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2 de Maio de 2024
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    Depósito judicial e prisão civil do depositário infiel: análise do julgamento do RE 466343/SP

    há 15 anos

    Elpídio Donizetti*

    Resumo : Este trabalho pretende analisar, criticamente, o recente julgamento do STF acerca da inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel e, ao mesmo tempo, traçar, com base na orientação dessa Corte, as balizas que deverão nortear a conduta dos magistrados, advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial.

    Palavras-chaves: Depositário judicial infiel. Constitucionalidade.

    Sumário:

    1 Introdução.

    2 Da (in) constitucionalidade da prisão civil do depositário judicial infiel.

    3 Conclusão: breve roteiro a ser seguido quando constada a infidelidade do depositário judicial.

    1 Introdução

    Questão que sempre gerou polêmica na doutrina e principalmente na jurisprudência pátria é a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

    Recentemente, o Supremo Tribunal Federal parece ter pacificado a questão. Trata-se do julgamento do RE 466343/SP , finalizado em 03/12/2008.

    Ao longo desta exposição, faremos uma análise crítica acerca desse julgado e proporemos um roteiro que, a partir da decisão do STF, deverá balizar a conduta dos juízes, advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial e mesmo antes da nomeação do depositário, com vistas a evitar a infidelidade.

    2 DA (IN) CONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL.

    O art. , LXVII , da CF/88 admite a prisão civil em duas hipóteses: a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

    Ocorre que o Brasil, por via do Decreto 678 /1992, rati fi cou, em 25/09/1992, o Pacto de São José da Costa Rica, com iní cio de vigên cia no ter ri tó rio nacio nal em 06/11/1992, o qual admite a prisão por dívidas apenas do devedor inescusável de alimentos (art. 7º).

    A diver gên cia entre o dis pos to no Pacto São da Costa Rica e o art. , LXVII , da CF/88 , acir rou a dis cus são acer ca de qual seria a hie rar quia das nor mas inter na cio nais quan do inte gra das ao orde na men to jurí di co inter no se assu mi riam sta tus de nor mas cons ti tu cio nais ou infra cons ti tu cio nais e, via de consequência, se ainda permanecia válida a prisão civil do depositário infiel.

    Com o julgamento do RE 466343/SP , finalizado em 03/12/2008, o STF parece ter pacificado a questão.

    Inicialmente, deve-se observar que o objeto do mencionado recurso extraordinário era a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária, que se equipararia à figura do depósito contratual. Não obstante, a decisão proferida repercute em todas as espécies de depósito.

    Segundo o Min. Gilmar Mendes, os tra ta dos e con ven ções inter na cio nais sobre direi tos huma nos inte gra dos ao orde na men to jurí di co inter no sem o quorum qualificado do 3º do art. da CF teriam cará ter supra le gal, ou seja, não alte ra riam o texto cons ti tu cio nal, mas se sobre po riam às nor mas infra cons ti tu cio nais. Dessa forma, a subscrição pelo Brasil dos tratados internacionais sobre direitos humanos torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. É o que teria ocorrido com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-lei nº 911 /69, assim como em rela ção ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406 /2002).

    A manifestação do Min. Gilmar Mendes foi acompanhada pelos ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito.

    Os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, por sua vez, reconheceram não a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, em especial o Pacto São José da Costa Rica, mas o status constitucional de tais normas [1] .

    Quer tenha status constitucional, quer tenha status supralegal, o fato é que, com base no novo entendimento do STF, não mais há substrato legal para se decretar a prisão civil do depositário infiel quer seja contratual ou judicial o depósito.

    Como desdobramento do entendimento acima esposado, a Suprema Corte deliberou pela revogação da Súmula 619 , que admitia o decreto da prisão civil do depositário judicial infiel no mesmo processo em que constituído o encargo [2] .

    Com relação à prisão civil decorrente do depósito contratual típico ou da alienação fiduciária, não há qualquer discussão. Em se entendendo que o Pacto São José da Costa Rica só admite prisão civil por dívida no caso de inadimplemento de prestação alimentícia, e que o tratado se sobrepõe à legislação infraconstitucional e isso ficou assentado no julgamento do STF , de fato não mais há amparo legal para a prisão decorrente de relação material de cunho privado.

    No entanto, com relação aos depósitos judiciais, a tese perfilhada pela Suprema Corte brasileira não nos parece a mais adequada.

    A bem da verdade, a recente decisão do STF está na contramão da linha adotada pela última onda reformadora do Código de Processo Civil , cujo escopo foi conferir maior celeridade e efetividade ao procedimento executivo e, para tanto, previu medidas coercitivas até para condutas antes reputadas legítimas, como, por exemplo, para o caso de o executado sonegar bens sujeitos à execução (arts. 652 , , 656 , , c/c art. 14 , parágrafo único , do CPC). Ora, a possibilidade de se aplicar pena de prisão constitui importante instrumento para se coibir a má-fé daqueles depositários que, maliciosamente, poderiam se desfazer de bens constritos, retardando ou até inviabilizando, com isso, a satisfação do crédito.

    Mas não é só. A meu juízo, os eminentes ministros laboraram em equívoco na exegese do art. 7º da Carta de São José da Costa Rica, que, conforme já afirmado, veda a prisão por dívidas, ou seja, por débito inadimplido, exceto a resultante de alimentos. Entretanto, nem de longe o depósito judicial pode ser tido como dívida.

