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1 de Maio de 2024

STF Jun23 - Decisão de Recebimento da Denúncia nula por falta de Manifestações das Teses Defensivas - Ferimento ao Art. 315 do CPP

há 7 meses

HABEAS CORPUS 222.049 SÃO PAULO RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus impetrado por William César Pinto de Oliveira e outros em favor de João XXXXXXXXXX, contra decisão do STJ que indeferiu liminarmente o writ. Colho do relatório:

“Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado em favor de JOXXXXXXXXRO em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO ( HC n. 2243019-72.2022.8.26.0000). Noticiam os autos que o paciente foi preso em flagrante pela suposta prática do crime de tráfico de drogas, tendo sido a custódia convertida em preventiva. Inconformada a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de origem, que indeferiu o pleito de liminar. Nesta via, os impetrantes sustentam que o paciente faz jus ao ANPP, aduzindo que os fundamentos utilizados pelo Ministério Público para o não oferecimento do acordo não se sustentam. Alegam que a decisão que recebeu a denúncia é genérica e deixou de apreciar as teses defensivas. Aduzem que o paciente é primário, possui bons antecedentes, não se dedica a práticas delituosas e não integra organização criminosa. Defendem que a quantidade de entorpecentes apreendida não é expressiva o suficiente para afastar o benefício. Alegam que, ante a flagrante ilegalidade, a contrariedade à jurisprudência e a teratologia, haveria motivo bastante para a mitigação da Súmula n. 691/STF. Requerem, liminarmente, a suspensão do processo até o julgamento do mérito do presente writ. No mérito, pugnam pela concessão da ordem para que seja anulada a decisão que recebeu a denúncia.” (eDOC 4, p.1)

A defesa narra que o paciente foi preso em flagrante portando 135,29 gramas de entorpecentes, supostamente para consumo próprio. Após a conversão do flagrante em preventiva, o impetrante apresentou defesa prévia em que apontou ilicitude na busca pessoal e falta de interesse de agir do Parquet em razão do não oferecimento do ANPP, questões que não teriam sido apreciadas pelo magistrado no ato de recebimento da denuncia. (eDOC 1, p.2 e eDOC 3, pp. 111-119) Em face da suposta ilegalidade, a defesa impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justiça, tendo o relator indeferido liminarmente o pleito defensivo.

Ato contínuo, impetrou-se o writ no Superior Tribunal de Justiça, o qual restou indeferido liminarmente. Nesta Corte, o impetrante insiste na ausência de fundamentação da decisão que recebeu a denúncia, por não ter enfrentado adequadamente os argumentos defensivos. Requer, liminarmente, a suspensão do trâmite processual até que seja apreciado o mérito por essa Suprema Corte. No mérito, requer a anulação dos atos processuais desde o recebimento da denuncia, para que sejam apreciadas as teses defensivas.

É o relatório. Decido. Inicialmente, registro que o eminente Ministro Relator, no STJ, indeferiu o writ liminarmente, pois as questões de fundo ainda não foram examinadas pelo Tribunal de Justiça. Verifica-se, portanto, que o mérito da controvérsia não foi apreciado pelo Tribunal de Justiça nem pelo Superior Tribunal de Justiça, de modo que a apreciação por esta Corte resultaria em dupla supressão de instância.

Segundo jurisprudência consolidada deste Tribunal, não tendo sido a questão objeto de exame definitivo pelo Superior Tribunal de Justiça ou ausente prévia manifestação colegiada das demais instâncias inferiores, a apreciação do pedido da defesa implica supressão de instância, o que não é admitido. Nesse sentido: HC-AgR 131.320/PR, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe 10.2.2016; HC 140.825/PR, Rel. Min. Luiz Fux, decisão monocrática, DJe 3.3.2017; e HC 139.829/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática, DJe 8.3.2017.

É bem verdade que, em casos de manifesta e grave ilegalidade, tais entendimentos podem ser flexibilizados, inclusive por meio da concessão da ordem de ofício, o que, a meu ver, é o caso dos autos. O devido processo legal se orienta à observância dos elementos formais e materiais relacionados à atribuição de responsabilidade penal.

Nesse sentido, as regras de procedimento, no caso do rito ordinário, estabelecem o fluxo sequencial dos atos processuais, cujas etapas são indisponíveis e não podem ser alteradas ou contornadas ao capricho do magistrado. Ao lado da tipicidade penal ( CR, art. 5 XXXIX), a tipicidade processual - observância do rito estabelecido em lei - garante legítimas expectativas das partes e do julgador, regulamentando o circuito procedimental, os sujeitos, os poderes, os deveres, os direitos e os ônus de cada um dos participantes dos eventos procedimentais.

