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8 de Maio de 2024
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    Artigo - Novos caminhos da Filiação: A responsabilidade de pais e de genitores - Questões Polêmicas - Por Beatrice Marinho Paulo

    Introdução

    Uma sogra emprestou o útero para a nora e o filho terem seu bebê, que, depois de nascido, não pôde ter seu registro feito no nome dos pais verdadeiros, apesar de todas as declarações médicas afirmando que a mãe biológica não era aquela que tinha efetivamente tido a criança.

    Uma criança processa o banco de esperma onde a mãe adquiriu o material para a inseminação, querendo conhecer a identidade do doador, apesar de este ter feito contrato com aquela instituição onde constava cláusula garantidora do absoluto anonimato da doação, alegando ser direito personalíssimo seu conhecer as suas origens, integradoras que são de sua identidade[1].

    A companheira "viúva" de uma famosa cantora homossexual vai a juízo requerer a guarda do filho da falecida, que sempre criou, juntamente com a mãe verdadeira, como se seu próprio filho fosse, e tem que disputá-lo com o avô paterno, antes sempre ausente, mas que tem seu vínculo com a criança protegido, privilegiado pela letra fria da lei, precisando a requerente, por isso, contar com a sensibilidade e o bom senso do magistrado, na hora de interpretar e aplicar aquela norma.

    Um jovem de treze anos precisou recorrer aos tribunais para ver reconhecido o seu direito de receber a visita do filho de seu padrasto, com quem convivera sob o mesmo teto, compartilhando todas as experiências como se irmãos fossem, desde que era um bebê, mas de quem fora separado meses atrás, desde a separação dos pais de ambos, em que cada um teve que acompanhar seu próprio genitor.

    Uma famosa socialite revela que seu filho não é fruto do casamento com seu ex-marido, desejando desconstituir juridicamente a paternidade deste, desconsiderando inteiramente as vivências havidas até ali entre o ex-marido e a criança, para ver reconhecida a paternidade de um outro homem, com quem manteve a relação extra-conjugal que, segundo indicam os exames de DNA, gerou a vida do filho.

    Parceiros homossexuais, que criam os filhos de seus companheiros como se seus filhos fossem, sendo também reconhecidos por eles como pais ou mães, procuram a Justiça buscando oficializar aquele vínculo, pela adoção, sem, entretanto, desconstituir o vínculo que aquelas crianças têm com o pai ou a mãe biológica, de forma a passarem a constar, em suas certidões de nascimento, que são filhos dos dois homens - ou das duas mulheres -, sem discriminar, no documento, o papel de cada um deles em sua vida - pai ou mãe.

    Duas mulheres, que mantêm convivência pública, contínua e duradoura como casal, recorrem ao Tribunal para verem garantidos juridicamente os vínculos de ambas com as crianças geradas no ventre de uma delas, com os óvulos da outra, enquanto duas outras mulheres estampam as páginas de uma famosa revista, relatando a história de sua família, na qual duas crianças já são há anos registradas e criadas como filhas das duas, sem discriminação, no documento, dos lugares de pai ou de mãe.

    Cientistas anunciam que, com o desenvolvimento das pesquisas feitas com células-troncos, dentro em breve será possível que se crie óvulos a partir de células de homens, bem como espermatozóides, a partir de células de mulheres, o que possibilitará, entre outras coisas, que parceiros homoafetivos gerem, juntos, filhos que possuam a carga genética de ambos.

    A mãe genética e a mãe-de-aluguel, que utilizou seu útero para a gestação de uma criança, disputam nos tribunais o reconhecimento da maternidade dessa mesma criança; sem falar nas por enquanto apenas elocubrações a respeito de como ficariam os vínculos de parentesco do clone, e de quem seriam, legalmente, seu pai e sua mãe.

    Vivemos um momento de incertezas, em que há uma crise de antigos paradigmas. O modelo jurídico vigente mostra-se em descompasso com a realidade social, mas relações continuam a se estabelecer, independente da sua aceitação legal. As mudanças são cada vez mais rápidas, a verdade social afronta e busca transformar o Direito, mas o encontro de soluções nem sempre consegue manter o mesmo ritmo dessas alterações. A elaboração de normas jurídicas custa a acompanhar a velocidade com que a realidade social se transforma, sendo impossível prever tudo o que ela venha a criar.

    Sem dúvida, a realidade é muito mais dinâmica do que a capacidade legislativa humana. Nada há de mais criativo do que a própria vida! Os fatos sempre surpreendem, e, por mais minuciosa que seja a legislação de um país, sempre hão de existir os casos que escapam às suas regras, desafiam seus limites e possibilidades, e exigem a permanente revisão de conceitos e reformulação de teorias, para que se possa, mesmo com os velhos artifícios de que se dispõe, abarcar a nova situação que se apresenta.

    É certo, por exemplo, que quando se pensa em "filho", a primeira coisa que vem à mente é a questão da procriação, pois "filho", a princípio, é o descendente direto de alguém. Todavia, a relação paterno-filial não é uma relação meramente biológica. Caso se detenha no exame mais cuidadoso da questão da filiação, perceber-se-á que existem, fundamentalmente, três critérios para determiná-la em nossa sociedade: a biológica, a jurídica e a afetiva.

    É o Direito que atribui juridicidade à parentalidade. O parentesco jurídico, entretanto, nunca esteve necessariamente vinculado ao biológico. Durante muito tempo, mesmo havendo relação de ascendência e descendência genética, alguns filhos não podiam obter o status jurídico da filiação, devido à ilegitimidade de sua origem. E, mesmo hoje, a consanguinidade é apenas um dos fundamentos para que se reconheça a filiação de alguém, conforme o artigo1593 do Código Civil.

    Todavia, sabe-se que uma paternidade (ou maternidade) não pode ser despida do vínculo afetivo, pois, caso o seja, mesmo tendo base biológica e sendo reconhecida juridicamente, será apenas uma ficção, pois deixará de cumprir o fim social para o qual se destina: servir de instrumento para o pleno desenvolvimento da personalidade dos filhos, garantindo o cumprimento dos seus direitos fundamentais.

    Certamente, acontece a situação ideal quando vínculos biológico, jurídico e sócio-afetivo coincidem, mas ocorrem, às vezes, situações em que tal não se dá, em que surgem conflitos entre as três grandes verdades da filiação, que entram em choque, sendo preciso que um juiz determine qual delas deve prevalecer sobre as outras, partindo, para isto, das premissas consagradas na sua época, tendo em vista o caráter sócio-histórico do Direito.

    A questão da filiação hoje se apresenta "imensa, exigente e urgente"[2], principalmente quando a paternidade / maternidade, mais que direitos, são verdadeiras necessidades do filho, e o estado de filiação é encarado como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível. É necessário que se produza rápidos avanços na construção de um novo conhecimento jurídico acerca dessa importante área do Direito de Família, especialmente quando este filho é ainda uma pessoa em desenvolvimento, a quem nosso ordenamento jurídico garante uma proteção integral e absoluta prioridade na tutela de seus melhores interesses.

    Que interesse deve ser tutelado, como superior: o sangue, o coração ou a lei? Que vínculo merece mais a tutela estatal: o da criança com seu pai biológico ou o com aquele que a tem criado, como se sua filha fosse, por muitos anos? Haveria algum meio de se partilhar ou compartilhar as responsabilidades entre pais sócio-afetivos e genitores? Que tipo de responsabilidade teria o doador do sêmen usado na inseminação artificial que gerou aquele filho?

    E as crianças criadas por casais homoafetivos? Que meios oferece a Ciência do Direito, na atualidade, para dar conta das questões surgidas em relação a esses novos vínculos familiares? Poderiam eles serem realmente considerados, em termos jurídicos, vínculos familiares, merecendo a mesma proteção dos vínculos tradicionais, que a Constituição garante a todas as famílias? Se não, como fica a questão do acesso à justiça e da igualdade de tratamento, em relação a essas pessoas que, pelo menos socialmente, já são vistas como filhos daquele casal? Por não serem essas relações ainda legalizadas ou judicializadas, devem ficar carecendo de proteção e de tutela estatal? Estar-se-á diante de um caso de discriminação legalizada, repetidamente feita, todos os dias, por nossos Juízes e Tribunais? Que valores, princípios e ensinamentos jurídicos podem nortear decisões a respeito deste e de outros vínculos ainda não regulamentados ou legalizados?

    Pretende este trabalho ser uma pequena contribuição para o desenvolvimento desse Direito de Família que se faz pela prática, no diaadia dos foros e dos tribunais, investigando vetores axiológicos que podem auxiliar os operadores a encontrar soluções adequadas para casos concretos, habilitando-os a resolvê-los de maneira satisfatória e condizente com o novo contexto e a nova realidade.

    NOVOS CAMINHOS DA FILIAÇÃO

    A responsabilidade de pais e de genitores - Questões Polêmicas

    Em verdade, diante da certeza científica trazida pelo exame de DNA, que possui uma credibilidade tal que nem mesmo a possibilidade de falha humana consegue abalar, ocorreram profundas mudanças no Direito de Filiação, com uma divinização desse meio de prova, que fez com que todos os outros antes usados perdessem espaço. Passou-se a entender que a verdade real sobre filiação encontrava-se no dado genético, esquecendo-se de que a origem genética nem sempre conduz à paternidade, embora o faça na maior parte das vezes.

    Diante de diversas situações surgidas no tecido social e do novo momento do modelo familiar ali encontrado, entretanto, percebe-se que o vínculo genético nem sempre justifica tudo. Herkenhoff[3], juiz aposentado, relata uma experiência vivida por ele, no início de sua carreira, na qual enfrentou um dilema no qual um pai e uma mãe biológicos reclamavam a guarda de um filho que tinham entregado a um outro casal anos antes, para que este o criasse, com ânimo definitivo, devido a dificuldades financeiras por que passaram. Tendo melhorado sua condição econômica, o casal requereu à Justiça a busca e apreensão da criança, fundamentados no artigo 384 do Código Civil, que dava direito aos pais de reclamarem os filhos de quem os detivesse ilegalmente. Conta Herkenhoff que, baseado na letra fria da lei, ele deferiu o pedido, proferindo assim uma decisão da qual muito se arrependeu, ao constatar o horror na face da criança, quando foi retirada dos braços da mulher que se fez sua mãe pelo amor e foi entregue nos braços daquela que era sua mãe de direito, à luz de sua certidão de nascimento. Classifica o autor esta sentença, por ele próprio proferida, como profundamente injusta, declarando que, se pudesse, tiraria de sua vida o dia em que a prolatou, pois, a seu ver, "os filhos devem pertencer a quem lhes tenha amor e cuide bem deles".

