justiça procura proteger as vítimas da violência digital, também conhecida como disseminação de imagens íntimas não consentidas (NCII – da sigla inglesa de non-consensual intimate images).

Importante destacar que a constitucionalidade dos referidos artigos 19 e 21 da Lei nº 12.965/2014 ainda não foi analisada. Ela está aguardando julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (repercussão geral), nos Temas 533 e 987.

CONCLUSÕES

A evolução dos meios de comunicação e a celeridade na divulgação de notícias e imagens fazem

com que a proteção da vida privada continue a ocupar o centro das preocupações dos operadores do direito. O uso indevido da internet, mediante a propagação de notícias falsas ou concernentes à intimidade das pessoas, deve ser combatido de modo célere e eficiente pelo Poder Judiciário. Isso decorre das próprias garantias constitucionais do acesso adequado à jurisdição ( CF, art. 5º, XXXV) e da duração razoável do processo ( CF, art. 5º, LXXVIII).

Ainda que não seja possível declarar o direito sem se utilizar de um período de tempo [12], é preciso ter em mente que a análise jurídica não exige necessariamente um tempo longo de duração, mas sim de um tempo que lhe seja próprio. [13]

A tutela provisória tem, assim, uma ampla aplicação no âmbito dos ilícitos praticados pela internet. E nesse aspecto é preciso considerar a importância da cognição sumária. Afinal "a decisão com base em probabilidade é tão importante quanto julgar com base em certeza. O sistema processual deve prezar, de igual forma, os valores da celeridade e da certeza. A tutela dos direitos deve considerar, portanto, ambos os valores" [14].

A extrema urgência, presente em quase todos os ilícitos praticados na internet, justifica uma atenção especial e diferenciada por parte do julgador. Nesses casos, é possível a concessão de medidas liminares baseadas em um periculum in mora extremamente forte, ainda que à primeira vista se mostre mínima a probabilidade do direito. Tais requisitos funcionam como pautas móveis, de forma que a presença forte de um deles compense a existência fraca do outro.

A fixação de astreintes, o cabimento da estabilização da tutela antecipada, a relativização da exigência de indicação das URLs em casos excepcionais e a responsabilização mesmo em hospedagens fora do Brasil são alguns dos exemplos de importantes decisões do Superior Tribunal de Justiça, no combate aos ilícitos praticados pela internet. Por sua vez, a análise da constitucionalidade dos arts. 19 e 21 da Lei nº 12.965/2014 mostram a importância e a urgência da atuação do Supremo Tribunal Federal nos Temas 533 e 987.

Todos esses casos revelam a atualidade das palavras de René Dotti, na obra editada em 1980:

A evolução dos mecanismos técnicos que tornaram possível o aproveitamento da informática criou no homem uma necessidade de reação contra algo de extraordinário que há bem pouco tempo não passaria de ficção, mas que hoje ameaça gravemente o desenvolvimento natural da personalidade (Dotti, 1980, p. 256).

Essa e tantas outras lições sobrevivem ao decurso do tempo. Elas permanecem em seus colegas de profissão, em seus alunos, nos alunos de seus alunos e assim sucessivamente. Nesta verdadeira corrente de vidas continuam a se propagar as ideias e os valores para a proteção da vida privada.

REFERÊNCIAS

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France. Tradução Rosa Freire d’Aguiar, 1. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

CAPONI, Remo. O princípio da proporcionalidade na justiça civil – primeiras notas sistemáticas. In: RePro, v. 192, 2011.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. O direito vivo das liminares. São Paulo: Saraiva, 2011.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. Tutela de evidência no projeto do novo CPC – uma análise dos seus pressupostos. In: ROSSI, Fernando [et al] (Coord.) O Futuro do processo civil no Brasil: uma análise crítica ao projeto do novo CPC. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação: possibilidades e limites. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980.

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MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu. Garantias fundamentais da nova Constituição. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 184, Abr. 1991.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 12.ed., rev, ampl. e atual. com as novas súmulas do STF (simples e vinculantes) e com o novo CPC (Lei 13.105/2015), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

OST, François. Le temps du droit. Paris: Editions Odile Jacob, 1999.

PERROT, Roger. O processo civil francês na véspera do século XXI. Conferência proferida em Florença em 27.9.97, na Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Tradução de J.C. Barbosa Moreira. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16623-16624-1-PB.html. Acesso em: 20 nov. 2022.

STRICKLER, Yves. L’évolution contemporaine du référé et des procédures d’injonction. In : Revista de Processo, v. 261, 2016.

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetá culo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Tradução Ivone Benedetti, 1. ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.


[1] São essas as palavras no texto original: “Mais, si tout devient urgent, plus rien ne l’est”. (Strickler, Yves. L’évolution contemporaine du référé et des procédures d’injonction, in Revista de Processo, v. 261, nov. 2016, p. 167 a 196).

[2] “Ce sont deux notions-cadre qui visent à sanctionner l’excès sous ces deux formes: l’excès du trop peu et l’excès du trop plein.”(Frison-Roche, Marie-Anne. Les droits fondamentaux des justiciables au regard du temps dans la procédure, in Le temps dans la procédure, Paris: Dalloz, 1996, p. 22).

[3] Nesse sentido, por todos, AgInt no AREsp nº 931.341/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 13.12.2021.

[4] Uniform Resource Locator é a expressão inglesa utilizada para indicar o endereço virtual de um arquivo ou conteúdo disponibilizado na internet. A indicação do URL constitui, portanto, uma especificação para permitir a localização do material que o usuário procura na rede mundial de computadores.

[5] STJ, REsp 1.738.628/SE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 19.02.2019, DJe 25.02.2019.

[6] STJ, REsp 1.359.976/PB, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, j. 25.11.2014.

[7] STJ, REsp 1.560.976/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 30.05.2019, DJe 01/07/2019.

[8] O Tema 1000/STJ foi fixado no julgamento dos REsps 1.763.462 e 1.777.553, 2ª Seção, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09.06.2021.

[9] Perrot, Roger. O processo civil francês na véspera do século XXI. Conferência proferida em Florença em 27 set. 1997, na Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile, tradução de J.C. Barbosa Moreira. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/16623-16624-1-PB.html. Acesso em: 20 nov. 2022.

[10] TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1063187-63.2017.8.26.0100.

[11] STJ, REsp 1.840.848/SP, Rel. Min Paulo de Tarso Sanseverino, j. 26.04.2022, DJe 05.05.2022.

[12] OST, François. Le temps du droit, Paris: Editions Odile Jacob, 1999, p. 13.

[13] “Encore cet exemple pourrait-il induire en erreur si l’on en déduisait que le juridique appelle nécessairement la longue durée, ce qui n’est pas nécessairement le cas. L’important est plutôt qu’un temps propre, chargé d’un sens instituant, soit mobilisé par la mise en oeuvre de la norme juridique” (OST, François. Le temps du droit, Paris: Editions Odile Jacob, 1999, p. 13).

[14] DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 336.

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