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5 de Maio de 2024

Eficácia ineficaz: a Lei 14.478 entrará em vigor sem relevância prática

Por Isac Costa

A Lei 14.478/2022, que disciplina a prestação de serviços de ativos virtuais, foi promulgada em 21/12/2022, trazendo uma cláusula de vacatio legis de 180 dias a contar de sua publicação. Desse modo, considerando a regra do artigo , caput e § 1º da Lei Complementar nº 95/1998 [1], a nova lei de ativos virtuais no Brasil passará a vigorar a partir de 19/6/2023. O que isso significa, na prática?

Em primeiro lugar, a prestação de serviços de ativos virtuais — incluindo serviços de intermediação e custódia — só poderá ser exercida mediante autorização estatal prévia. Porém, ainda não foi definido o órgão ou entidade da administração pública federal responsável por esta autorização, suas hipóteses e parâmetros. Tampouco o rito de autorização foi detalhado, o que só ocorrerá após a edição de regulamentos infralegais (provavelmente Resoluções do Banco Central).

Em outros termos, qualquer empresa que esteja atuando no setor não sofrerá nenhum tipo de sanção imediata. Devemos aguardar a edição de decreto pelo Poder Executivo federal (especula-se que sua publicação é iminente), estipulando o que já é esperado pelo mercado: o Banco Central será responsável pela disciplina jurídica e fiscalização da prestação de serviços de ativos virtuais.

Nesse contexto, uma vez definido o regulador, deverá ser realizado procedimento de consulta pública com apresentação de uma proposta de norma, colhendo manifestações de todos os agentes de mercado, tal como ocorreu, por exemplo, com a regulamentação do novo marco legal de câmbio pelo Banco Central no passado recente. Assim, até que seja apresentada a primeira minuta e que a consulta pública seja finalizada com a edição de uma resolução, poderemos ter que aguardar algo como seis meses a um ano.

Enquanto isso, ficamos sem qualquer tipo de regra de transição, exceto a previsão do artigo da Lei nº 14.478/2022, no sentido de que as normas do regulador deverão estabelecer condições e prazos para a adequação de quem já estiver exercendo a atividade — e tal prazo deve ser de, no mínimo, seis meses.

Em segundo lugar, além da inexistência do regime de autorização, supervisão e punição previsto na Lei nº 14.478/2022, a ausência de regulamentação infralegal inviabiliza o comando pelo qual se exige a manutenção de registro de transações acima de determinado limite (ainda não estipulado) e prejudica o cumprimento do dever das prestadoras de serviços de ativos virtuais de comunicar operações suspeitas de lavagem de dinheiro, conforme a alteração realizada no artigo da Lei nº 9.613/1998. Ou seja, nenhum efeito prático imediato no combate à lavagem de dinheiro por meio dessa categoria de ativos.

Em terceiro lugar, talvez as únicas regras passíveis de aplicação imediata seja a incidência expressa do Código de Defesa do Consumidor e as disposições penais: a equiparação das prestadoras de serviços de ativos virtuais a instituições financeiras para fins de aplicação da lei de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1986) e a criação do artigo 171-A no Código Penal, um estelionato com uso de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, cuja pena varia de quatro a oito anos de reclusão.

Nessas hipóteses, diante de casos concretos, o Ministério Público e o Poder Judiciário poderão se valer das definições de ativo virtual e de serviço de ativo virtual na Lei nº 14.478/2022 para imputar condutas ao novo delito. Essa possibilidade é preocupante, dada a recorrente dificuldade enfrentada, mesmo pelos reguladores específicos do Sistema Financeiro Nacional, de diferenciar ativos virtuais de valores mobiliários, tornando ainda mais complexa a solução do conflito de normas entre pirâmide financeira (artigo , IX, da Lei nº 1.521/1951) e de oferta irregular de valores mobiliários (artigo , II, da Lei nº 7.492/1986). Outra questão que pode ser suscitada é se a competência envolvendo o artigo 171-A do Código Penal é da Justiça comum ou da Justiça Federal.

À margem de toda a discussão, o regime da Comissão de Valores Mobiliários segue intacto. Desse modo, se a autarquia que regula o mercado de capitais entender que determinado ativo virtual é um valor mobiliário, nos termos do artigo , IX, da Lei nº 6.385/1976 e conforme os parâmetros de seus precedentes (o famoso "teste de Howey"), então o regime da Lei 14.478/2022 será afastado. Na prática, isso significa que será necessário o registro de emissor de valores mobiliários e da oferta pública de distribuição ou, pelo menos, dispensa de requisitos ou dispensa de registro da oferta.

Por essa razão, participantes do mercado dialogam com a CVM para que seja possível emitir tokens — especialmente tokens de recebíveis e de renda fixa — utilizando algum regime menos oneroso do que o aplicável às companhias abertas ou aos emissores registrados na Categoria B. Em termos mais simples, discute-se a adaptação da norma de crowdfunding (Resolução CVM nº 88/2022) para permitir a emissão desses tokens.

Precisamos aguardar qual a natureza das normas que serão editadas pelo regulador específico do tema, mas, considerando que a maior parte dos ativos virtuais é emitida com um viés de utilização para fins de investimento (competência típica da CVM) do que pagamento (competência típica do Banco Central), não me surpreenderia se a regulação vindoura seja muito parecida com a de instituições de pagamento e, por isso, incapaz de mitigar os riscos próprios da emissão e negociação de ativos virtuais.

Basta observar os cinquenta tokens com maior valor de mercado para concluir que as preocupações com os prestadores de serviços deveriam envolvem muito mais um regime informacional para a emissão, transparência na formação de preços, repressão à manipulação de preços e ao uso indevido de informação privilegiada, convergência das infraestruturas de mercado com base em tecnologias descentralizadas e os prestadores de serviços de custódia, escrituração e depósito. Certamente, o Banco Central, em conjunto com o Coaf, irá regular a prevenção à lavagem de dinheiro, mas penso que os riscos específicos de um mercado que se assemelha muito mais ao de capitais do que ao bancário não devem ser contemplados, em princípio.

Assim, enquanto alguns discutem se devemos regular o mercado de ativos virtuais como um cassino ou como um mercado de bolsa, nosso país opta por uma terceira — e inadequada — via: a de regular, como instrumentos de pagamento, um caso de uso que, infelizmente, não foi validado no estado atual das tecnologias de registro distribuído. Teremos uma lei cuja eficácia será tão discutível quanto à de cláusula de vigência: está em vigor, mas pode valer muito pouco em termos práticos.


[1] Art. 8º - A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão. § 1º A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral. (Incluído pela Lei Complementar nº 107, de 26.4.2001)


Autor: Isac Costa é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2023, 8h00

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