    A Bíblia propõe uma reflexão semelhante, ao narrar o episódio decidido pelo rei Salomão no qual ele teve que decidir a quem caberia a guarda de uma criança, disputada por sua mãe biológica e pela mãe de criação, e, para isto, sugeriu que a criança fosse partida no meio, de modo que a cada uma delas coubesse parte do filho. Ouvindo a proposta, a mãe sócio-afetiva a rejeitou na mesma hora, afirmando preferir entregar o filho todo para a outra a lesioná-lo. Salomão então lhe entregou a criança inteira.

    Urge que se promovam debates, não apenas na esfera jurídica, mas com os mais diversos setores da sociedade, para que melhores critérios acerca da filiação e das responsabilidades de pais e genitores sejam fixados. É injustificável que juízes permaneçam apegados a ditames ultrapassados e detidos em sutilezas formais que os impeçam de apreciar as novas teses jurídicas que reclamam seu pronunciamento e sua orientação. É preciso que se superem antigos pressupostos e que, em um testemunho de coragem e lucidez, confira-se sensibilidade jurídica a determinados fatos e situações que surgem na busca do que seja a verdadeira família, de forma a captar da realidade social o verdadeiro sentido da paternidade e da maternidade, reconhecendo juridicamente aquelas que venham ao encontro dos interesses do filho. As discussões que virão a seguir visam ser uma pequena contribuição nesse sentido.

    1. DA PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE DO MARIDO E DA POSSIBILIDADE DE SUA DESCONSTITUIÇÃO A QUALQUER TEMPO.

    "A mãe entra com processo na justiça requerendo investigação de paternidade de uma filha que, até a data do processo, tinha como suposto pai o companheiro de sua mãe. O pai dito como verdadeiro, biológico, não tem nenhuma relação com a criança e não quer assumir a paternidade. O pai que a criança sempre conheceu e chama de pai, o qual nomearemos aqui por 'pai social', não quer perder o lugar de pai desta criança, mesmo sabendo que esta é uma filha adulterina. A pergunta do processo: quem é o pai?"[4]

    A hipervalorização do resultado do exame de DNA como prova determinante chegou a flexibilizar a rigidez do CC/16, mesmo antes de sua revogação pelo CC/2002, sendo aceito pela jurisprudência como fundamento para a negatória de paternidade, ampliando o rol até então taxativo das hipóteses permissivas para esse tipo de ação, onde não estava previsto.

    Posteriormente, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente previu que, por ser o conhecimento da verdadeira paternidade um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível da criança, não caberia admitir qualquer restrição temporal à ação de investigação de paternidade, permitindo assim que o filho pudesse, a qualquer tempo, buscar ver reconhecida sua verdadeira paternidade.

    O Código de 2002 também conferiu ao vínculo genético uma importância superior, na medida em que, deixando de perceber que o conhecimento da verdade biológica sobre sua paternidade é um direito que diz respeito ao filho, cujo status resta finalmente determinado ou modificado ao final daquela ação de estado (afinal, "é sobre o status de filho que se decide, não há status de paternidade"[5]), ampliou a disposição do ECA, permitindo também ao marido contestar a paternidade do filho de sua mulher a qualquer tempo, tendo como fundamento único para tal desconstituição a prova genética da inexistência do vínculo biológico, ou seja, o resultado negativo do exame de DNA. Desta forma, a verdade biológica passa a prevalecer, em detrimento da paternidade jurídica garantida pela presunção pater is est prevista no Código, sendo-lhe dado um peso maior, mesmo quando, ao lado da paternidade jurídica, existem elementos caracterizadores da paternidade sócio-afetiva, como a posse de estado de filho, por exemplo.

    Essa sacralização do resultado do DNA flexibilizou inclusive a coisa julgada, mitigando sua imutabilidade, uma vez que tornou possível de ser aceito novo ajuizamento de ação de estado, com as mesmas partes, pedido e causa de pedir, caso uma primeira ação, anteriormente ajuizada, não tivesse sido julgada com base nesse exame, na época ainda indisponível. Certo é que a coisa julgada serve à segurança, sendo necessária à própria convivência social, e que permitir que o magistrado abrisse as comportas dos feitos já julgados para rever suas decisões sobre os conflitos seria, talvez, instalar o caos social, mas a justiça passou a ser entendida como sendo superior à segurança, tendo em vista ser uma pré-condição da própria liberdade, e, por isto, com o progresso da ciência jurídica, buscou-se, cada vez mais, substituir a "verdade ficta" pela "verdade real":

    "A regra da coisa julgada, válida para o tempo em que não se conhecia prova segura da filiação, e por isso dependente de ficções, não pode ser mantida contra a evidência da verdade que se extrai do exame de DNA, pois a ninguém interessa - nem aos filhos, nem aos pais, nem à sociedade - que o registro seja a negação da realidade".[6]

    Para alguns autores e julgadores, entretanto, isto só seria possível caso a ação tivesse sido julgada improcedente por falta de provas, tanto para afirmar quanto para excluir a paternidade, fazendo, assim, coisa julgada apenas formal, e não material.[7] Caso na primeira ação tivesse ficado estabelecida a paternidade, seria inadmissível outra ação para destituí-la, ainda que se apresentasse o resultado negativo do DNA, uma vez que isto afrontaria diretamente a dignidade da pessoa humana, a fragilizando e tornando instáveis as relações familiares, na medida em que se afirmasse em um momento uma paternidade, para negá-la no momento seguinte, independente da vontade do filho.

    Todo o exposto indica que a distinção entre o ato de gerar e o ato de ser pai, feita no momento da constituição da paternidade pela adoção ou inseminação artificial heteróloga expressamente autorizada, não vigora no momento da desconstituição, quando as duas coisas são equiparadas. A prova da impotência para gerar (impotentia generandi) ou o exame de DNA eliminam cabalmente a presunção de paternidade, como se a verdade biológica fosse uma prova decisiva para o estabelecimento da verdade real sobre a filiação. Também na ação de investigação de paternidade, é o critério biológico que se busca para estabelecer o vínculo paterno-filial.

    O art. 1604 do Código Civil prevê a possibilidade de pessoa interessada reivindicar estado contrário ao estabelecido em certidão de nascimento, desde que se prove seu erro ou falsidade. Isto permite, por exemplo, que o pai registral busque excluir a própria paternidade, provando a ausência da concepção. O mero fato de constar como pai, no registro, alguém que não o seja, biologicamente falando, tem sido razão para que muitos o considerem falso ou eivado de erro, permitindo isto que tal registro seja impugnado e aquela "falsa" paternidade seja, consequentemente, denegada, a qualquer tempo. Mas será isto tão simples assim? Deve a Justiça prestigiar sempre a paternidade biológica, almejando que haja uma coincidência absoluta entre ela e a jurídica? Mesmo quando o título falso foi gerado pelo próprio pai registral, estando este consciente da ausência do vínculo genético entre ele e o filho que perfilhou? Não afrontaria, este posicionamento, a estabilidade das relações de filiação?

    Adotando esse entendimento, o novo Código acaba resumindo o problema da filiação ao vínculo biológico, reduzindo-a e esgotando-a em uma fórmula matemática (resultado de DNA positivo = paternidade), e desconsiderando totalmente os vínculos formados pela convivência e pelo afeto, mesmo quando estes se constroem tendo por base uma paternidade juridicamente estabelecida, como ocorre na adoção à brasileira, por exemplo, onde o status da filiação é estabelecido com base no reconhecimento, mesmo sem que o perfilhante seja pai ou mãe biológico daquele a quem registra como filho.

    Essa crescente aproximação entre a verdade biológica e a verdade jurídica torna cada vez mais difícil a compreensão da diferença existente entre o estado de filiação e a origem biológica, que durante tanto tempo pareceram coincidir, mas que hoje, graças às evoluções socioculturais e biotecnológicas, podem finalmente ser percebidas de maneiras bastante distintas e independentes.

    Necessário é que se faça toda uma reavaliação dos conceitos em torno da filiação, buscando-se encontrar a verdadeira fonte da paternidade / maternidade, para que se estabeleça qual dos critérios deve prevalecer para sua determinação, em caso de existência de conflito ou dissonância entre eles. Nem sempre é a existência ou não do vínculo biológico que deve nortear a decisão. Em verdade, decisões calcadas exclusivamente no 'critério biologista' merecem questionamento, uma vez que o melhor caminho parece ser a busca de equilíbrio entre os critérios da filiação, de forma a garantir uma conformidade maior aos novos valores norteadores das relações familiares.

    "De verdade proibida, a 'voz do sangue' resta reputado o elemento definidor da relação paterno-filial; paradoxalmente, resultados injustos, similares àqueles derivados do sistema clássico, serão obtidos, eis que a questão central está no equilíbrio dos critérios de estabelecimento da filiação e não na incontrolada supremacia de um sobre o outro."[8]

    Chega a ser irônico pensar que, se no regime anterior, do Código Civil de 1916, filhos matrimoniais eram protegidos de todas as formas, hoje, no regime instaurado pelo novo código, eles vivem inseguros, desestabilizados, expostos por tempo indefinido a uma situação de ameaça, podendo sua paternidade ser contestada a qualquer tempo, caso o (ex-) marido de sua mãe resolva, por um motivo qualquer, impugnar o registro que não esteja conforme o resultado do DNA. Não importam sequer os anos de convivência e afeto que ajudaram a construir aquela relação paterno-filial e a própria subjetividade daquele filho: o vínculo paterno-filial é facilmente elidido pela vontade paterna, com a demonstração da falta de consanguinidade. Neste caso, pai é equiparado a genitor, e a filiação é simplesmente desconstituída.

