Estelionato previdenciário: crime instantâneo ou permanente ou concurso formal?
LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG . Blog: www.blogdolfg.com.br . Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Estelionato previdenciário: crime instantâneo ou permanente ou concurso formal? Disponível em http://www.lfg.com.br - 06 maio.2010.
Em 20 de abril de 2010 a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu sobre o início do prazo de prescrição de crime contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Eis a notícia publicada no site do STF:
Por unanimidade, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus (HC 99112) a J.B.S., acusado de fraudar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para receber ilegalmente o benefício. Ele teria induzido a Previdência ao erro com a declaração de que teria trabalhado mais tempo para duas empresas para obter uma aposentadoria por tempo de contribuição.
O defensor público que apresentou o HC a favor do acusado afirmou que a questão gira em torno de saber se o crime, considerado estelionato previdenciário, seria considerado crime permanente ou crime instantâneo de efeitos permanentes. A definição entre esses dois tipos é necessária para saber se o crime já prescreveu ou não.
A tese do defensor é de que o crime é instantâneo, pois o delito é praticado como um ato único. Ou seja, o crime se caracteriza a partir do recebimento da primeira parcela do benefício e, ao receber as demais parcelas, não se estaria praticando mais nenhum ato, pois o recebimento é continuado. Dessa forma, a prescrição deveria ser contada a partir da data da realização da fraude que possibilitou os pagamentos indevidos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que se tratava de crime permanente e, por isso, o acusado ainda pode ser punido, pois não houve a prescrição do crime.
Voto
De acordo com o voto do relator do caso, ministro Março Aurélio, o STF distingue as duas situações da seguinte forma: o terceiro que pratica uma fraude visando proporcionar a aposentadoria de outro, comete crime instantâneo. No entanto, "o beneficiário acusado da fraude, enquanto mantém em erro o instituto, pratica crime", destacou o ministro ao concordar que o crime ainda não prescreveu porque a data a ser contada é a partir do último benefício recebido e não do primeiro.
Seu voto foi acompanhado pelos demais ministros da Turma.
Processos relacionados HC 99112 Fonte: , 20 abr. 2010.
O estelionato previdenciário é regido pelo art. 171, do Código Penal, com a causa de aumento de pena do 3º (Súmula 24 do Superior Tribunal de Justiça-STJ).
Se se entender configurado o caráter permanente da mencionada infração, por se tratar de fraude na obtenção de benefício previdenciário, que dura no tempo, deve ser considerada como termo inicial da prescrição a data em que cessou a permanência, ou seja, do dia em que cessou o recebimento indevido da aposentadoria (CP, art. 111, III). Do contrário, considerando que a conduta caracteriza-se como crime instantâneo de resultados permanentes, a prescrição começa a correr do dia em que o crime se consumou (art. 111, I, do CP).
Luiz Flávio Gomes[1] leciona:
Nossa posição: quando há fraude na obtenção de benefício previdenciário não há como vislumbrar a existência de crime permanente, que apresenta uma característica particular: a consumação no crime permanente prolonga-se no tempo desde o instante em que se reúnem os seus elementos (sic) até que cesse o comportamento do agente. Traduzida essa clássica lição em termos constitucionais, que permite assumir a teoria do bem jurídico como esteira de toda a teoria do delito, dir-se-ia: no crime permanente a lesão ou o perigo concreto de lesão (leia-se: a concreta ofensa) ao bem jurídico tutelado se protrai no tempo e, desse modo, durante um certo período o bem jurídico fica subordinado a uma atual e constante afetação, sem solução de continuidade. O bem jurídico permanece o tempo todo submetido à ofensa, ou seja, ao raio de incidência da conduta perigosa (é o caso do seqüestro, que pode durar dias, meses ou anos - o bem jurídico liberdade individual fica o tempo todo afetado).
(...) Já não basta, assim, dizer que permanente é o crime cuja consumação se prolonga no tempo. Com maior precisão impõe-se conceituar: permanente é o crime cuja consumação sem solução de continuidade se prolonga no tempo.
No estelionato previdenciário (fraude na obtenção de benefício dessa natureza) a lesão ao bem jurídico (patrimônio do INSS) não se prolonga continuamente (sem interrupção) no tempo. Trata-se de lesão instantânea (logo, delito instantâneo: cfr. TRF 3ª Região, AC 1999.03.99.005044-5, rel. André Nabarrete, DJU de 10.10.00, Seção 2, p. 750).
Para Guilherme de Souza Nucci[2] "o crime é sempre instantâneo, podendo por vezes, configurar o chamado delito instantâneo de efeitos permanentes".