Ao julgador compete a condução regular das etapas procedimentais, não dispondo de espaço decisório para criar procedimentos diversos dos previstos no Código de Processo Penal. Logo, se não pode criar procedimento, nem se valer de regras procedimentais revogadas, então também não pode inovar, reduzir, alterar, prolongar ou inviabilizar a incidência regular das 3 (três) etapas subsequentes:

1ª Etapa: admissão da pretensão acusatória (legitimidade, tipicidade aparente, punibilidade concreta, justa causa e petição apt)]; 2ª Etapa: após a resposta à acusação, a análise motivada e fundamentada dos argumentos apresentados na hipótese defensiva (HDef), com a reanálise dos pressupostos, requisitos e condições da ação (Etapa 1ª) ou a rejeição da pretensão acusatória. É direito subjetivo do acusado (SALLES, Bruno Makowiecky. Direitos e Deveres nas Teorias Geral e Jusfundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023) que a decisão de rejeição dos argumentos ofertados aconteça por decisão motivada e fundamentada; 3ª Etapa: construção do provimento jurisdicional por meio da efetiva participação durante a produção probatória, alegações finais e sentença.

No caso concreto, com a devida vênia, a decisão que recebeu a denúncia não atende aos requisitos exigidos pelo art. 315 do CPP: Art. 315. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada. § 1º Na motivação da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra cautelar, o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. § 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (Grifei)

Não se desconhece que o principal objeto do art. 315 é a decisão que aprecia o pedido de segregação cautelar. Todavia, a doutrina entende os parâmetros ali dispostos como referencial para se contrastar qualquer decisão judicial, como leciona Aury Lopes Jr. (Direito Processual Penal. São Paulo, SaraivaJur, 2023, p.91)

“Também cumpre sublinhar que sua aplicação não se restringe as decisões que tenham por objeto as prisões cautelares, sendo exigível sua observância a toda e qualquer decisão, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão. Portanto, não é apenas na sentença que o dever de fundamentação é exigível, mas também em todas as decisões interlocutórias tomadas no curso do procedimento.”

O inciso quarto impõe ao magistrado o dever de confrontar os argumentos deduzidos pelas partes, como explicam Dierle Nunes, Alexandre Bahia e Flávio Pedron (Teoria Geral do Processo. Bahia. 2021, p. 428)

“E o dever do juiz de levar em consideração os argumentos das partes (Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen): atribui ao magistrado não apenas o dever de tomar conhecimento das razões apresentadas (Kennthisnahmepflicht), como também o de considerá-las sériae detidamente (Erwägungspflicht), 126 está posto no § 1. do art. 489 do CPC/2015. Este dever é levado a sério há muito tempo em sistemas estrangeiros e continua sendo amplamente respeitado (vide decisão do Tribunal constitucional federal - BVerfg, 2 BvR 1493/11, p.29.10.2015). Dentro desse enfoque se verifica que, há muito, a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado, como aludido no item anterior, tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas sim como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa. Tal concepção, encampada especialmente no art. 10 do CPC/2015,12 9 mas que gera projeção em inúmeros outros preceitos (v.g., arts. 7.0130 e 927131), significa que, como já dito, não se pode mais acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento. Ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo possa ser meramente fictícia, ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no plano substancial.”

A partir do dever de consideração dos argumentos deduzidos nos autos, emerge o direito subjetivo das partes de ter seus argumentos devidamente apreciados, à luz da compreensão bilateral entre direito subjetivo e dever jurídico (ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Teoria do Direito: Uma abordagem não convencional. Curitiba: InterSaberes, 2020. p.136-139).

Acerca de direitos subjetivos, colho a seguinte a definição de Bruno Makowiecki Salles (Direitos e deveres nas teorias geral e jusfundamental: acesso à justiça, judicialização e ativismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023, p. 58-59):

“Fala-se em Direito Subjetivo (lato sensu) quando as normas de Direito Objetivo percorrem um processo de subjetivação, deslocando-se o raio de análise para o ponto de vista e os interesses da pessoa individual e sua posição em face do Estado. (…) O Direito Subjetivo é a canalização de um direito previsto em abstrato à órbita de um sujeito concreto que o titulariza e é apto à reivindicá-lo ou exercê-lo.”