    Cumpre observar que a falta de limites para a contestação da paternidade pelo marido acabou criando contradições dentro do sistema jurídico, tendo em vista que, quando o filho é extramatrimonial, uma vez que a paternidade tenha sido reconhecida de forma voluntária, ela se torna irrevogável, por força da Lei 8560/92, a menos que se comprove ter havido vício de consentimento, como ocorre nos atos jurídicos em geral, e, uma vez que o reconhecimento tenha se dado por sentença judicial, ela se torna também imutável, por força da coisa julgada. Há, portanto, uma maior segurança jurídica para essa filiação. Por que esta garantia de 'paternidade irrevogável' seria dada aos filhos reconhecidos e não aos presumidos, quando é normalmente o próprio pai o declarante do ato registral?

    Reza o Código Civil de 2002 que, na falta ou defeito do termo de nascimento, a filiação pode ser provada por qualquer meio admissível em Direito. Entende a melhor doutrina que isto incluiria a posse do estado de filho, embora esta não possa, em nosso país, ser usada como substituta do reconhecimento voluntário ou judicial da filiação. Ainda assim, a existência da possibilidade de utilização da posse do estado de filho como meio de prova da filiação, no caso de falta ou defeito do registro, é, por si só, um reconhecimento da importância dos vínculos psico-sócio-afetivos nessa relação.

    Outro momento em que o legislador opta pela prevalência do critério sócio-afetivo sobre o biológico para o estabelecimento do vínculo paterno-filial é quando prevê a constituição de parentesco civil, quer pela adoção, quer pela inseminação artificial heteróloga expressamente consentida. Em qualquer dos dois casos, prescinde-se totalmente do vínculo biológico para que haja o reconhecimento da relação paterno-filial.

    Ao mesmo tempo, toda a estrutura da averiguação de paternidade está assentada apenas nos laços biológicos, facilitado que foi seu conhecimento pela descoberta do DNA, e o art. 1616 do CC/2002 prevê a possibilidade de o juiz, ao julgar uma ação de investigação de paternidade que resulte em um reconhecimento forçado da filiação do sujeito, ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia do pai que havia antes recusado esta qualidade, do que decorre um completo descompasso entre os aspectos biológico-jurídico e sócio-afetivo daquela relação, limitando-se a paternidade à responsabilidade patrimonial.

    Entretanto, ao que parece, a verdade biológica pode não ser a "verdadeira" paternidade, tendo em vista que, muito mais do que um elo genético, a paternidade é um fator cultural, não bastando o critério biológico para preencher o conteúdo dessa relação:

    "a paternidade não é um fato da natureza, mas antes, um fato cultural. (...) paternidade é uma função exercida, ou um lugar ocupado por alguém que não é necessariamente o pai biológico. (...) O Direito brasileiro já deveria ter entendido que, por mais que se queira atribuir uma paternidade pela via do laço biológico, ele jamais conseguirá impor que o genitor se torne pai.(...) a paternidade em seu sentido mais profundo e real está acima dos laços sanguíneos. Um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será o pai. Por isto podemos dizer que a verdadeira paternidade é adotiva e está ligada à função" [9]

    "O filho é mais que um descendente genético, e se revela numa relação construída no afeto cotidiano. Em determinados casos, a verdade biológica cede espaço à 'verdade do coração'. Na construção da nova família, deve se procurar equilibrar essas duas vertentes, a relação biológica e a relação sócio-afetiva." [10]

    Tendo em vista todo exposto, mister se faz distinguir duas situações fáticas: o marido que, enganado pela mulher, descobre, depois de alguns anos, não ser o genitor dos filhos que ela gerou, e o homem que, sabendo da inexistência de vínculo biológico, assume juridicamente a paternidade dos filhos de uma mulher, permitindo que se estabeleça a posse de estado de filho, consolidando o vínculo sócio-afetivo, e vem, depois de alguns anos, requerer a desconstituição jurídica dessa paternidade, alegando a falta de fundamento genético.

    Parece-me essencial, para responder adequadamente a ambos os casos, considerar o comportamento do pai registral. Se ele, mesmo sabendo que não era seu descendente biológico, reconheceu, cuidou e amou o filho por tempo suficiente para criar nele uma história de vida que passou a integrar sua identidade, de modo que acarretaria ofensa irreparável a súbita retirada do status de filiação, não poderíamos entender que houve aí um reconhecimento tácito da paternidade, que consolidou aquele vínculo jurídico, ainda que desbiologizado? Seria correto o Estado tutelar o interesse individual desse pai, possibilitando que ele descarte o filho, simplesmente por ter decidido que aquele vínculo não lhe é mais conveniente? Admitir que ele possa agora negar uma paternidade a que se autovinculou, faltando a um compromisso outrora assumido, não seria dar importância exclusivamente ao dado biológico, que nem sempre é o que melhor satisfaz o interesse da criança?

    Entendendo que somente o homem que, de boa-fé, pensando realmente ser o genitor, assumiu a paternidade de uma criança, comportando-se como seu pai, merece tutela do Estado, no momento em que procura desconstituir aquela falsa paternidade, Vencelau[11] faz uma proposta bastante coerente: de se aplicar o princípio da vedação do venire contra factum proprium (a ninguém é permitido ir contra os próprios atos) em todos os casos onde um adulto, ciente da inexistência de vínculo genético entre ele e uma criança, tenha aderido à sua paternidade/maternidade por qualquer meio, seja acatando a presunção legal sem contestação por tempo suficiente para que seja caracterizada a posse de estado de filho (reconhecimento tácito), seja reconhecendo expressamente aquela criança como sua filha, e, num momento posterior, venha a agir em contradição com o comportamento assumido anteriormente, visando a desconstituir a paternidade/maternidade antes assumida, sem se preocupar com os danos que esta sua atitude causará ao filho, que construiu sua identidade baseada naquela filiação estabelecida. Danos estes que vão muito além dos materiais.

    Nesses casos, sugere a autora que o direito do pretenso pai de propor a ação desconstitutiva não seja tutelado, sendo restrito pela simples aplicação daquele princípio, importado do Direito obrigacional, buscando-se, dessa forma, o atendimento ao "melhor interesse do filho", em analogia ao "melhor interesse da criança". Segundo ela, não deve ter procedência a ação movida por um pai registral que, sabendo que o filho não era seu, o assumiu, compactuando com a falsidade do registro, que agora vem alegar, para desconstituir sua paternidade. Neste caso, ela opina que, norteando-se pela preservação do interesse do filho, o Judiciário deveria decidir contra o dado biológico, negando ao pai registral o direito de impugnar o registro, e conservando o estado de filiação adquirido e fortalecido pela convivência e pelos laços de interdependência afetiva.

    A adoção do princípio da vedação ao venire contra factum proprium como parâmetro interpretativo, neste caso, é, além disso, a forma concebida pela autora para resolver o problema da aparente contradição à igualdade da filiação prevista constitucionalmente, percebida por alguns doutrinadores, ao verificarem que, pela perspectiva civil-constitucional, a estabilidade da relação paterno-filial do filho nascido fora do casamento é muito mais protegida que a do filho nascido dentro dele, devido à irrevogabilidade do reconhecimento voluntário.

    Defende a autora ainda que, por ser o titular e, portanto, maior interessado no seu próprio status de filiação, o filho deve ser o único beneficiado pela imprescritibilidade das ações que a seu estado digam respeito: somente as ações movidas por iniciativa dele devem ser consideradas imprescritíveis, quando tenham como resultado a desconstituição de uma paternidade estabelecida; para o pai, deve continuar a vigorar um prazo prescricional - o ideal, segundo ela, seria um prazo razoável que se iniciasse no momento em que o pai descobrisse não ser ele o genitor da criança -, só o ultrapassando, quando muito, caso a ação vise apenas à tutela positiva, dando início a um vínculo de filiação. Afinal, conforme argumenta a autora, não é possível que fique simplesmente ao arbítrio (e aos caprichos) do pai, definir se e até quando vai manter o vínculo de uma paternidade que sabe não ter fundo genético. Esta situação pode ser profundamente traumatizante para o filho. Além do mais, "quando se trata do status de filiação, é o próprio filho que pode dizer qual a sua verdade, ou, dito de outra forma, aquilo que melhor satisfaz o seu interesse."[12] Nem sempre é o dado biológico que o determina, ou que determina a paternidade. Normalmente, é o exercício de suas funções.

    Além de sustentar a importância de se verificar se o autor da ação é ou não o titular do interesse tutelado, a autora também faz distinção entre ações positivas e ações negativas, considerando positivas aquelas que visam a uma declaração afirmativa de um estado, mesmo que, para tanto, um estado anterior precise ser desconstituído, e negativas aquelas que têm a finalidade de simplesmente desconstituir o estado de filiação estampado na certidão de nascimento da pessoa. Argumenta ela então que ações positivas são sempre imprescritíveis, tendo em vista que, na investigação de paternidade, é sempre o titular do estado de filiação o legitimado para propô-la, o fazendo para alcançar um estado que julga que satisfará melhor os seus interesses, e, na ação de reconhecimento de paternidade, há a necessidade de consentimento do filho para a admissão do reconhecimento que irá alterar o seu estado. As ações negativas, todavia, a seu ver, devem ser prescritíveis, sobretudo quando exercidas por alguém que não seja o titular do estado que se quer desconstituir, tendo em vista o caráter personalíssimo da filiação, que se liga à identidade e à própria dignidade daquele sujeito. Deste modo, apesar de o pai registral poder, nos casos previstos em lei, negar a paternidade juridicamente estabelecida, não deveria esta ação, consoante a autora, ser considerada imprescritível, posto que visa à alteração do estado de outrem, e não do seu autor. Em suma, para Vencelau, sempre que a ação visar a algo que vai ao encontro do interesse do filho deve ser considerada imprescritível, mas quando ela visar a algo prejudicial ao interesse dele, deve vigorar a prescritibilidade.

