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2 de Maio de 2024

STF Mar23 - Direito de Firmar duas Anpp concomitantes por crimes com intervalos maiores que 5 anos

ano passado

Inteiro Teor

AG.REG. NOS EMB.DECL. NO HABEAS CORPUS 220.577 RIO DE JANEIRO

RELATOR : MIN. EDSON FACHIN

DECISÃO: Trata-se de agravo regimental (eDOC 31) interposto contra decisão que, forte na hipótese de não conhecimento e na ausência de flagrante ilegalidade ou teratologia, negou seguimento ao habeas corpus (eDOC 30).

Nas razões recursais, narra o agravante que o fato de o acusado ter sido beneficiado com o ANPP nos autos n. 0161035-63.2020.8.19.0001, por si só, não obsta o deferimento do benefício na ação penal a que se reporta o presente writ , uma vez que o art. 28-A, § 2º, III, do CPP veda o ANPP somente nos casos em que o acusado foi beneficiado nos 5 anos anteriores à data do novo crime.

Alega que, no caso concreto, o recorrente está sendo processado pela prática do crime de estelionato, que perdurou, em tese, até abril de 2016, e celebrou acordo de não persecução penal em momento "bem posterior ao período de 5 anos ANTERIORES AO COMETIMENTO DA INFRAÇÃO" .

Requer o provimento do recurso para: a) absolver o recorrente, ante a atipicidade da conduta por ausência do elemento subjetivo; b) reconhecer "a inobservância do disposto no art. 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, com a consequente declaração de nulidade do laudo pericial produzido a partir da apreensão do medidor de energia elétrica e demais provas derivadas"; c) "[a]fastar o erro de premissa legal - inexistência de acordo 5 anos antes do fato para que seja determinada a remessa dos autos ao Ministério Público para fins de acordo de não persecução penal" ou, subsidiariamente, "para fins de proposta de suspensão condicional do processo"; d) anular a sentença "para ser determinada a realização da perícia, a fim de permitir o pleno exercício da ampla defesa e contraditório, afastando-se a absoluta ingerência sobre as provas do maior interessado no resultado do processo, na esteira dos quesitos que serão formulados oportunamente, com a retomada ou reinício dos prazos para manifestações e alegações finais".

É o relatório. Decido.

1. Tendo em vista a permissão contida no art. 317, § 2º, do RISTF, reconsidero, em parte, a decisão agravada, especificamente quanto ao pedido de que seja reconhecida a inexistência de impedimento legal à oferta do ANPP.

Esclareço que, quanto às teses de atipicidade da conduta, cerceamento de defesa ante o indeferimento de produção de nova prova e nulidade por quebra da cadeia de custódia, o agravante não enfrentou os fundamentos da decisão agravada, quais sejam: a) a impossibilidade desta Corte reanalisar, em sede de habeas corpus , o conjunto fático- probatório dos autos; b) a ausência de cerceamento de defesa em decisão judicial que conclui pela desnecessidade de produção de diligência complementar; c) a incompetência desta Suprema Corte para revisar, em sede de habeas corpus e diretamente, atos jurisdicionais emanados das instâncias ordinárias.

Desse modo, a parte recorrente não se desincumbiu do ônus de impugnar especificamente os fundamentos da decisão agravada, não preenchendo, pois, o requisito de admissibilidade recursal previsto no art. 317, § 1º, do RISTF.

Nesse sentido, a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS . AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. INCIDÊNCIA DO ART. 317, § 1º, DO RISTF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I O agravante não refutou os fundamentos da decisão agravada, o que atrai a incidência do art. 317, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal RISTF. Precedentes.

II Agravo regimental a que se nega provimento. ( RHC 175.256 AgR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe 9.12.2019)

Agravo regimental no habeas corpus. 2. Agravo que impugna apenas um dos fundamentos da decisão agravada . Impossibilidade. 3. Agravo não conhecido. ( HC 177.263 AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe 18.12.2019 grifos no original)

Assim, quanto a essas matérias, mantenho a decisão agravada por seus próprios fundamentos.

2. Noutro giro, no tocante ao Acordo de Não Persecução Penal, depreendo a existência de ilegalidade aferível de pronto, hábil a autorizar a concessão da ordem de ofício, nos termos do art. 654, § 2º, do CPP.

Na espécie, o recorrente foi denunciado e condenado em primeira instância pela prática do crime de estelionato cometido "em período próximo e anterior ao mês de abril de 2016 e que perdurou até 13/04/2016" (eDOC 02, p. 1).