No caso concreto, houve menosprezo a um momento processual de suma relevância para o exercício do direito de defesa. Afinal, embora os advogados tenham alegado a nulidade da busca pessoal realizada pelos agentes policiais, o eminente magistrado se limitou a afirmar que “não há qualquer ilegalidade na busca domiciliar realizada pelos policiais visto que, após revista pessoal realizada no acusado, foram localizados entorpecentes e dinheiro na sua posse (...)” (fl. 127 dos autos principais).

Não houve, portanto, o enfrentamento de uma tese relevante da defesa (nulidade da busca pessoal), que, inclusive, tem sido acolhida em posicionamentos recentes do Superior Tribunal de Justiça (RHC 158.580, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 25.04.2022).

A meu ver, a flagrante omissão da decisão impugnada afronta o direito do réu de ter suas teses devidamente analisadas, nos termos do art. 315 do Código de Processo Penal. Houve, assim, atropelo de etapa processual relevante, a indicar cerceamento de direito de defesa, na medida em que é dever do magistrado enfrentar as teses alegadas na defesa prévia e na resposta à acusação. Nesse sentido, reporto-me aos seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO ACERCA DAS TESES DEFENSIVAS. QUESTÃO PROCESSUAL RELEVANTE. NULIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Na fase do art. 397 do Código de Processo Penal, nada impede que o juiz faça consignar fundamentação de forma não exauriente, sob pena de decidir o mérito da causa. Contudo, deve ao menos aludir o julgador aquilo que fora trazido na defesa preliminar. Incumbe-lhe enfrentar questões processuais relevantes e urgentes ao confirmar o aceite da exordial acusatória. 2. Hipótese em que o magistrado a quo, após a defesa preliminar, limitou-se a afirmar que as matérias alegadas seriam "defesa de mérito" e a designar audiência. Não fez qualquer menção acerca das teses elencadas no cerne da peça processual, que seriam relevantes, inclusive pela alegação de absoluta falta de prova da materialidade do crime ambiental, decorrente do laudo pericial inconclusivo. 3. Recurso provido a fim de anular o processo, a partir da segunda decisão de recebimento da denúncia, devendo outra ser proferida, apreciando-se os termos da resposta preliminar.” ( RHC 46.127/MG, Rel. Maria Thereza De Assis Moura, Sexta Turma, DJe 25/02/2015) E, ainda: “Esta Corte Superior de Justiça adota o entendimento de que, na ratificação do recebimento da denúncia, deve haver motivação acerca das teses apresentadas na defesa preliminar, ainda que de forma sucinta, pois, nessa fase, o juiz limita-se à admissibilidade da acusação e deve evitar o prejulgamento da controvérsia. Assim, "não sendo a hipótese de absolvição sumária do acusado, a decisão do Juízo processante que recebe a denúncia não demanda fundamentação complexa, sob pena de antecipação prematura de um juízo meritório que deve ser naturalmente realizado ao término da instrução criminal, em estrita observância aos princípios da ampla defesa e do contraditório" ( AgRg no AREsp n. 440.087/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T, DJe de 17/6/2014, destaquei). Na hipótese, contudo, a decisão que recebeu a denúncia em desfavor do paciente, a meu ver, não atende ao comando constitucional previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal, pois não fez a mínima referência aos argumentos apresentados pela defesa na resposta à acusação. Com efeito, a referida peça (fls. 103-110) foi específica ao suscitar as seguintes teses: a) ilegitimidade passiva do denunciado; b) litispendência; c) ausência de justa causa; d) não participação do acusado nos fatos narrados; e) ausência de dano ao erário; e f) atipicidade da conduta imputada. A decisão que ratificou o recebimento da denúncia (fls. 103-110), entretanto, olvidou de analisar os argumentos defensivos e não fez a mínima alusão aos argumentos suscitados, ainda que de forma superficial.” ( HC 523.480/MG, Rel. Rogério Schietti Cruz, DJe 20.12.2022)

Ante o exposto, não conheço do writ, mas concedo a ordem, de ofício, para anular o recebimento de denúncia e todos os atos processuais subsequentes, determinando que o eminente magistrado analise adequadamente os argumentos deduzidos na defesa prévia (fls. 111-119 dos autos principais). Oficie-se com urgência ao Juízo de origem. Publique-se. Brasília, 4 de julho de 2023. Ministro GILMAR MENDES Relator Documento assinado digitalmente

(STF, HC 222.049 , Relator Ministro GILMAR MENDES, julgamento no dia 4 de julho de 2.023)

https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15359444118&ext=.pdf

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