    Além do pai registral, outros personagens podem buscar a Justiça, com a pretensão de ver desconstituído o vínculo da paternidade presumida do marido da genitora: a própria mãe, representando o filho, como no exemplo dado no início do subcapítulo (Talvez essa legitimidade do representante legal do filho para a propositura de ação de investigação de paternidade, em nome do representado, quando já existe um pai registral, deva ser repensada, pois é preciso se reconhecer que muitas vezes não é a vontade do filho a manifestada, nem o seu interesse o perseguido), ou o pai biológico, que, mantendo ou não relacionamento amoroso com a mãe da criança, deseja ver reconhecido o seu vínculo com aquele filho.

    Nem sempre, em ações de estado intentadas por quem não seja o filho, é recomendável que o juiz decida a favor do dado biológico, que, além de tudo, não possui nenhum "selo de garantia de qualidade", havendo numerosos exemplos de rejeição e maus tratos de filhos por seus genitores, já que os laços de sangue e os laços de amor nem sempre andam juntos. É conveniente que se considere em relação a qual dos pretensos pais existe a posse de estado de filho, privilegiando-se o laço afetivo capaz de ratificar e consolidar o título que se busca desconstituir ou constituir. Se é certo que sua ausência, por si só, não afasta a presunção da paternidade, ela é, sem dúvida, um instrumento bastante útil na solução de um conflito de paternidade, já que, por seu intermédio, é possível elidir uma ficção jurídica, em prol da real afetividade, que pode ser o elo que se busca para se verificar o melhor interesse daquele filho.

    No conflito entre paternidade jurídica e paternidade biológica, situações as mais variadas podem ocorrer, sendo impraticável prever todos os casos possíveis, e mais ainda ter uma solução padrão, como uma fórmula matemática. Apesar de a existência do laço afetivo não ser suficiente para forçar o reconhecimento da filiação, certamente não há conveniência de o sistema jurídico se submeter à ordem biológica a ponto de perder a dimensão organizativa social, os valores familiares e, sobretudo, os interesses do filho e os aspectos de sua dignidade enquanto pessoa humana, protegendo atos ilícitos, negligências e artimanhas utilizadas em benefício próprio.

    A juíza Maria de Isabel Pereira da Costa, da 3ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, julgou uma ação negatória de paternidade proposta por um homem que havia vivido em união estável com uma mulher por quatro anos, durante a qual, "por espírito altruísta", resolveu registrar como seu o filho desta mulher, fruto de um relacionamento anterior, a quem conheceu quando tinha dois anos de idade. Com o término do relacionamento amoroso, o autor buscou a Justiça para desconstituir aquele vínculo, tendo em vista a ausência de fundamento biológico. Na decisão, a juíza concluiu pelo indeferimento do pedido, tendo em vista o fato de o autor ter assumido a paternidade da criança de forma voluntária e em comum acordo com a mãe, desenvolvendo uma paternidade sócio-afetiva em relação à criança, não podendo desconstituí-la apenas para se furtar aos encargos dela provenientes; e o melhor interesse do filho, que restaria imensamente contrariado, caso fosse deferida a desconstituição daquela paternidade, sendo ele tratado como mercadoria, reduzido a objeto mero de consumo que ao autor não mais interessasse. Ressalvou a juíza o direito de o réu (o filho) revogar o vínculo, quando atingisse a maioridade, caso o desejasse, na forma e no prazo da lei.[13]

    Decisão semelhante foi proferida pelo TJ-RS[14], ao julgar apelação cível proposta em face de um homem que também havia assumido voluntariamente o filho de sua companheira, que sabia não ter sido por ele gerado, mas tentou anular o registro, vinte e um anos depois, quando a união estável que mantinha com a genitora do rapaz chegou ao fim, sob alegação de inexistência de vínculo biológico entre eles. Apesar de o relator opinar pela confirmação da sentença de primeiro grau, baseado no princípio da verdade biológica, o voto vencedor, proferido pela então Desembargadora Maria Berenice Dias, entendeu não ser possível a anulação do registro, tendo em vista que a posse de estado de filho por parte do réu, criada livre e espontaneamente pelo próprio autor, tiraria a importância da verdade biológica, devendo-se atentar para as conseqüências que a desconstituição daquela paternidade acarretaria para aquele que ostentara durante tantos anos a condição de filho.

    A França realizou, em 1972, profunda reforma em seu Código Civil e, principalmente, no Direito de Filiação. Entre as alterações feitas, possibilitou-se rechaçar a filiação fictícia, estabelecida pela presunção pater is est, com base na verdade biológica, desde que não houvesse posse de estado de filho em relação ao pai registral. O artigo 322 daquele Código prevê que o registro de nascimento aliado à posse do estado de filho torna a filiação inatacável, sendo impossível, portanto, outra filiação ser estabelecida. Ao mesmo tempo, segundo aquele artigo, a ausência da posse de estado de filho torna a filiação apenas baseada no título jurídico bastante frágil, podendo ser questionada por qualquer homem que deseje ver reconhecido o seu vínculo com a criança. O Código Civil Boliviano tem disposição semelhante (art. 192). Nesses países, portanto, a posse de estado prepondera tanto sobre a paternidade biológica quanto sobre a jurídica.

    Ser filho de alguém é muito mais do que 'sair da barriga'! Tem a ver com o diaadia, com uma aprendizagem que só a convivência permite. Por isso, não se pode reduzir nem a maternidade, nem a paternidade ao dado biológico, desprestigiando, por exemplo, a identidade construída pelo filho durante o tempo em que o nome do (ex-) marido de sua mãe esteve estampado em sua certidão de nascimento, e em que era reconhecido por todos como filho dele. A posse de estado de filho indica, em geral, a "verdadeira" filiação. Deve-se, pois, investigar, com o auxílio de uma equipe interdisciplinar, qual é a paternidade sócio-afetiva e deve-se ponderá-la com o critério biológico, na busca do Melhor Interesse do Filho, que, por analogia ao Melhor Interesse da Criança, deve ter supremacia absoluta, quando a questão disser respeito à filiação. É esse o valor que deve ser reconhecido e tutelado juridicamente, mesmo enquanto as reformas legislativas não ocorrem.

    2. DO DIREITO DE TODA PESSOA HUMANA AO CONHECIMENTO DE SUA ORIGEM GENÉTICA:

    O artigo 342 do Código Civil Francês dispõe, desde 1972, que "todo descendente natural cuja filiação paterna não esteja legalmente estabelecida pode reclamar subsídios daquele que manteve relações conjugais com sua mãe durante o período legal da concepção". Não se trata aqui de verificar a paternidade para estabelecer a filiação, mas sim de proteger a criança, dando-lhe amparo material, por meio dos subsídios (alimentos) prestados por seu genitor. (Em verdade, no Direito Francês, não é preciso que o réu seja efetivamente o genitor, mas apenas que tenha a possibilidade de sê-lo. Entende-se que nem mesmo a conduta imoral da genitora que tenha freqüentado sexualmente uma pluralidade de amantes na época da concepção, retira o direito da criança a este amparo financeiro.) Há, portanto, a opção de investigar a paternidade ou requerer apenas subsídios, baseados na vinculação genética (ou na possibilidade dela).

    O Projeto de Lei nº 2285/2007, conhecido como Estatuto das Família, traz dispositivo de conteúdo semelhante:

    "Art. 77 - É admissível a qualquer pessoa, cuja filiação seja proveniente de adoção, filiação sócio-afetiva, posse de estado ou inseminação artificial heteróloga, o conhecimento de seu vínculo genético, sem gerar relação de parentesco. Parágrafo único - O ascendente genético pode responder por subsídios necessários à manutenção do descendente, salvo em caso de inseminação artificial heteróloga."

    Desta forma, vindo o projeto a se tornar lei, haverá também em nosso país regra expressa que permitirá a uma pessoa exigir de outra o reconhecimento de sua origem genética, sem que isto influencie o estabelecimento da paternidade, constituindo ou alterando o estado de filho original e afetando seus vínculos de parentesco.

    É muito bem-vinda esta possibilidade, já que, apesar de estar intimamente ligada à questão da origem biológica, por ter a existência do vínculo genético como critério preponderante para a declaração da filiação, a ação de investigação de paternidade, hoje existente, tem como objetivo ver declarado o vínculo de parentesco existente entre as partes. Nesse tipo de ação (Investigação de Paternidade), no caso de o investigante já possuir registro de nascimento onde conste declarada a paternidade de um outro, mesmo que exista, em relação a este outro, a posse do estado de filho, prevalece o interesse do investigante que busca ver reconhecida a vinculação do seu estado de filiação a seu pai biológico, já que este é um direito estritamente pessoal, mas, como corolário lógico da procedência do pedido, o primeiro registro é cancelado, e aquela paternidade desconstituída, mesmo que não tenha sido isto requerido na ação - o STJ já considerou desnecessária a cumulação dos dois pedidos, já que um é tido como conseqüência irremediável do outro.

    A ação de reconhecimento de origem genética, como prevista no Estatuto das Famílias, visaria à tutela distinta, tendo como fim apenas o conhecimento do genitor / da genitora, sem que, entretanto, isso gerasse qualquer alteração nos nomes constantes como pais no registro de nascimento do autor. O fato de as relações baseadas no afeto passarem a ser juridicamente tuteladas, distinguindo-se pais de genitores, não quer de forma alguma dizer que a paternidade biológica deva ser desconsiderada pelo Direito. Ao contrário: o interesse do filho ao conhecimento de sua origem genética deve ser sempre tutelado, ainda que isto não implique, necessariamente, na alteração do status do filho.

    Em um Estado cuja Constituição tutela o planejamento familiar e a paternidade responsável, uma pessoa não pode gerar uma nova vida e abandoná-la à própria sorte. Este princípio, que talvez fosse, nesse aspecto, melhor denominado de "procriação responsável", diz respeito, entre outros pontos, à noção, aos poucos desenvolvida, da impossibilidade de existência de relação biológica entre um adulto e uma criança sem o estabelecimento do correspondente status de filiação. Tal noção não é absoluta, admitindo ressalvas, como no caso da adoção e da doação de sêmen, mas vem afirmar a responsabilidade masculina pelas crianças concebidas, por sua reprodução biológica, evitando que uma criança permaneça sem o pai declarado quando é possível reconhecer o seu genitor, a quem então é imposta a responsabilidade paterna, ainda que não desejada. A procriação, desta forma, continua sendo fonte de responsabilidade civil, ao menos para fins de alimentos e sucessão hereditária.