    Ao contrário do depósito contratual ou equiparado, o depósito judicial é relação típica de direito público e de caráter processual, estabelecida entre o juízo da execução e o depositário judicial dos bens penhorados. Nessa modalidade de depósito, o juiz confia ao depositário que necessariamente não há que coincidir com a pessoa do devedor, portanto, às vezes, sequer no plano subjacente se pode falar em débito a guarda dos bens apreendidos em decorrência de penhora, sequestro, arresto ou outro ato judicial constritivo, com intuito de preservá-los, a fim de assegurar a efetividade do processo.

    Diversamente do que ocorre no depósito contratual, inclusive o decorrente de alienação fiduciária, assume o depositário judicial, na qualidade de auxiliar do juízo, um munus público, e é exatamente esse vínculo funcional existente entre juízo e depositário que, desde priscas eras, tem justificado o decreto de prisão, constada a infidelidade desse servidor público por equiparação.

    Repise-se, porquanto nisso reside o ponto fulcral desta breve análise, o art. 7º do Pacto de São José de Costa Rica veda, tão-somente, a prisão de devedor, ou seja, daquele que tem débito decorrente de relação material (de regra, contratual), o qual em nada se confunde com a figura do depositário judicial, que, em virtude da assinatura do termo de depósito, não assumiu qualquer dívida, mas o munus de conservar e restituir a coisa, sob pena de infidelidade e, consequentemente, de prisão.

    Aliás, o disposto no tratado internacional não impede sequer que o depositário judicial infiel responda penalmente pelo crime de peculato, tipificado no art. 312 do Código Penal [3] , uma vez que, para efeitos penais, considera-se funcionário público quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça função pública (art. 327).

    Destarte, por originar-se de indevido exercício de munus público, e não de relação contratual, a hipótese de prisão civil do depositário judicial infiel regulamentada pelo art. 666 , do CPC não foi derrogada pelo Pacto São José da Costa Rica.

    Dessa forma, a orientação adotada no RE 466343/SP não pode prevalecer com relação aos depósitos judiciais, sendo constitucional a decretação da prisão civil do depositário judicial infiel, permanecendo, a nosso ver, válido o teor da Súmula 619 do STF [4] .

    3 CONCLUSÃO: BREVE ROTEIRO A SER SEGUIDO QUANDO CONSTATADA A INFIDELIDADE DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL

    Em que pesem as críticas apresentadas, sabemos todos nós que a lei é aquilo que os tribunais em especial o STF dizem que o é. E o STF entendeu que, no Brasil, só cabe prisão civil decorrente do não-pagamento de pensão alimentícia. Assim, ao menos por enquanto, ao que tudo indica, Inês é morta. Nos autos do processo civil, não há possibilidade de decretar a prisão do depositário judicial infiel. Nada impede evidentemente que amanhã o Supremo ressuscite e reveja o entendimento assentado. Aliás, entre outras, essa permanente possibilidade de revisão dos precedentes é que nos motiva a tecer críticas, construtivas e respeitosas, às decisões da mais alta Corte de Justiça deste país.

    À guisa de conclusão é de se indagar: e então, nós que estamos perto dos fatos e que, por isso mesmo, enxergamos e sentimos os reflexos da má-fé de alguns depositários judiciais, o que devemos fazer diante da inexorabilidade do mencionado precedente? Qual seria, então, a postura a ser adotada pelos credores, advogados, juízes e promotores de justiça quando constatada a infidelidade do depositário judicial?

    Adianto que a despeito da extensão que o STF emprestou à vedação da prisão por dívidas, os depositários judiciais não estão à vontade para dissiparem bens cuja guarda foi-lhes confiada.

    Ante o sumiço do bem depositado, e impossível o decreto prisional, que, como num passe de mágica, comumente tinha o condão de fazê-lo aparecer, caberá ao credor, se houver interesse, optar por indicar outro bem do devedor à constrição ou prosseguir nos próprios autos contra o depositário infiel, a fim de obter dele indenização pelo valor equivalente ao bem antes constrito. Em qualquer das hipóteses, deverá o juiz remeter cópia de peças dos autos ao Ministério Público, para oferecimento de denúncia contra o depositário infiel, por peculato. É a forma de remediar, de correr atrás do prejuízo.

    Antes, porém, que o leite derrame, com a nova orientação do STF, redobrada deve ser a atenção dos juízes ao nomearem os depositários. Mais do que nunca, será imprescindível a prévia certificação da idoneidade financeira do depositário, possibilitando o contraditório principalmente pelo credor, que poderá se opor à nomeação. Dificilmente o bem ficará com o devedor, a menos que preste caução. Isso porque, como não pagou a dívida reconhecida no título executivo, a presunção relativa, evidentemente é de que não goza de idoneidade financeira.

    O tiro, portanto, acaba por sair pela culatra. Aparentemente a decisão no RE 466343/SP beneficia o devedor, mas, na prática, irá prejudicá-lo, porquanto, a não ser excepcionalmente, ficará na guarda do bem apreendido. O mais prejudicado, todavia, é o credor, que verá postergada, quiçá inviabilizada, a satisfação de seu crédito.

    * Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) e autor, entre outras obras, do Curso Didático de Direito Processual Civil , 11ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; O Novo Processo de Execução . 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; Redigindo a Sentença Cível , 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; Para passar em Concursos Jurídicos questões objetivas com gabarito e justificação. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 e A Última Onda Reformadora do Código de Processo Civil . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

    [1] Conferir, a respeito, o Informativo de Jurisprudência nº 498 do STF.

    [2] Súmul61919 : A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.

    [3] Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.

    [4] Embora tenha defendido a supralegalidade do Pacto São José da Costa Rica, o Min. Menezes Direito ressalvou seu particular entendimento no sentido de que a vedação da prisão civil não se estenderia ao depositário judicial infiel. A respeito, conferir o Informativo de Jurisprudência nº 531 do STF.

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