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30 de Abril de 2024

LGPD e telemedicina: para além do consentimento

Embora a consulta médica presencial permaneça sendo considerada padrão ouro, isto é, referência no atendimento ao paciente, é inegável que a telemedicina, especialmente a teleconsulta, após ser amplamente utilizada no auge da pandemia decorrente do COVID-19, tornou-se uma prática mais comum.

Tendo isso em vista, e considerando que, apesar da existência de diversos efeitos positivos, existem preceitos éticos e legais a serem observados no exercício da telemedicina, como já comentamos por aqui, recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução n. 2.314/2022 que define e regulamenta o tema.

Em grande parte do texto, a referida Resolução se preocupa com a fixação dos conceitos, deixando claro, por exemplo, que a telemedicina abrange a teleconsulta, a teleinterconsulta, o telediagnóstico, a telecirurgia, o telemonitoramento, a teletriagem e a teleconsultoria (artigo 5º), bem como as suas respectivas definições (artigo 6º e seguintes).

De outro lado, atenta, especialmente, às disposições da Lei n. 13.709/2018 ( Lei Geral de Proteçâo de Dados Pessoais ( LGPD), pontua algumas questões que devem ser consideradas pelo profissional e outras que até mesmo repetem aquilo que já está expresso na norma, como é o caso do direito do paciente de receber a cópia dos dados de seu registro (artigo 3º, § 6º), o qual já encontrava respaldo no artigo 18 da LGPD.

Dentre essas questões, um dos pontos que mais chama atenção é o artigo 15, o qual estabelece que o paciente deverá autorizar o atendimento por telemedicina e a transmissão dos seus dados por meio de consentimento livre e esclarecido, reforçando, ainda, a necessidade de deixar claro que os dados pessoais poderão ser compartilhados, bem como o direito de o paciente negar o compartilhamento, salvo em caso de emergência médica.

Isso porque, embora exista uma hipótese específica (também chamada de base legal) na LGPD, como será melhor detalhado adiante, o CFM preferiu utilizar a base legal do consentimento para dar respaldo ao tratamento de dados no âmbito da telemedicina.

Tendo isso em vista, e considerando que inexiste hierarquia entre as bases legais, ou seja, nenhuma é mais importante que a outra, trata-se, na verdade, de um exercício de análise do caso concreto para compreender qual hipótese se mostra mais adequada, é natural que surjam indagações sobre as razões que levaram a escolha do consentimento como base legal.

Antes de adentrar propriamente nesse tópico, vale registrar que o objetivo deste breve artigo não é apresentar respostas definitivas, mas sim pontuar algumas questões que merecem reflexões a fim de fomentar o debate sobre o tema.

Feito o alerta, seguimos para os principais pontos, sob a nossa perspectiva, a serem observados.

De fato, o próprio Código de Ética Médica, no seu artigo 22, salienta que é vedado ao médico deixar de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecer sobre o procedimento a ser realizado.

Nesse sentido, a Recomendação CFM n. 1/2016 complementa o artigo elencado acima ao definir que o consentimento livre e esclarecido consiste no ato de decisão do paciente ou do seu representante legal a respeito dos procedimentos diagnósticos ou terapêuticos que lhe são indicados, o que está em harmonia com o também previsto no artigo 15 do Código Civil, que prevê que “ninguém será constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Nota-se, portanto, que, antes mesmo de se pensar em LGPD, o tradicional Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) já era amplamente utilizado, sendo um dever do médico solicitá-lo ao paciente.

Contudo, é preciso observar que, como elencado anteriormente, a telemedicina abrange diversas modalidades, entre elas, talvez a mais “famosa”, a teleconsulta, que não seria, a princípio, abarcada pelo referido Termo de Consentimento, já que este se restringe aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos.

Diante disso, e considerando o ônus da gestão do consentimento, bem como a possibilidade de o titular revogá-lo, parece natural partir para a análise das demais hipóteses que autorizam o tratamento de dados pessoais previstas na LGPD, sendo que, no presente caso, uma delas se destaca: a tutela da saúde.

Segundo os artigos , inciso VIII e 11, inciso II, alínea f, da LGPD, o tratamento de dados pessoais e sensíveis (neste último caso, os dados relativos à saúde, vida sexual e os genéticos, por exemplo), serão tratados para “tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária”.

Com isso, de início, percebe-se que a base legal não poderá ser aplicada indistintamente para qualquer tipo de tratamento de dados no setor da saúde com o pretexto de que determinado agente atua indiretamente para o benefício da saúde do titular dos dados.