    Não há, porém, que se confundir mais o "Direito à paternidade" com o "Direito da personalidade ao conhecimento da origem genética", já reconhecido, por exemplo, na Alemanha, Espanha ou França, sem que por isso gere qualquer efeito sobre a relação de parentesco. Nesses países, se faz uma interessante distinção entre a paternidade do genitor, para fins de subsídios meramente, e a paternidade daquele que efetivamente detém "a posse de estado de pai", exercendo realmente esta função.[15] Talvez fosse conveniente adotá-la em outras partes do mundo. Entretanto,

    "Não importa que não haja norma específica prevendo uma ação cujo objeto seja o conhecimento da origem genética, sem que isto implique no estado de filiação, pois a tutela da dignidade humana deve ser abrigada pela norma constitucional prevista no art. 1º, III, chamada por Gustavo Tepedino de 'verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana'. Por conseguinte, todas as situações voltadas para o respeito à dignidade humana merecem proteção do Direito. Se não há norma específica, por meio da cláusula geral de tutela da pessoa humana".[16]

    Sem dúvida que a dignidade da pessoa humana, valor máximo do ordenamento, deve ser resguardada sempre. Por isso, qualquer situação que reflita essa obrigação merece ser tutelada pelo Direito.

    "Se uma interpretação construtiva da Carta Magna nos obriga a concluir que toda pessoa tem direito de descobrir qual é a sua origem, de saber qual é a sua ascendência biológica, de ver revelada sua identidade, seus laços genéticos, as dificuldades e obstáculos, os estorvos e embaraços que representavam as hipóteses de admissibilidade da ação não podem subsistir".[17]

    Diante disso, o direito do sujeito ao conhecimento de sua ascendência biológica não pode ser recusado. Mesmo porque, além dessa necessidade subjetiva, o desconhecimento da origem genética pode trazer outros problemas, inclusive de cunho legal:

    "... a pessoa concebida por inseminação artificial heteróloga (com doador anônimo) poderá vir a se unir sexualmente, no futuro, justamente, ao seu pai ou mãe biológica, criando a possibilidade da geração de seres com mazelas biológicas resultantes de tal união. Também será viável a união entre a pessoa fruto de técnica de reprodução assistida e outra, que, apesar de ignorarem, têm laços sanguíneos, como 'irmãos' biológicos ou genéticos. (...) É mister a preservação de sua condição de genitor biológico, tal como ocorre na adoção, com o objetivo de impor-lhe restrições no tocante à prática de alguns atos da vida civil, como a constituição da união sexual, no futuro, com seu filho biológico".[18]

    Cumpre aqui citar ainda a opinião de Vencelau[19] acerca da possibilidade de investigação de paternidade daqueles que apenas quiseram contribuir biologicamente para a geração de uma pessoa, sem em nenhum momento direcionar sua vontade para a paternidade, como é o caso dos doadores de sêmen, por exemplo. Diz a autora que, na diferenciação entre ser pai e ser mero genitor, há que ser levada em conta a existência da vontade de ser pai, ainda que à semelhança do dolo eventual, isto é, quando essa vontade se revela apenas no momento do ato sexual, quando se assume o risco da procriação. Defende ela que é a vontade que determina o parentesco, na reprodução assistida heteróloga. A procriação deixa de ser natural e se submete à vontade humana, contrariando a ordem decorrente da verdade biológica, a alterando e desconsiderando, em prol da verdade afetiva, e fazendo surgir um outro tipo de parentesco - o voluntário -, que se alia ao adotivo para compor o que o legislador classificou como parentesco civil.

    Sendo, portanto, o "laço biológico, por si só, insuficiente para criar qualquer vínculo de paternidade, e incapaz de gerar uma relação paterno-filial"[20], cujo verdadeiro cimento são as trocas afetivas feitas na convivência diária, tanto a pessoa que simplesmente doa o sêmen (ou o óvulo) para inseminação, praticando um ato de altruísmo que possibilitará que outra pessoa seja pai (ou mãe) de seu fruto genético, quanto aquela que entrega o filho para adoção, manifestam sua vontade contrária a de ser pai ou mãe. Já o casal adotante: o cônjuge ou companheiro da mulher inseminada artificialmente com o sêmen de outro homem; a cônjuge ou companheira do homem que teve que se utilizar do óvulo ou do ventre de outra mulher para gerar os próprios filhos; ou a pessoa que recebe como seus os filhos de um relacionamento anterior do cônjuge ou companheiro, desde que desempenhem com continuidade as funções próprias da paternidade/maternidade, manifestaram seu desejo de sê-lo, e é justo que assim sejam considerados, ainda que lhes falte o vínculo genético.

    Assim, defende a autora que, nos casos em que esta vontade está desde o princípio ausente, não haveria a possibilidade de o filho reivindicar essa paternidade de seu ascendente, embora isto não signifique que seu direito sagrado de conhecer sua origem biológica, constituinte que é de sua identidade e estruturação psíquica, não deva ser tutelado, mesmo não se alterando seu estado de filiação, eis que nem sempre paternidade e origem biológica confluem ou podem ser inferidas uma da outra. "A paternidade não é apenas um 'dado': a paternidade se faz" .[21] Ela é uma função pessoal e social, que apenas existe se exercida.

    "O doador, portanto, será apenas genitor biológico (genético), despido de direitos e deveres em relação à criança, produto da concepção medicamente assistida, submetendo-se, no entanto, aos efeitos jurídicos negativos, comparativamente a um estranho, em relação à pessoa resultante do seu gameta. Desse modo, diante da sua própria vontade, no ato da doação do embrião ou do gameta, o genitor biológico estaria renunciando a qualquer direito em relação à criança a ser concebida através de técnica de reprodução assistida, também não sofrendo deveres, apenas restrições peculiares à sua condição de genitor. Do mesmo modo, o casal que se dispôs a perpetuar a família através de método de reprodução assistida, sem fornecimento de material fecundante próprio, tendo manifestado expresso consentimento, não poderá esquivar-se dos efeitos jurídicos decorrentes do vínculo parental constituído." [22]

    Parece, pois, irretocável esta opinião, que diferencia muito bem os dois aspectos constitutivos da personalidade do ser humano, sem confundir nem deixar de tutelar a nenhum deles, o que atende perfeitamente aos princípios da supremacia do interesse do filho e do respeito à dignidade humana, que, como já dito, bem poderiam fundamentar qualquer ação nesse sentido.

    Adotando este posicionamento, o STJ proferiu, em 2000, acórdão no qual reconheceu o direito de uma pessoa adotada investigar a paternidade biológica de outra, sem que o resultado dessa investigação interferisse no seu status de filho do adotante[23]. Admitiu, desta forma, o Tribunal, que a adoção permanecesse inalterada, não obstante fosse declarada a paternidade biológica do pai natural, considerando a necessidade psicológica do sujeito de conhecer a verdade sobre sua identidade e sobre sua origem genética. Houve, desta forma, uma "graduação da paternidade, dela excluindo qualquer seqüela jurídica quando revelada a verdade biológica apenas para conhecimento."[24] Admitiu o STJ, nesta hipótese, a possibilidade de existência de uma multiplicidade de pais, reconhecendo dois interesses merecedores de tutela: o conhecimento da ascendência consanguínea - direito à identidade genética, do qual decorre a necessidade psicológica de conhecer sua origem biológica -, e a posse do estado de filho - que concretizava o direito à identidade familiar, que em nada havia sido alterada pelo estabelecimento da primeira.

    Cumpre ressaltar que, em se tratando da paternidade do doador de sêmen, não há em nosso país norma proibitiva de sua investigação. Há apenas uma norma ética garantidora de sigilo, do Conselho Federal de Medicina (Resolução n 1358/92). Estas regulamentações, entretanto, são juridicamente "ineficazes, destituídas de qualquer cogência, podem ser facilmente contornáveis e, portanto, não permitem se atingir o objetivo visado"[25], até porque são "fruto de decisões tomadas por órgão corporativo, sem qualquer caráter representativo do corpo social."[26]

    "Assim, há, em alguns textos normativos de países, previsão acerca de exceções ao anonimato, ora para prevenir ou curar doenças genéticas, ora para reconhecer o interesse da pessoa gerada por meio da reprodução assistida em conhecer a sua ascendência (identidade) biológica, mas sem qualquer atribuição de benefícios ou vantagens econômicas. Assim, em observância aos princípios, objetivos e fundamentos de Direito de Família, eventualmente o sigilo poderá ser afastado, cedendo lugar à proteção de interesses de maior relevância".[27]

    Não por outra razão, a meu ver, chocante e contrastante é a proposta do PL 2747/08, que busca instituir o Parto Anônimo no Brasil. Apesar de, compreensivelmente, seus defensores visarem, com ela, à redução do número de recém-nascidos abandonados em condições indignas e subumanas, além da garantia de um atendimento pré e perinatal humanizado e de qualidade, que considere as dimensões sociais, familiares e afetivas da gestante, minimizando seu sofrimento psicológico ou moral por não desejar ser mãe ou não se sentir capaz de manter seu filho consigo, o PL, em sua forma original, desconsidera totalmente o direito da criança a conhecer sua origem genética, já que torna legal o anonimato de sua genitora, garantindo o total sigilo desta informação. Além de afrontar um direito fundamental do filho, que se enquadra entre os seus direitos de personalidade, o Projeto de Lei também desconsidera direitos de outras pessoas envolvidas: o pai e a família extesa, retirando da criança, pelo mero arbítrio de sua genitora, o direito à convivência familiar, sem que ninguém mais possa se manifestar a este respeito!

