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24 de Maio de 2024

O fenômeno da terceirização

Publicado por Victoria Primo
há 8 anos

A terceirização não é um fenômeno pertencente exclusivamente ao Direito do Trabalho, tão pouco apenas um instrumento do Direito. Ela representa outras áreas do conhecimento, como a Administração e a Economia. Conceitualmente, a terceirização é definida de diversas formas. Para o Procurador do Trabalho Rodrigo Lacerda, “trata-se do processo de repasse para a realização de complexo de atividades por empresa especializada, sendo que estas atividades poderiam ser desenvolvidas pela própria empresa”.

Simplificadamente, a terceirização é uma transferência de atividades para fornecedores especializados, detentores da tecnologia própria e moderna, que tenham essa atividade terceirizada como sua atividade-fim, liberando a tomadora para concentrar seus esforços gerenciais em seu negócio principal, preservando e evoluindo em produtividade e qualidade, reduzindo custos e gerando competitividade.

Dentre as vantagens advindas da utilização da terceirização, costuma-se dizer que seriam a redução de custos, melhoria na qualidade dos produtos, melhoria da competitividade, aumento de produtividade e aumento dos lucros. O objetivo originariamente concebido é repassar serviços ou atividades especializadas para empresas que detenham melhores condições técnicas de realizá-las.

Como bem salienta Jorge Souto Maior, “é evidente que a lógica da terceirização nada tem a ver com as exigências do serviço público, a não ser que queira ver no Estado um produtor de riquezas a partir da exploração do trabalho alheio, sendo estes, os ‘alheios’, exatamente os membros da sociedade a que ele se destina a organizar e proteger”.

Um dos efeitos preocupantes da terceirização é a descoletivização do trabalho que se dá por meio da fragmentação da classe trabalhadora. Isso porque a terceirização intermediadora de trabalhadores coloca lado a lado, no mesmo local de trabalho, trabalhadores representados por diversas entidades sindicais, das mais fortes às fracas, de posições ideológicas diferentes e, na maioria dos casos, com atuação individual e descoordenada.

A existência simultânea de diversos sindicatos, embora aceita pela maioria dos doutrinadores e pela jurisprudência dominante, não encontra respaldo jurídico.

As reivindicações dos trabalhadores, que se instrumentalizam pela ação sindical, são tentativas de extrair do capital uma maior contraprestação de natureza sócio-econômica. O real conflito é o conflito do trabalho em face do capital. O vínculo jurídico forma-se entre trabalhador e empresa, para deixar claro que é em face da fonte geradora de riqueza que o trabalho encontra seu sentido jurídico, social e econômico.

É importante destacar que a representação e os direitos coletivos decorrentes se institucionalizam no local de trabalho porque é nele que se encontra uma das mais evidentes razões da existência sindical, a proteção do trabalho humano em face dos riscos do trabalho.

O artigo 511 da CLT traz nos §§ 1º e 2º a "solidariedade de interesses econômicos" e a "similitude de condições de vida", questões ligadas ao meio ambiente de trabalho, pois, a luta básica do sindicalismo é contra os acidentes de trabalho.

A terceirização, portanto, não tem o poder de quebrar a base fundamental da existência da noção jurídica e social da categoria.

Na perspectiva dos trabalhadores terceirizados, talvez o maior prejuízo seja o estado de exclusão em que permanecem dentro do ambiente de trabalho, segregados de um grupo de trabalhadores com ‘status’ de efetivos, que usufruem de melhores condições.

Os terceirizados são deslocados do convívio dos demais empregados, denominados ‘efetivos’; usam roupas diferentes; elevadores específicos; almoçam em refeitório separado ou em horários diversos (isso quando se permite que almocem no local de trabalho); não são alvo de qualquer tipo de subordinação, para, como se diz, “não gerar vínculo”; ou seja, são tratados como coisa ou simplesmente não são vistos. Estão por ali, mas como se não estivessem.

Não obstante, o terceirizado sabe que a qualquer momento pode ser trocado por outro, já que está sendo somente “alugado” pelo real empregador. Como se verifica na prática, pela maioria dos contratos analisados, o tomador de serviços pode, a qualquer tempo, sem qualquer ônus, requerer a substituição do trabalhador. Ele sabe que hoje poderá estar em uma empresa e amanhã em outra, ou até mesmo em nenhuma. Não há tempo, portanto, para se socializar no trabalho, se adaptar a uma rotina ou desenvolver qualquer sentimento de pertencimento.

Não basta reconhecer os malefícios da terceirização, procurando algum jeito de torná-la mais humana, como, por exemplo, reconhecendo a responsabilidade solidária do tomador de serviços. O problema, como visto, é muito maior e mais complexo, não se resumindo à responsabilidade pelo pagamento dos direitos violados durante o contrato de trabalho.

A normatividade constitucional e infraconstitucional a respeito da terceirização

Estabelecem o artigo 37 e seus incisos I e II da CF: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”

Têm-se, assim, expressamente, fixados na Constituição os requisitos para a execução de serviços públicos: impessoalidade; publicidade; moralidade; acesso amplo; concurso público.

Resulta desses dispositivos que a execução de tarefas pertinentes ao ente público deve ser precedida, necessariamente, de concurso público. Nestes termos, a contratação de pessoas, para prestarem serviços à Administração, por meio de licitação fere o princípio do acesso público.