Em julgamento realizado no STF[3] em fevereiro de 2008, foi concedida a ordem em Habeas Corpus impetrado em favor de paciente que foi denunciado pela prática do delito previsto no art. 171, 3º, do Código Penal, por ter figurado como testemunha em certidão de óbito considerada ideologicamente falsa. Com esse documento a denunciada M.A.J. requereu benefício previdenciário junto ao INSS e passou a receber pensão por morte.
Segundo o relator, Ministro Cezar Peluso, cuida a imputação de crime instantâneo de resultado permanente. Do voto do relator no HC 82.965- 1 transcrevemos:
É o momento da consumação do delito que lhe dita o caráter instantâneo ou permanente. No crime instantâneo, o fato que, reproduzindo o tipo, consuma o delito, realiza-se num só instante e neste se esgota, podendo a situação criada prolongar-se no tempo, ou não. No permanente, o momento de consumação é que se prolonga por período mais ou menos dilatado, durante o qual se encontra ainda em estado de consumação .
O Ministro Cezar Peluso recorda que não se deve confundir a execução do crime com a sua conseqüência. No caso em que perdura só a conseqüência se tem o chamado crime instantâneo de efeito permanente, que difere do crime permanente, porque, neste, é o próprio momento consumativo que persiste no tempo.
O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou a questão. Da ementa do HC 152.150 [4](julgado em fevereiro de 2010) transcrevemos:
PENAL. ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL. APOSENTADORIA POR TEMPO DE SERVIÇO. PRESTAÇÕES SUCESSIVAS. CONFIGURAÇAO DA PERMANÊNCIA. TERMO A QUO. ÚLTIMA PARCELA RECEBIDA. NAO-OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇAO. ORDEM DENEGADA .
1. Consoante entendimento da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o crime de estelionato praticado contra a Previdência Social, ensejando a percepção sucessiva e irregular de benefícios previdenciários, constitui crime permanente. A Sexta Turma, por sua vez, vem sufragando, em recentes julgados, o entendimento de que tal delito é instantâneo de efeitos permanentes.
2. Filiando-me, todavia, à exegese consolidada pela Quinta Turma, é de se reconhecer que, nos termos do art. 111, III, do Código Penal, a prescrição somente começa a correr do dia em que cessa a permanência.
3. Condenado o réu à pena de 2 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, o prazo prescricional ocorre em 8 anos, nos termos dos arts. 109, IV e 110, 1º, ambos do Código Penal, lapso não consumado entre a data da percepção do último benefício irregular, o recebimento da denúncia e a publicação da sentença condenatória.
4. Ordem denegada.
Agora, com o julgamento do Supremo Tribunal Federal de abril de 2010 (HC 99112), restou claro, nos termos do voto do Ministro Março Aurélio, que o STF diferencia as duas situações: "o terceiro que pratica uma fraude visando proporcionar a aposentadoria de outro, comete crime instantâneo. No entanto, o beneficiário acusado da fraude, enquanto mantém em erro o instituto, pratica crime", e a contagem do lapso prescricional da pretensão punitiva deve ser feita a partir do último benefício recebido.
Nossa posição: o recebimento mensal de pensão indevida só significa um novo resultado jurídico (lesão) ao bem jurídico. O agente não pratica nova conduta, todo mês, para receber o valor indevidamente. A conduta é praticada uma única vez. Dessa conduta decorrem vários resultados (recebimentos mensais). De acordo com o Código Penal (art. 70) e a doutrina penal, quando de uma só conduta derivam vários resultados, o que temos é o concurso formal (não o crime instantâneo único, não o crime permanente, não o concurso material). Para nós, portanto, é o caso de concurso formal (e a prescrição, nesse caso, conta-se da data de cada recebimento, ou seja, de cada resultado lesivo, não do último recebimento).
[1] GOMES, Luiz Flávio. Estelionato previdenciário: crime instantâneo ou permanente? Crime único, continuado ou concurso formal? Disponível em , 26 mar. 2009. Acesso em: 23 abr. 2010.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito penal: parte geral e parte especial. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2009, p. 748.
[3] STF, HC 82.965-1/RN, 2ª Turma, rel. Min. Cezar Peluso, j. 12.02.2008, DJE n. 55, 28.03.2008.
[4] STJ, HC 152.150, 5ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 04.02.2010, DJe 08.03.2010.
BIBLIOGRAFIA
GOMES, Luiz Flávio. Estelionato previdenciário: crime instantâneo ou permanente? Crime único, continuado ou concurso formal? Disponível em , 26 mar. 2009. Acesso em: 23 abr. 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito penal: parte geral e parte especial. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2009.
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