    Em sentido exatamente oposto, foi aprovada, em julho de 2009, a lei 12.010/09, conhecida como Nova Lei de Adoção, que traz dispositivo alterando o artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que passou, desde então, a vigorar com o seguinte texto:

    "Art. 48 - O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

    Parágrafo único - O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica"

    Todavia, reconhecendo-se o direito ao conhecimento da origem genética como merecedor de tutela, existe pelo menos um grande obstáculo à concretização desta: enquanto o estabelecimento da paternidade admite todos os meios de prova existentes no Direito, o reconhecimento da origem genética só é possível com o exame científico, única prova que dá certeza sobre a existência ou não de vínculo biológico entre os supostos pai e filho, e, como se sabe, não é possível, em nosso país, forçar ninguém a se submeter a este tipo de exame. Em geral, juízes têm lidado com a recusa do suposto pai em realizar o exame genético, considerando-a desde simples indício que leva à presunção da paternidade até ato análogo à confissão, analisando-a sempre de maneira desfavorável para o réu.

    3. Da HOMOPARENTALIDADE

    Já algum tempo tem sido forjado, no mundo jurídico, um novo conceito de "família", diferente daquele defendido pelo Código Civil de 1916, que tinha uma visão bem restrita à família provinda do matrimônio. A elasticidade da interpretação deste termo vem, sem dúvida, em encontro do Melhor Interesse da Criança, que se beneficia ao ver sua família amparada pelo Estado, independentemente de sua configuração.

    Assim, desde a Constituição, reconhecem-se como entidades familiares, merecedoras de especial proteção, não só a família matrimonializada, como também a oriunda de união estável entre homem e mulher e a monoparental, e defendem alguns autores que estes tipos de família, elencados no artigo 226 de nossa Carta Magna, sejam apenas alguns exemplos lembrados pelo Constituinte, não esgotando de nenhuma forma a multiplicidade de famílias existentes no mundo, todas merecedoras da dita proteção, desde que cumpram adequadamente as funções de transmissão da cultura e formação dos sujeitos que a compõem.

    Família seria, deste modo, um lugar subjetivo, ao qual se recorre sempre que se precisa de referências, apoio e conforto para lidar com as questões que a vida apresenta, não podendo a Lei distinguir e garantir proteção apenas a determinados modelos, mas devendo legitimar o direito de cada pessoa, usufruindo de sua liberdade, construir o seu próprio.

    No lastro desta discussão, vem ganhando visibilidade a família formada por duas pessoas do mesmo sexo que, portando-se e considerando-se como um casal, venham a compartilhar suas vidas e a construir, juntas, seu caminho, podendo constituir patrimônio e criar filhos. Essas crianças, no entanto, embora criadas como filhos pelas duas pessoas, não poderiam, até bem pouco tempo, ver juridicamente reconhecidos os laços filiais com ambas, posto que, a adoção buscava sempre imitar a família natural, evitando assim causar constrangimentos e traumas sociais aos adotados, e, na natureza, ninguém tem dois pais ou duas mães, havendo, por esta razão, espaço para um só pai e uma só mãe nas certidões de nascimento.

    Até bem pouco tempo, mesmo que, no mundo dos fatos, ambas as pessoas ocupassem o espaço psicoparental da criança, sendo percebidas por ela como pais ou mães, e mesmo que a sociedade à sua volta já identificasse naquela família essa configuração diferenciada, ainda assim, somente um dos parceiros / uma das parceiras podia ter oficializado aquele vínculo, fosse ele formado pela paternidade/maternidade biológica, fosse constituído através de adoção.

    Já era pacificado que o fato de a pessoa ser homossexual não impediria a adoção, entretanto, somente um deles poderia adotar; o outro permaneceria como companheiro do pai, mantendo com a criança uma relação jurídica semelhante à do padrasto. Isto porque o artigo 1622 do Código Civil veda expressamente a adoção conjunta, feita por duas pessoas, com exceção de serem elas casadas ou viverem em união estável. Como tanto para o casamento como para a união estável a diferença de sexos entre os parceiros era considerada um dos elementos essenciais da existência do ato, a união homoafetiva não se encaixava em nenhum dos dois casos excepcionais, impossibilitando o pedido de adoção por ambos os parceiros.

    O TJ/RS, berço de várias inovações jurisprudenciais, sempre alerta para as mudanças e buscando dar uma interpretação às leis que contemplem as novas necessidades sociais, todavia, abriu precedente ao julgar uma apelação, confirmando a concessão da adoção de crianças a uma mulher homossexual, que mantinha relação afetiva há oito anos com a mãe adotiva das mesmas, desempenhando funções maternas em relação a elas, desde o seu nascimento. Isto, sem desconstituir o vínculo já existente entre sua parceira e as crianças, passando assim a figurarem ambas como mães dos adotandos, o que configurou uma adoção conjunta homossexual.

    A apelação, interposta pelo MP, argumentava que a adoção não se fazia possível, posto que estaria vedada pelo artigo 1622 do Código Civil e possibilitaria a constituição de uma família não reconhecida ainda juridicamente, nem pelas normas constitucionais, nem pelas infraconstitucionais, escapando também dos moldes da família biológica, que serve de modelo e referência para a adotiva.

    Reconhecendo a família homoafetiva como entidade familiar, merecedora de proteção estatal, como é já pacífico naquele Tribunal, e baseados em estudos psico-sociais que apontaram para o reconhecimento da posse de estado de filho dos adotados em relação à adotante e não demonstravam nenhum inconveniente na concessão da adoção, nem alguma possibilidade de ela gerar consequências desastrosas para os adotados, os julgadores abriram mão de preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de bases científicas e priorizaram o vínculo afetivo ali existente, garantindo aos adotados o direito à convivência familiar, sem deixar que o sexo ou a orientação sexual das adotantes se tornasse um impedimento para isto.

    Agindo assim, o TJ/RS filiou-se, mais uma vez, à tese de que família é uma sociedade de afeto, e que não pode o Poder Judiciário deixar de prestar tutela jurisdicional a um tipo de família por este não se constituir a partir de uma diversidade de sexos, pois marginalizar essas entidades familiares seria equivalente a estigmatizá-las e discriminá-las, privando-as de diversos direitos, entre os quais o da dignidade humana e o da igualdade. Por este motivo, entendeu que deveriam ser usados os mecanismos previstos em Lei, tais como a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, para suprir a lacuna existente diante da ausência de lei específica para o caso.

    Utilizando a analogia à União Estável, que, segundo afirmaram, é o instituto jurídico que mais se aproxima desse tipo de relação, já que também os parceiros homoafetivos são levados a uma comunhão de vida por um affectio conjugalis, e adotando a tese de que a proteção jurídica deve ser dispensada ao conteúdo (as relações ali desenvolvidas e as funções desempenhadas) e não à forma familiar, o Tribunal entendeu que famílias formadas por pessoas do mesmo sexo mereciam tratamento semelhante às demais, podendo gerar vínculos familiares semelhantes.

    Assim, ressaltando que paternidade e maternidade se formam mais no social, na circunstância de amar e servir, do que no biológico, no ato da procriação, o Tribunal manteve a decisão do juiz a quo, possibilitando que a família já existente no mundo dos fatos passasse também a constar no mundo jurídico como tal, e, com isto, concedendo àquelas crianças diversos direitos dos quais estariam excluídas se a decisão tivesse sido outra, tais como o direito à herança, à previdência, ao nome e à segurança jurídica e emocional de se verem reconhecidas filhas de ambas as mulheres que as criam e que lhes servem de referência maior na construção de sua personalidade.

    Em junho de 2009, o Exmo. Dr. Maurício Porfírio Rosa, juiz da Vara de Infância e Juventude de Goiânia, entendendo que a ausência de lei específica não pode implicar ausência de tutela de direitos, uma vez que existem mecanismos para suprir as lacunas legais e o juiz tem o dever de utilizá-los, abrindo caminho para que seja feita a justiça, também concedeu a adoção de uma criança de dois anos a um casal homoafetivo feminino, após destituir a autoridade parental de seus pais biológicos. Fundamentou ele a decisão no fato de as duas parceiras manterem há oito anos uma união pública, contínua e duradoura, análoga à união estável, e, por isto, merecedora do mesmo tratamento e da mesma proteção jurídica, especialmente porque, sendo a família entendida como um instrumento pelo qual se visa garantir a dignidade e o desenvolvimento de seus integrantes, não há como se recusar a tutela a nenhuma de suas formas, desde que identificadas pela mesma ratio, os mesmos fundamentos e a mesma função social.

    O Magistrado lembrou que o TSE já se pronunciara para impedir a candidatura de conviventes em relação homoafetiva, com o fundamento que os vínculos existentes entre eles seriam semelhantes aos que ocorrem no casamento, no concubinato ou na união estável, e que a Previdência adotara postura idêntica ao garantir o direito do convivente homoafetivo ao auxílio por morte de seu parceiro. Considerou também o juiz as informações contidas no laudo técnico, segundo o qual o casal dispunha de boa estrutura familiar, estabilidade econômica, e recursos necessários para oferecerem amor e carinho à criança, estando todos os requisitos legais objetivos devidamente cumpridos. Além disso, salientou que, desde dezembro de 2007, a criança já vivia na companhia das adotantes, sendo que uma delas já havia adotado, anos antes, seu irmão biológico, de modo que os dois ficariam, assim, reunidos, sendo criados juntos. Na sentença, o julgador determinou que, na certidão do registro, não houvesse discriminação quanto a qual das requerentes seria o pai e qual seria a mãe, declarando-se apenas ser a criança filha delas, e incluindo o nome dos ascendentes de ambas como seus avós.

    Outro caso que ganhou recentemente as manchetes dos principais jornais e revistas foi o do casal de lésbicas que, tendo usado a fertilização assistida para gerar gêmeos, contribuindo ambas para a concepção das crianças, já que foram implantados embriões produzidos com óvulos de uma no útero da outra, recorreu à Justiça para ter o direito de registrar as crianças em nome de ambas as mulheres, sendo as duas consideradas juridicamente suas mães. A advogada delas, a ex-desembargadora Maria Berenice Dias, tem ressaltado que isto viria ao encontro do Melhor Interesse das Crianças, pois lhes garantiria vários direitos, em relação a ambas as mães.