Nem se argumente de que há, também, na Constituição, no inciso XXI, do mesmo artigo, disposição no sentido de que o ente público poderá contratar serviços mediante processo de licitação: “XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

É tão evidente que a expressão serviços contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário. Como salienta Souto Maior, “se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta se teria como efeito a ineficácia plena dos incisos I e II, pois que ficaria na conveniência do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para tanto, a qual se incumbiria de escolher, livremente, a partir dos postulados jurídicos de direito privado, as pessoas que executariam tais serviços.”[11]

O inciso XXI, por óbvio, não pode ter tal significação. Analisando-o em conjunto com as outras disposições constitucionais, o termo “serviços” só pode ser entendido como algo que ocorra fora da dinâmica permanente da administração e que se requeira para atender exigência da própria administração, como por exemplo, a implementação de um sistema de computador, ou a preparação dos servidores para trabalhar com um novo equipamento. Para esses serviços, o ente público poderá contratar uma empresa especializada, valendo-se, necessariamente, de processo de licitação.

Caso contrário, se o ente público pudesse, com base no inciso XXI, contratar servidores por meio de empresa interposta para executar uma atividade que lhe seja própria e permanente, qual seria o limite para isto, se todos que trabalham no ente público realizam serviço?

Os defensores dessa intermediação alegam que a “execução de tarefas executivas”, como, por exemplo, os serviços de limpeza, podem ser executados por empresa interposta, baseando-se no que prevê um decreto de 1967, número 200 e em uma Lei de 1970, número 5.645.

Evidentemente, um decreto e uma lei ordinária não podem passar por cima da Constituição, ainda mais tendo sido editados há quase 40 anos atrás. Além disso, a Constituição não faz qualquer distinção quanto aos serviços para fins da necessidade de concurso público. E, por fim, como ressalta Souto Maior, “como justificar que os serviços de limpeza possam ser exercidos por uma empresa interposta e não o possam outros tipos de serviço realizados cotidianamente na dinâmica da administração, como os serviços burocráticos de secretaria e mesmo todos os demais?”.

Se os “serviços” a que se refere o inciso XXI incluíssem os serviços que se realizam no âmbito da administração de forma permanente não haveria como fazer uma distinção entre os diversos serviços que se executam, naturalmente, na dinâmica da administração, senão partindo do critério não declarado da discriminação. Mas, isto, evidentemente, fere frontalmente os princípios constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.

Importante notar que essa noção de transitoriedade advém da própria Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de licitação, que considera, para fins da referida lei, “Serviço - toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.), pressupondo o seu caráter temporário, conforme previsão do art. 8o.: “A execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade, previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua execução.”

Nem se alegue que o inciso II, do artigo 57 da mesma lei, ao dispor do limite da duração dos contratos firmados com a administração por meio de processo licitatório faz menção, excepcionando a regra, “à prestação de serviços a serem executados de forma contínua” à administração. Isso porque referido dispositivo foi inserido em 1998, alterando inovação do texto legal realizada, em 1994, provavelmente no sentido de legitimar algumas práticas de terceirização já existentes no setor público. Contudo, não há como legitimar uma situação fática que contrarie a Constituição. Esta, como visto, determina que os serviços atinentes à dinâmica da administração sejam realizados por servidores concursados, não podendo uma lei ordinária, por óbvio, dizer o contrário.

Para “salvar” esse inciso sem ter que declará-lo inconstitucional basta interpretá-lo em conformidade com a Constituição, no sentido de que o serviço contínuo nele mencionado seja entendido como um serviço que se preste à administração para atender uma necessidade cuja satisfação exija alta qualificação de caráter técnico, requerendo, portanto, por meio de processo licitatório, a contratação de uma empresa especializada e que, embora permanente sua execução, se inclua na lógica do contexto de sua dinâmica organizacional apenas esporadicamente, como, por exemplo: a manutenção de elevadores; o transporte de valores em vultuosa quantia... Para além disso, ter-se-á uma flagrante inconstitucionalidade.

Poder-se-ia, ainda, argumentar que o artigo 175, da Constituição Federal, fornece ao administrador a possibilidade de escolha no que se refere aos serviços públicos. Nele está disposto que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Não há como, contudo, confundir os “serviços” mencionados no inciso XXI, com serviço público.

Os “serviços públicos” mencionados no artigo 175 têm natureza diversa dos “serviços” a que se referem o inciso XXI, do art. 37. Os serviços públicos são prestados aos administrados e não à própria administração. A execução desses serviços públicos pressupõe, por óbvio, a criação de uma estrutura que seja própria a consecução de seus fins e que requer, portanto, o exercício de alguma atividade de natureza empresarial, que o Estado pode realizar por si ou mediante outorga a um ente privado, mediante licitação.

Por fim, pode-se argumentar que a própria Constituição teria feito uma distinção entre as atividades desenvolvidas no âmbito da administração, sendo algumas consideradas “atividades exclusivas de estado” e, outras, não. Nesse sentido, o artigo 247 da Constituição: “As leis previstas no inciso IIIdo § 1º do art. 41 e no § 7º do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.”

Essa diferenciação, de fato, foi feita. Ela, no entanto, foi feita no tocante aos critérios específicos para a “perda do cargo”, não tendo, assim, nenhuma relevância no tocante ao ingresso no serviço público, que é a matéria ora em análise. Pelo contrário, referido artigo acaba por reforçar a ideia de que o ingresso de todos os servidores da Administração, independentemente das funções que exerçam, se dá por meio do concurso público, pois, do contrário, não haveria sentido em trazer a distinção quanto aos critérios para a perda do cargo.

Em resumo, não há em nosso ordenamento constitucional nenhuma possibilidade de que as tarefas que façam parte da dinâmica administrativa do ente público, como por exemplo, os serviços de limpeza e portaria, possam ser executadas por trabalhadores contratados por uma empresa interposta. A subcontratação da mão-de-obra, na esfera da Administração Pública, trata-se, portanto, de uma prática inconstitucional.

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