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3 de Maio de 2024

A Twitch e a inquisição dos streamers: Uma breve análise jurídica do caso ‘Rakin’ e ‘YoDa’

Por Victor Alexandre Louza, do núcleo de Direito do Consumidor do IEAD


No dia 17 de abril de 2020, os Streamers e produtores de conteúdo Rafael Knittel e Felipe Noronha, foram notificados pela Twitch, de que estavam suspensos da plataforma pelo período de 07 (sete) dias, dos quais não poderiam participar “em voz ou pessoalmente” de qualquer outra live.

Adquirida por cerca de 970 milhões de dólares pela Amazon, a plataforma atinge uma média de 43 milhões de visualizações mensais, e nutre a reputação de tolerância zero, com relação a violações aos seus termos de serviço.

Ocorre que, recentemente, a empresa com sede nos Estados Unidos tem adotado uma postura inflexível perante seus parceiros brasileiros. ‘Rakin’ e ‘YoDa’, pseudônimos pelos quais os mencionados jogadores se tornaram conhecidos perante a comunidade de League of Legends, são apenas alguns exemplos da onda de punições que a empresa tem aplicado.

O termo pejorativo, que supostamente deu ensejo a punição, foi o uso da palavra “mongoloide”, utilizado pelos jogadores para se referirem aos companheiros de equipe, os quais haviam praticado uma jogada considerada ‘desastrosa’, em uma clara tentativa de atribuir humor ao evento.

Contudo, em menos de 24 horas, a empresa norte-americana julgou o caso dos streamers, afirmando que se tratava de uma palavra extremamente ofensiva, aplicando-lhes uma punição que os impede de trabalhar, justamente quando estavam atingindo seus melhores resultados, em razão da quarentena provocada pela COVID-19.

Os jogadores contam com uma média de espectadores simultâneos na casa de 12 até 30 mil usuários, com milhares de subscribers, ou seja, pessoas que efetivamente pagam a Twitch para ter privilégios durante as lives. O evento repercutiu de tal forma, que inúmeros outros profissionais manifestaram apoio aos colegas, resultando inclusive em matéria divulgada pela grande mídia, a exemplo do “globoesporte.com”.

Afinal, pode a Twitch ser responsabilizada? Quais dispositivos seriam aplicáveis? Há algum precedente que pode ser mencionado? Inúmeras são as questões jurídicas que merecem destaque.

Inicialmente, porém sempre relevante ressaltar, a relação da plataforma com seus espectadores. Não há dúvidas de que a legislação aplicável seria o Código de Defesa do Consumidor, sobretudo, para aqueles que adquiriram o serviço de subscribing das lives dos jogadores.

Por mais reprovável que seja a atitude dos streamers, ainda que nesse caso não seja, os consumidores nada tem haver com a relação da empresa com seu produtor de conteúdo. Os assinantes do canal pagam 5 dólares por mês – R$ 26,18 (vinte seis reais, dezoito centavos) – para ter vantagens durante as lives, como ter um contato mais próximo com o jogador, emotes exclusivos, etc…, e estão impedidos de usufruir do serviço, por uma postura unilateral da empresa.

Ora, é certo que a punição aplicada pela Twitch se dirige diretamente aos produtores de conteúdo, mas será que não atinge indiretamente os espectadores? Considerando o cenário de suspensão das lives por 7 dias, em havendo planos de assinatura mensais, não haveria unilateral suspensão de 25% dos serviços?

Aliás, caso os espectadores desejassem que o valor fosse convertido totalmente em benefício dos jogadores, existe a possibilidade de que realizem doação diretamente aos streamers, com o nome sendo anunciado in live, não gozando de quaisquer outros benefícios, porém, com o serviço de subscribing, optam conscientemente por aferir as vantagens na transmissão, motivo pelo qual não é justo que sofram as consequências da turbação na relação empresa e produtor de conteúdo.

Por se sentirem lesados, ou na hipótese de desejarem mostrar apoio aos streamers, os consumidores têm direito ao abatimento de 25% (vinte cinco) por cento sobre o valor gasto na assinatura, o que pode ser utilizado como mecanismo para dissuadir a empresa repensar suas atitudes, com fundamento no artigo 18, do Código de Defesa do Consumidor.

E para ‘Rakin’ e ‘YoDa’? Qual seria o regime jurídico aplicável? Há espaço para discussão de uma eventual responsabilização da empresa?

Sim! Porém, posso adiantar que não haveria consenso sobre qual legislação seria aplicável. A depender da fundamentação, a relação empresa e streamer pode ser vista tanto como trabalhista, consumerista ou cível comum.