    No lastro desta história, a revista Época publicou, na edição de 1º de junho de 2009, reportagem sobre a família de duas psicanalistas que vivem em Blumenau e já conquistaram na Justiça, em dezembro de 2008, o direito ora pleiteado pelas clientes da Dra. Maria Berenice Dias: registraram seus filhos gêmeos no nome de ambas. Em seu caso, foi a decisão do juiz Cairo Roberto Rodrigues Madruga, da 8ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, que permitiu que constasse, na certidão dos gêmeos, serem eles filhos das duas - sem discriminação quanto ao papel de uma e de outra - e netos de seus ascendentes diretos. A sentença histórica reconheceu, pela primeira vez, o direito de uma mulher, sem nenhum vínculo biológico com a criança, ocupar um lugar parental, amparado e legitimado apenas pelo vínculo afetivo.

    As mães explicaram que não quiseram recorrer à adoção, como outros casais homoafetivos vinham fazendo, porque nenhuma das duas poderia adotar filhos que sempre foram delas, nascidos do desejo de ambas. Elas defenderam os direitos das crianças ao nome, à herança e ao amparo legal das duas, vendo reconhecida juridicamente a família a que pertencem, que "pode até ser nova, diferente, mas é uma família, sem dúvida". A advogada do casal, Dra. Ana Rita do Nascimento Jerusalinky, ressaltou que o processo social está caminhando para uma grande inclusão, que leva não ao fim, mas a uma revalorização da família, que não acabará nunca, se a sociedade não se deixar vencer por seus preconceitos.

    Em verdade, crianças são parte de um contexto onde família, sociedade e Estado interagem diretamente. Sua identidade pessoal vincula-se diretamente à de seu grupo familiar, que lhe fornece os elementos necessários para sua individualização como pessoa e para sua localização no mundo, fatores primordiais em seu desenvolvimento. Por esta razão, as decisões que interferem nesse seu grupo mais íntimo têm que ser ainda mais cuidadosamente pensadas e avaliadas, para que reflita, efetivamente, o seu Melhor Interesse.

    Se Estado, família e sociedade têm o compromisso de dar proteção integral a crianças e adolescentes, assumidas que são estas como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento, qualquer ação do Estado ou de seus agentes deve visar a assegurar o seu bem-estar. Para isto, é necessário que o Princípio do Melhor Interesse da Criança esteja sempre presente, como premissa, em todas as ações concernentes àquela parcela da população. A busca de soluções deve estar sempre centrada na criança.

    Para identificar o melhor interesse da criança em casos que envolvem a família, muito mais que a letra fria da lei ou os vínculos biológicos ou genéticos existentes, é preciso que sejam considerados os laços afetivos que a criança mantém com cada um, levando-se em conta o atendimento diário de suas necessidades biofísicas e psicológicas; o hábito desenvolvido na criança de receber de uma determinada pessoa amor e orientação; a habilidade e a capacidade desta pessoa de prover a criança com comida, abrigo, vestuário e assistência médica; e a preferência da criança. Também devem ser consideradas a estabilidade emocional, a suficiência econômica e a responsabilidade que o candidato demonstre ter em relação à criança, além de sua capacidade de promover-lhe o melhor interesse, provendo seu bem-estar no presente e no futuro. Os julgadores devem analisar cuidadosamente o caso, priorizando, além das necessidades, as relações de afinidade e afetividade, e as condições psicológicas e emocionais da criança.

    Considerando que a família é um grupo cultural, uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar, uma função, é perfeitamente possível que uma pessoa ocupe o lugar de pai ou de mãe, mesmo sem ser ascendente biológico da criança. No mundo atual, a paternidade / maternidade sócio-afetiva assume cada vez papel mais relevante na convivência familiar e no atendimento às necessidades de seus membros, sendo uma esperança e uma resposta às várias formas de abandono psíquico de milhares de crianças. O direito ao pai e à mãe, ainda que não biológicos, assim como à convivência com eles, é condição básica para que alguém possa se estruturar psiquicamente como sujeito.

    É importante ter-se em mente que as relações que a criança desenvolve desde o seu nascimento formam o alicerce de seu sistema de valores, de seu olhar para o mundo, de sua racionalidade, de seu futuro proceder com os demais, sendo a base de referência para quem ela será na vida, para a sua identidade como pessoa humana. E a criança tem direito a uma identidade estável, ela própria assegurada por uma rede simbólica. Assim, a estabilidade, a continuidade e a permanência na relação familiar devem ser priorizadas. Qualquer perda dentro do grupo familiar representa uma experiência freqüentemente traumática para a criança, que pode lhe trazer significativo custo emocional.

    Por isto, também quando se pensa nas crianças criadas por casais homossexuais como filhos, é necessário que se questione se o ordenamento jurídico como está hoje, não permitindo o seu reconhecimento como filha de ambos os pais (ou ambas as mães) realmente atende a seu melhor interesse, ou se, como fazia outrora a lei que impedia o reconhecimento de filhos espúrios, comprometida axiologicamente com o conteúdo do status quo, apenas tenta ocultar, hipocritamente, uma realidade com a qual se convive no mundo concreto, mas que permanece inaceitável no mundo jurídico, mantendo assim a criança despida dos direitos pessoais e patrimoniais a que teria direito se o contrário ocorresse. Talvez também nessas situações seja preciso que se desenvolva um novo olhar sobre o mundo para lidar com o contraditório, o heterogêneo e o divergente. E talvez as decisões supracitadas sejam um sinal do surgimento desse novo olhar.

    Por esta razão, andaram bem os juízes e tribunais, ao reconhecerem os vínculos das crianças com ambos os pais ou mães que as criam. Agindo de outra forma, estariam privilegiando aspectos meramente secundários ou formais e camuflando os reais interesses das crianças, em descuido dos pontos mais essenciais do seu viver cotidiano. Tal atitude conduziria, portanto, a graves danos para as crianças, pois seria uma afronta a vários de seus direitos fundamentais, tais como o da própria dignidade humana.

    Existem, no Brasil, milhares de crianças institucionalizadas, sonhando com o direito de terem uma família por quem sejam amadas, cuidadas e protegidas. Graças ao preconceito e à intolerância, elas não podem ser adotadas por casais homoafetivos. Alguém poderia explicar a razão? Será possível que conservemos essa estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de falso moralismo e prefiramos que as crianças não tenham qualquer família a que sejam adotadas por uma homoafetiva? Mesmo quando foram abandonadas, negligenciadas, espancadas ou abusadas por suas famílias biológicas, heterossexuais? Sem dúvida, a orientação sexual dos pais não informa nada relevante quanto ao amor e ao cuidado que têm para com seus filhos. Que valor moral é esse, que se faz cúmplice do abandono e do sofrimento de milhares de crianças?

    Em verdade, resta cada vez mais claro que, se a opção é dar sempre prioridade aos interesses superiores da criança, não pode haver uma regra que dê primazia incontestável à família biológica, privilegiando a genética em detrimento da afetividade, dos hábitos e interesses do menor e, conseqüentemente, do seu melhor interesse. Principalmente em uma época em que, segundo reportagem publicada no Jornal O Dia, em 19 de abril de 2009, a ciência não descarta mais que um casal homoafetivo possa gerar, juntos, filhos biológicos, portadores da carga genética de ambos. Consoante o neurocientista da UFRJ, Stevens Kastrup Rehen, que coordena as pesquisas, junto com o biomédico do Inca, Martin Bonamino, pode-se reprogramar células-tronco, através da manipulação genética, fazendo com que óvulos sejam produzidos por homens, e espermatozóides, por mulheres!

    Por mais polêmica e cercada de preconceitos que seja a família homoafetiva, é inegável a sua existência e não é negando esta realidade ou a excluindo do sistema jurídico, deixando-a à margem do Direito, que se encontrará soluções para os problemas dela advindos ou que se fará com que ela desapareça. É importante deixar de ignorar esta realidade social, e discuti-la, interagindo com ela sem discriminações, fazendo valer os princípios e valores constitucionais.

    É preciso afastar definitivamente a hipocrisia e a falsidade institucionalizada, trazendo à tona os verdadeiros valores que orientam os fatos sociais e as convivências grupais, e privilegiando a família que extrapola a composição biológica, fundamentando-se em outros valores; a família que se forma nos cuidados recíprocos do diaadia, se une pelo sentimento e pela felicidade e prazer de estar junta, e se alimenta de companheirismo, amizade, cumplicidade e cooperação; a família que tem no afeto existente entre os membros a principal razão de sua existência e o único vínculo probatório de que dispõe, e que, no entanto, mostra-se como uma família aos olhos de toda a sociedade.

    Considerações finais:

    Sem dúvida seria uma pretensão irrealizável querer que todos os fatos da vida tenham uma previsão normativa. Diante da constatação de inexistência de leis específicas, e enquanto a reforma legislativa não acontece, a função de ajustar, adequar a realidade jurídica à realidade social, recriando o Direito, recai sobre o julgador, que tem o dever de ficar atento às transformações sociais, preocupando-se com as peculiaridades de cada caso, mantendo assim autenticamente viva, a norma por ele aplicada.

    Todo Direito exercido fora de sua finalidade é sem interesse jurídico ou social. Acentua-se, portanto, a importância do trabalho pretoriano na construção de soluções para os casos concretos, através dos recursos hermenêuticos, para o preenchimento das lacunas normativas e o afastamento da literalidade que entra em conflito com a eqüidade e com a própria Justiça, por estar cristalizada, e imensamente distante da realidade vivenciada.

    O Direito é coisa essencialmente viva, destinado a reger homens que pensam, sentem, agem, movem-se, mudam o seu entorno e se modificam. O fim da lei não pode ser a imobilização ou a cristalização da vida. O Juiz não pode quedar-se surdo às exigências do real. Deve manter contato íntimo com ele, seguindo sua evolução e adaptando-se a ela, sem se aferrar a textos ou palavras legais, mas sim às necessidades sociais que essas leis visam suprir. Deve estar, enfim, atento ao fim social a que o Direito se destina, para que, em suas mãos, o texto legal se desdobre em um sentido mais justo, útil e humano do que, em sua mera literalidade, ele contém.