Ao se posicionar a respeito da ausência de oferecimento do ANPP pelo órgão ministerial, o Juízo de 1º grau deixou expressamente consignado o seguinte (eDOC.10, p. 2-6, grifei):

"Às fls.168/194, foi apresentada resposta à acusação, manifestando-se, em seguida, o Ministério Público, às fls.197/199. Na oportunidade, a Promotora de Justiça justificou a não apresentação de acordo de não persecução penal, sob o argumento de que o acusado não preenche requisito objetivo, consubstanciada na atual fase do processo, uma vez que a Lei nº 13.964/19 determina que o novo benefício seja proposto antes do oferecimento da denúncia, o que não se deu nos autos. Por outro lado, ressaltou a Promotora de Justiça que extraída a FAC do acusado, verificou também o Ministério Público que ele foi recentemente beneficiado com ANPP nos autos do PROCESSO Nº 0161035-63.2020.8.19.0001, havendo expressa vedação legal a novo acordo no prazo de cinco anos, na forma do artigo 28-A, § 2º, inciso III, do CPP, o que reforça a premissa de que também não faz jus a suspensão condicional do processo, não preenchendo requisito subjetivo para a concessão da medida.

(...)

Dos pleitos defensivos de oferecimento de acordo de não persecução penal e de proposta de suspensão condicional do processo. Na forma da manifestação ministerial de índex197/199, na hipótese que se descortina nos autos, os fatos imputados ao acusado foram supostamente perpetrados em data anterior à vigência da Lei nº 13.964/19, sendo a denúncia ofertada e recebida também antes da entrada em vigor da referida lei. Conquanto a inegável natureza mista das regras que regem o instituto do Acordo de Não Persecução Penal, pois compostas por normas de caráter penal (material) e processual penal, o que conduziria à conclusão de que poderia retroagir, tendo em vista que mais benéfica ao réu, imperativa a realização de interpretação histórica e teleológica, observando- se as circunstâncias em que o novel instituto foi aprovado. Como bem pontuado pelo Ministério Público, no PL 882/2019 foram previstos dois tipos de acordo, a saber, o acordo de não persecução penal, realizado necessariamente antes do recebimento da denúncia, e o acordo de não continuidade de persecução penal, que poderia ser celebrado após o recebimento da denúncia, mas até o início da instrução do feito.

o. O citado projeto de lei, todavia, foi arquivado e julgado prejudicado pelo substitutivo PL 10.372, a partir do qual foi aprovada a Lei 13.964/19, prevendo, tão somente, o acordo de não persecução penal. MISTER CONCLUIR, PORTANTO, QUE O LEGISLADOR, EM RECENTE E CON-CRETA EXPRESSÃO LEGISLATIVA, OBSTOU O RECONHECIMENTO LEGAL DO ACORDO DE NÃO CONTINUIDADE DE PERSECUÇÃO PENAL. Com efeito, o que pretendeu o legislador foi incluir no Código de Processo Penal a possibilidade de o Ministério Público deixar de promover a acusação, desde que o investigado assuma determinadas condições, as quais caso integralmente cumpridas, acarretam a extinção da punibilidade. Trata-se, portanto, de medida que visa impedir a persecução penal em juízo, sendo relevante ressaltar, inclusive, a opção do legislador pelo termo" investigado ", bem como a previsão de homologação pelo juiz de garantias (que atuaria somente até o recebimento da denúncia), em razão do que entende este julgador que o ANPP tem cabimento apenas até o oferecimento da peça acusatória, desde que não seja caso de arquivamento. Nesse sentido, considerando que, repita-se, na hipótese dos autos, já realizado o juízo de delibação, com o regular recebimento da peça acusatória, não existindo previsão de acordo de não continuidade de persecução penal na Lei 13.964/19, carece de base legal a propositura de acordo de não persecução quando a denúncia já estiver recebida. Mesmo que assim não fosse, o ANPP é um instrumento pelo qual o Ministério Público e o investigado convencionam o NÃO EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL em troca da aceitação pelo investigado, assistido por seu defensor, de determinadas obrigações. Tratando-se de instrumento ou medida própria da justiça negocial, aplicam-se ao ANPP, naquilo que pertinente, os princípios e postulados básicos da transação penal e da

suspensão condicional do processo. Nesse ponto, imperioso ressaltar que já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça que a transação penal e o sursis processual traduzem um poder-dever do Ministério Público e não um direito público subjetivo do acusado. A esse respeito, mister destacar o voto do então Ministro do STF, Ayres Britto, em julgado que tratava da suspensão condicional do processo, de todo aplicável à espécie, in verbis:"[...] não há que se falar em obrigatoriedade do Ministério Público quanto ao oferecimento do benefício da suspensão condicional do processo. Do contrário, o titular da ação penal seria compelido a sacar de um instrumento de índole tipicamente transacional, como é o sursis processual. O que desnaturaria o próprio instituto da suspensão, eis que não se pode falar propriamente em transação quando a uma das partes (o órgão de acusação, no caso) não é dado o poder de optar ou não por ela."( HC 84.342/RJ, 1a Turma). Logo, dentro do espaço de discricionariedade regrada (poder-dever) que lhe concede a disciplina legal e a própria concepção do instituto, o Ministério Público poderá, diante das circunstâncias do caso concreto, se negar a formular proposta ao investigado, devendo, para tanto, ponderar e fundamentar se o acordo é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Ante todo o exposto, considerando que, na hipótese dos autos já existe ação penal em curso, bem como que o Ministério Público opinou contrariamente ao pleito defensivo, inviável a designação de audiência para oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto tipicamente transacional, quando uma das partes, in casu, o órgão de acusação, já manifestou seu não interesse na propositura do acordo. Ressalte-se, por fim, que o acusado foi recentemente beneficiado com ANPP nos autos do processo nº 0161035-63.2020.8.19.0001, em trâmite no Juízo da 1a Vara Criminal desta Comarca (como se vê de fls. 200/202), havendo expressa vedação legal no artigo 28-A, § 2º, III, do CPP ao oferecimento de novo acordo no prazo de 05 anos, razão pela qual também não faz jus ao benefício da suspensão condicional do processo. Ante todo o exposto e, inexistindo causas de absolvição sumária, mantenho a decisão de fls. 110/111, que recebeu a denúncia, para que a matéria trazida pela defesa seja levada ao crivo do contraditório e, corroborada ou não por ocasião da instrução criminal."