Dentre os quatro aspectos para caracterização do vínculo de emprego, quais sejam: a) onerosidade; b) pessoalidade; c) subordinação; d) não eventualidade, o último seria o maior óbice para aplicação do regime trabalhista, porquanto, os streamers não são obrigados a realizar transmissões em horários pré-agendados, tampouco, a cumprir com um requisito mínimo de horas mensais.

No Direito do Consumidor, a filiação do sistema brasileiro ao regime da teoria Finalista é que seria o único e grande problema, pois, os jogadores não podem ser considerados destinatários finais do conteúdo que produzem.

O Direito Civil comum, previsto na Lei n.º 10.406/02, parece a saída mais fácil, sendo o diploma de regência das demais relações jurídicas privadas, contudo, traria inúmeras consequências aos jogadores, ao passo que dificulta a produção de provas e traz inúmeras regras, que exigiriam aos jogadores litigarem em pé de igualdade com a empresa mais rica do mundo (Amazon).

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça tem mitigado a aplicabilidade da teoria Finalista, desde que, evidente a característica da vulnerabilidade. Em célebre julgado[1], o Tribunal da Cidadania aplicou o CDC a um conflito que envolvia uma costureira e a fabricante de máquinas e fornecedora de softwares.

No caso, a Excelsa ministra Nancy Andrigui:

a hipossuficiência da costureira na relação jurídica entabulada com a empresa fornecedora do equipamento de bordar – ainda que destinado este para o incremento da atividade profissional desenvolvida pela bordadeira – enquadrou-a como consumidora.

Dessarte, a melhor saída seria buscar a égide de proteção consumerista, ao passo que os jogadores fariam jus a inúmeros benefícios, como os da inversão do ônus da prova e a possibilidade de ajuizar ação em seu domicílio. Outrossim, a Twitch se incumbiria de um importante ônus, qual seja: o dever de respeito ao princípio da informação.

Cito o mencionado princípio, em virtude do simples fato de não estar claro qual tipo de palavra pode ser considerada ofensiva (nos termos de serviço). A grande reclamação com relação às punições, reside no fato de os streamers não saberem efetivamente o que podem ou não dizer, o que é horrível para agentes cuja audiência depende do humor.

O enquadramento como ilícito, resulta no dever da Twitch indenizar seus streamers em danos materiais com relação ao período que foram impedidos de trabalhar, incluindo-se lucros cessantes.

Com relação ao dano moral, escrevi um outro artigo chamado “A Dignidade Humana na Realidade Virtual”, onde trabalho mais afundo o tema. En passant, posso adiantar que é absolutamente cabível, em vistas de expressa disposição legal contida no artigo 19, do Código Civil[2], e importante precedente fixado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[3].

No mencionado julgado, a Activision Blizzard Brasil, foi condenada a indenizar jogador por ofensa moral a sua identidade digital. Parafraseando o brilhante Desembargador relator:

por trás de um participante de competição virtual sempre existe alguém com sentimentos e dignidade”.

O que nunca pode ocorrer, e isso é amplamente discutido nos autos que correram no Rio de Janeiro, é uma imposição de pena arbitrária. O regime jurídico brasileiro é forte, além de um dos mais modernos do mundo, os Streamers não podem ser expostos a uma espécie de doglaw, onde primeiro se pune e depois aprende o que é proibido. Deve-se cessar imediatamente a nova espécie de caça às bruxas.


Victor Alexandre Egídio Oliveira Louza Costa, advogado consumerista, especializando em Direito Público pelo IGD e Direito Processual Civil pelo IDP, Vice-Coordenador do Núcleo de Direito do Consumidor IEAD – Instituto de Estudos Avançados em Direito, membro atuante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/GO. Victor está no Instagram como @louzavictor.adv


  1. STJ (Resp n. 1.010.834 – GO, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 03/08/10, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 13/10/2010)

  2. Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

  3. Brasil. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 24ª Câmara Cível. 2ª Regional de Jacarepaguá. Apelação nº 0033863-56.2016.8.19.0203. Relator Des. Alcides da Fonseca Neto. Data do Julgamento 16/10/2019. Data da Publicação 17/10/2019

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Cara , as pessoas tem que entender que la são outras culturas , assim como la também tem que enteder que aqui e outra cultura , nem sempre o que e ofensivo la , sera aqui , a twitch tem que entender que aqui no brasil e algo normal de se falar , nao como um modo ofensivo , aqui nos falamos isso como uma "brincadeira" , ou também um modo de se referir a uma pessoa "meio lerda" nada disso e ofensivo , nao para mim continuar lendo

Hiago Arlindo

Concordo com você amado!