    As relações humanas transcendem - e muito! - às previsões legais. Restringir o Direito às normas escritas seria o mesmo que querer restringir uma música à sua partitura.Não é sempre necessário haver previsão legislativa específica para que ganhe corpo um novo conteúdo no Direito. Basta que se leve em conta os princípios primordiais e os valores fundamentais do sistema, relendo, traduzindo e reaplicando todo o ordenamento jurídico à luz da CF/88. Basta que se tenha um novo jeito de olhar, sendo este mais importante até que a mudança legislativa propriamente dita, pois mesmo um novo texto legal, se interpretado com o velho e enraizado olhar, pode se transformar em algo velho. A submissão do jurista à Lei não se pode dar em face da letra fria desta, mas da Lei interpretada, considerando-se a realidade mutante.

    As questões surgidas a partir dos progressos científicos na área de engenharia genética trouxeram consigo novos horizontes de surpresas, preocupações e interrogações, e, consequentemente, uma necessidade ainda maior de um aprofundamento da noção de filiação, e de construção de uma nova configuração da relação parento-filial, da qual a origem genética pode eventualmente não fazer parte. O momento atual é de crise dos paradigmas familiares, sendo marcado por muitos desafios e ameaças, por muitas incertezas e dúvidas, que deixam o homem moderno cada vez mais perplexo e confuso, vulnerável e inseguro. Mas, se os paradigmas familiares estão em crise, devemos lembrar que crises são excelentes oportunidades de aprendizagem social, pois permitem que o Direito cresça e amadureça.

    É impossível, ou, ao menos, desvantajoso, que se adote um critério único e prévio. É preciso que a dimensão sócio-afetiva passe a ser devidamente contemplada, nessa busca por uma nova definição para a filiação. É preciso que se enfrente esse grande desafio, desapegando-se de ritos e formas, buscando-se caminhos em que haja um maior equilíbrio entre os critérios estabelecedores da filiação, e que conduzam a soluções mais condizentes com os princípios e valores constitucionais que se irradiam por todo o ordenamento jurídico.

    É necessária também muita reflexão para que se mantenha a lucidez que possibilitará encontrar soluções criativas e coerentes para novos problemas sociais. É importante, para começar, que se apreenda o atual e verdadeiro sentido de termos como "família", "paternidade" e "maternidade", bem como suas várias formas, observando toda a subjetividade que, sabe-se hoje, permeia mesmo a objetividade jurídica, e alargando estas concepções, para que consiga o Direito recolher realmente o mundo dos fatos.

    Uma vez que a paternidade e a maternidade comecem a ser percebidas em sua essência, desbiologizadas e vistas como funções, o pensamento jurídico terá que se reestruturar. E é necessário que o faça logo, uma vez que as consequências de uma decisão errada, nesses casos que versam sobre assuntos tão cruciais e decisivos para a construção da identidade e estruturação da personalidade do sujeito, podem acarretar efeitos particularmente sérios para o seu desenvolvimento cognitivo, linguístico, moral, social e afetivo-emocional, tais como distúrbios no comportamento relacional e bloqueio de emoções e afetividade.

    Pouco acrescenta à proteção integral da criança essa persistência em manter a idealização da família tradicional, ignorando a experiência vivenciada pela criança. Esta atitude gera apenas preconceitos, estereótipos e visões estreitas e pouco realistas dos outros tipos de família. Para a psicanálise, pai e mãe são funções psíquicas, e não se ligam necessariamente ao pai biológico, dependendo de pura representação simbólica. Pai é quem exerce a função de impor limite, educar e ensinar o respeito. Mãe, de amar e cuidar. Tais funções não são necessariamente exercidas pelos genitores, e nem mesmo por um homem e uma mulher. Muitas vezes, as funções são trocadas ou exercidas por ambos. Seu cumprimento não depende de laço jurídico ou biológico. Mas, ao exercê-las, pai e mãe constroem a subjetividade do filho, formando sua estrutura enquanto sujeito.

    Também o Direito tem entendido, pelo reconhecimento da posse de estado de filho, que a maternidade / paternidade se manifesta no cumprimento de funções que lhe são inerentes: cuidar, amar, ensinar,... Para que o Melhor Interesse da Criança seja efetivamente atendido, é preciso que, sem idéias pré-concebidas, as relações de afeto que conduzem grupos de pessoas, ainda não identificados expressamente em nosso ordenamento jurídico como 'família', a conviver e compartilhar o cotidiano de alegrias e tristezas tenham todo o apoio e proteção do Estado.

    Apesar de, a princípio, não haver hierarquia entre os critérios definidores da filiação, eis que o Direito visa a proteger tanto a relação parento-filial baseada na consanguinidade quanto a fundada na afetividade, existem situações concretas que colocam em cheque todas as verdades e certezas sobre filiação, fazendo com que seus critérios definidores entrem em conflito. É então necessário que um prevaleça sobre o outro, sendo preciso que se decida qual deve preponderar.

    Para isto, é preciso antes redefinir o conteúdo do que seja ser filho, reinterpretando-se as normas jurídicas, à luz da verdade interna do sujeito, a partir do seu desejo, atendendo melhor às suas reais necessidades, reforçado e respeitado inclusive o seu direito à continuidade da convivência familiar, garantindo sua permanência junto àqueles que ocupam de fato seu espaço psico-parental, por exercerem efetivamente as funções atribuídas a essa organização social básica a que chamamos 'família' - algo que vai muito além dos vínculos biológicos, e que muitas vezes até prescinde deles.

    "O verdadeiro sentido das relações pai-mãe-filho transcende a lei e o sangue, não podendo ser determinadas de forma escrita, nem comprovadas cientificamente, pois tais vínculos são muito mais sólidos e muito mais profundos; são 'invisíveis' aos olhos científicos (...) Os verdadeiros pais são os que amam e dedicam sua vida ao filho, (...) onde a criança busca carinho, atenção e conforto, (...) o seu 'porto seguro'. E este vínculo, por certo, nem a lei nem o sangue garantem."[28]

    Beatrice Marinho Paulo é Psicóloga Perita do Ministério Público do Rio de Janeiro; Professora da Universidade Estácio de Sá (UNESA); Doutoranda de Psicologia pela PUC-Rio; Mestre em Psicologia pela PUC-Rio e em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF); Especialista em Direito Especial da Criança e do Adolescente pela Uerj e em Psicologia Jurídica pela UNESA.

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    [1] Este caso poderia ainda ter um complicador extra, caso essa mesma criança se visse portadora de uma doença genética cuja cura dependesse de uma doação para a qual fosse difícil a compatibilidade, sendo o pai sua derradeira esperança.

    [2] FERREIRA, Lucia Maria Teixeira. Tutela da filiação. In PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 1999, p. 257.

    [3] HERKENHOFF, João Baptista. Para onde vai o Direito? Reflexões sobre o papel do Direito e do Jurista. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 1996, p. 21/22.

    [4] BARROS, Fernanda Otoni de. Do direito ao pai. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2001, p. 74.

    [5] VENCELAU, Rose Melo. O Elo perdido da Filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vinculo paterno-filial. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2004, p. 59.

    [6] STJ, REsp n. 196966/DF, Quarta Turma, Rel. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 07/12/99. In www.stj.gov.br . Acesso em 4/09/2005.

    [7] VENCELAU, Rose Melo. Op. Cit., nota 5, p.102; STJ, Resp. n. 226436/PR, Quarta Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 28/06/2001. In www.stj.gov.br. Acesso em 4/09/2005; TJ/RS, ApCiv n. 70002430106, São Leopoldo, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Maria Berenice Dias, Porto Alegre, 26/09/2001, in Boletim IBDFAM, n. 15, jun/jul 2002.

    [8] FACHIN, luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 1996, p.186.

    [9] Ibid., p. 580

    [10] FACHIN, Rosana. Do parentesco e da filiação, In Dias, maria Berenice; Pereira, Rodrigo da Cunha (coord) Direito de Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte, MG, Del Rey, 2003, p. 145.

    [11] VENCELAU, Rose Melo. Op. cit. nota 5, p.155-176.

    [12] Ibid., p.132.

    [13] TJRS, Ação Negatória de Paternidade, 3ª Vara de Família e Sucessões, Juíza Maria Isabel Pereira da Costa, julg. 19/05/1998, In Nogueira, Jacqueline Filqueiras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo, SP: Memória Jurídica Editora, 2001, p. 277 a 283.

    [14] TJRS, Apelação Cível nº 598.403.632, 7ª Câmera Cível, Rel. Des. Eliseu Gomes Torres, julg. 17/03/1999, In NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. Op.cit. nota 13, p. 284 a 289.

    [15] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., nota 11, p. 580

    [16] VENCELAU, Rose Melo. Op. cit., nota 7, p. 72

    [17] VELOSO, Zeno. Op. cit, nota 32 , p. 28.

    [18] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit, nota 28, p.532-533

    [19] VENCELAU, Rose Melo. Op. cit, nota 7, p. 71 e 72.

    [20] VILLELA, João Baptista. Op.cit, nota 31, p. 50.

    [21] FACHIN, Luiz Edson. A tríplice paternidade dos filhos imaginários. In ALVIM, Teresa Arruda (coord) Repertório de jurisprudência e doutrina sobre Direito de família: aspectos constitucionais, civis e processuais.Vol 2. São Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 170-185

    [22] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit, nota 28, p. 534-535

    [23] STJ, REsp 127.541/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 10/04/2000. www.stj.gov.br. Acesso em 4/9/2005.

    [24] FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., nota 24, P.37-38.

    [25] LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais: bioética e biodireito. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Repensando o Direito de Família. Anais do I Congresso Brasileiro do Direito de Família. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 1999, p. 154.

    [26] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit, nota 28, p. 543

    [27] Ibid, p. 536.

    [28] VENCELAU, Rose Melo. Op. cit, nota 5, p. 84.

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