Nessa linha, nos parágrafos do artigo 11, que aborda os dados sensíveis, verifica-se uma preocupação com a comunicação e o uso compartilhado entre controladores que tenham como objetivo a vantagem econômica, uma vez que, além de prever duas hipóteses que justificam esse tipo de tratamento, também ressalta a possibilidade de posterior regulamentação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Diante disso, percebe-se que, de fato, existem limites estreitos para o uso dos dados relativos à saúde.

Ainda assim, é preciso reconhecer que uma leitura muito restritiva poderá dificultar ou mesmo inviabilizar a própria prestação do serviço, afinal, seja no formato presencial ou no da teleconsulta, o atendimento pelo profissional da saúde por si só, via de regra, já envolve o uso de softwares e outras ferramentas que podem implicar, de algum modo, no tratamento de dados por terceiros.

Para além disso, existem outras situações nas quais o profissional será obrigado, em virtude de Lei ou Regulamento, a transmitir determinados dados pessoais e sensíveis, o que, certamente, poderia se enquadrar na base legal do cumprimento de obrigação legal ou regulatória.

Nessa perspectiva, ao abordar os tópicos do prontuário médico e da consulta, o Código de Boas Práticas elaborado pela Confederação Nacional da Saúde (CNS), em parceria com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tratando-se de “utilização do prontuário médico para gerar diagnósticos com auxílio de softwares”, aplica-se a tutela da saúde.

Em contrapartida, no caso de “acesso e manuseio de informações do prontuário médico por profissionais não obrigados ao sigilo profissional”, o referido Código de Boas Práticas estabelece que deve ser realizado com o consentimento do usuário ou por obrigação legal ou regulatória, a depender do caso concreto.

Entretanto, a princípio, é de se pesar que o consentimento, em algumas hipóteses, não seria a base legal mais adequada para esse tipo de compartilhamento, já que pessoas não obrigadas ao sigilo profissional – um técnico de uma empresa de software, por exemplo – podem vir a ter acesso a dados de prontuários médicos, a mando do controlador e dentro dos limites estabelecidos por ele – numa típica relação entre controlador e operador.

E o que isso tudo quer dizer no final das contas?

Para além do certo ou errado, percebe-se que, no momento de definir uma base legal para o caso concreto, é preciso verificar cada operação que envolva dados pessoais e/ou sensíveis, seja uma coleta, um armazenamento ou mesmo o compartilhamento desses dados, tomando sempre o cuidado de não colocar tudo dentro da mesma “caixa” sem a devida análise.

É certo que, assim como diversos outros pontos da LGPD, este também demanda certo amadurecimento, bem como regulamentação e orientação dos órgãos competentes, mas, de todo modo, até lá, será necessário se respaldar em alguma base legal para prosseguir com o tratamento de dados, o que demanda não somente uma análise da Lei seca ou do cenário regulatório do setor, mas também de todo o contexto que envolve a proteção dos dados pessoais, inclusive, no que diz respeito ao viés prático.

Referências:

BRASIL. Lei n. 10.406/2002 ( Código Civil). Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em 11 de maio de 2022.

BRASIL. Lei n. 13.709/2018 ( Lei Geral de Proteçâo de Dados Pessoais). Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm> Acesso em 11 de maio de 2022.

CFM. Resolução n. 2.314, de 20 de abril de 2022. Disponível em: < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cfmn2.314-de-20-de-abril-de-2022-397602852> Acesso em 11 de maio de 2022.

CFM. Código de Ética Médica (Resolução n. 1.931/09). Disponível em: < https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/código%20de%20etica%20medica.pdf> Acesso em 11 de maio de 2022.

CFM. Recomendação n. 1/2016. Disponível em: < https://portal.cfm.org.br/images/Recomendacoes/1_2016.pdf> Acesso em 11 de maio de 2022.

SETOR SAÚDE. LGPD: CNSaúde apresenta Código de Boas Práticas direcionado a hospitais e laboratórios. Disponível em: < https://setorsaude.com.br/lgpd-cnsaude-apresenta-código-de-boas-praticas-direcionadoahospitaiselaboratorios/> Acesso em 11 de maio de 2022.

MARINA MIRANDA SOCIEDADE DE ADVOGADOS. Conselho Federal de Medicina pública nova Resolução sobre Telemedicina. Disponível em: < https://marinamiranda.adv.br/post/conselho-federal-de-medicina-pública-nova-resolucao-sobre-telemedicina/> Acesso em 11 de maio de 2022.

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1 Comentário

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Concordo com quase tudo descrito, exceto , que o prontuário não é médico e sim prontuário do paciente. A telessaude foi uma modalidade mutio discutida no âmbito da pandemia e muito antes da mesma, no caso de comunidade muito distantes das grandes cidades, como as comunidades ribeirinhas no interior do país.
Concordo com foi explanado, pois além da LGPD, não necessidade do i=uso dessa ferramenta a não ser no caso de urgência ou emergência.
João Magalhães continuar lendo