Acontece que isto implica em muito mais, em respeito à partes, ou seja, digamos que você tira uma brincadeira aparentemente saudável entre amigos, mas o nível da brincadeira muda um pouco, por exemplo, e, para isto, usemos aqui uma linguagem mais de uma classe menos abastada da sociedade, usemos o termo, “galinha” do qual sabemos o significado, como àquele que é metido a namorador. Mas acontece que chega a determinado nível e um deles chama outro de “corno”... Bom, creio que como é um termo muito mais agressivo e específico à um casal, ou seja, envolveu diretamente outra pessoa, o cônjuge deste, e desta forma, ele não irá aceitar a brincadeira, pois passou a ter cunho mais agressivo e desrespeitoso a quem provavelmente já esteja sendo vítima sem saber de uma traição; mesmo que isto seja irrelevante ao caso em questão. Muito embora ainda, que haja àqueles que não se incomodam com certas brincadeiras, por exemplo, quem proferiu a mesma, mesmo que saibamos que alguns destes, mesmo proferindo, mas que quando direcionadas a eles, estes se sentem ofendidos...

Bom, aqui é que entramos nos patamares do direito e da lei. É prudente que a falta de respeito seja reparada com no mínimo um pedido de desculpas e que a devida brincadeira seja cessada de imediato, pois devemos prezar o respeito mútuo e o bom convívio social... Caso contrário a justiça poderá sim, ser acionada... Normalmente; e, é o que temos visto, isto acaba com morte e prisão, justamente por não haver respeito e reparação!

Ou podemos ver esta mesma situação, em classes mais abastada, dai o termo mudaria para, “o pegador” ou, “o galã”, dentre outros e digamos que este termo seja usado na frente de um deles e de sua esposa. Creio que esta brincadeira tenha ido além da conta, sem considerarmos, é claro, que pode sim ser apenas uma brincadeira; mas vai entender o ser humano em um momento de ira e o momento em que àqueles que sofreram ou que foram alvo da brincadeira estejam passando e o que isto pode causar a suas vidas!

Bom, a questão é, independente disto e justamente por isto é que existem as leis que regram com parâmetros passeados na ética e na moral e que devem ser seguidos para que se tenha um convívio saudável e neste sentido, tudo àquilo que transgride e ou foge a estas regras torna-se ilegal... Por isto elas, as leis, as regras, devem existir e serem respeitadas.

E isto independe de quem e de que país. Da mesma forma, devemos respeita alguns; digo alguns, pois quando isto torna-se algo abominável aos olhos da prudência e da ética, como, por exemplo, a mutilação das genitálias de algumas mulheres em determinados países e ou o apedrejamento das mesmas por traição, devem ser abominadas, pois que o marido tenha o direito de desfazer o casamento, mas não de agredi-la e se dirigir a mesma como se ela fosse uma coisa, estas atitudes devem ser rechaçadas do mundo... Mas fora isto, no que diz respeito a determinados procedimentos que não tenham este caráter, devem sim serem respeitados...

Rogério Silva continuar lendo

Boa tarde colegas!

Não há dúvidas de que o termo "mongoloide" realmente pode e deve ser interpretado ofensivamente, contudo, o que pretendo chamar à questão é a gravidade da punição, além da absoluta ausência de critérios da empresa.

Conseguem imaginar o quão terrível deve ser trabalhar com humor e poder perder seu meio de subsistência de forma unilateral e sem qualquer direito de defesa?

Os jogadores punidos tem família e pessoas que dependem deles. No início desse ano, inclusive, a Record TV veiculou uma matéria bem legal, sobre venezuelanos que estavam conseguindo se sustentar na vida real, graças a venda de itens em um jogo online chamado "Tibia".

Aliás, conforme tentei ressaltar, as atitudes unilaterais da Twitch atingiram indiretamente os assinantes dos canais, os quais pagaram quase R$ 30,00 reais, para obter vantagens exclusivas, e só não poderão aproveitar dos benefícios, em razão da punição aplicada pela empresa.

Já passou o tempo de considerar a internet, como um terreno sem lei. Com a máxima vênia, a relação de um streamer e seu computador, não é diferente da de uma costureira e sua máquina de trabalhar (em referência ao julgado do STJ).

É certo que se a empresa deseja fazer valer suas regras, deve primeiro faze-lo de forma transparente. A propósito, os citados termos de serviço da Twitch sequer foram traduzidos para o português.

Forte abraço pessoal! continuar lendo