O Tribunal de origem, por sua vez, não verificou ilegalidade na decisão acima exarada e a manteve com base na seguinte fundamentação (eDOC.16, p. 13 e ss.):

"Quanto à nulidade pela ausência do ANPP (Acordo de Não Persecução Penal) ou da Suspensão Condicional do Processo, também não socorre melhor sorte ao impetrante.

Inicialmente cumpre apontar que a denúncia foi regularmente recebida. Segundo remansosa jurisprudência pátria, o ANPP só pode ser veiculado em fase pré-processual, como se verifica dos seguintes arestos:

(...)

No mesmo sentido: HC 591.541/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 01/03/2021; REsp 1920268 Relator (a) Ministro Felix Fischer, DJe 08/03/2021.

Não se perca de vista que a norma prevê certas condições de cunho objetivo que devem ser implementadas, a saber: não ser caso de arquivamento, ter havido confissão formal e circunstancial da prática delituosa, que não deve conter violência ou grave ameaça e que tenha pena mínima inferior a quatro anos. Além disso, ainda que implementadas as condições objetivas, haverá um juízo subjetivo do Ministério Público (" poderá propor "), que deverá entender se o acordo é necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (artigo 28-A, do Código de Processo Penal).

Mesmo diante dos argumentos contrários do impetrante, se o acordo implica na despenalização de conduta típica, e se o titular da ação penal é o Ministério Público, somente essa instituição, e não ao Poder Judiciário, cabe decidir qual medida adotar, dentre as opções de solução negociada e oferecimento de denúncia. Assim, diversamente do que entende o impetrante, o instituto possui balizamento e o magistrado não pode se sobrepor à vontade do Parquet.

Em exéquias, cumpre citar que, como lançado na decisão objurgada, que o paciente foi recentemente beneficiado pelo Acordo de Não Persecução Penal em outro feito no qual figura como acusado (Ação Penal nº 0161035-63.2020.8.19.0001), sendo absolutamente irrelevante o fato do processo estar suspenso, já que, obviamente, ele não foi extinto. Incabível, portanto, a perquirida Suspensão Condicional do Processo, ex vi o disposto no artigo 89 da Lei nº 8.099/90, que dispõe, in verbis:

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)."

Verifico que as decisões impugnadas não se alinham à jurisprudência firmada pela Segunda Turma desta Corte quanto à retroação da Lei 13.964/2019.

A Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, introduziu ao Código de Processo Penal o instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), por meio do art. 28-A, que assim dispõe:

"Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ( Código Penal) art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ( Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ( Código Penal),art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 ( Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas

no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código."

Trata-se de uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro que, assim como a transação penal e a suspensão condicional do processo, privilegia a justiça consensual e, certamente, impactará de forma positiva no sistema de justiça penal, na medida em que mitiga o princípio da indisponibilidade da ação penal nos casos de crimes de médio potencial ofensivo, quando atendidos os requisitos legais. Além de contribuir com o desafogamento do Poder Judiciário e com a economia processual, esse mecanismo negocial garante a recomposição do dano provocado à vítima e à sociedade.

Desde a vigência da Lei 13.964/2019 (23.01.2020), esta Corte tem recebido inúmeros habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus por meio dos quais o jurisdicionado requer a aplicação do art. 28-A do CPP, argumentando, como no presente caso, que a natureza mista da norma em comento (material-processual) impõe sua incidência retroativa, em obediência à garantia prevista no art. , XL, da Constituição Federal.

Diante da envergadura da matéria e da multiplicidade de demandas, o eminente Ministro Gilmar Mendes, em boa hora, afetou o tema ao Pleno, nos autos do HC 185.913/DF. Não obstante, sem prejuízo de oportuna análise verticalizada da matéria pelo colegiado maior desta Suprema Corte, levei a questão ao escrutínio da Segunda Turma, no HC 220.249/SP (Sessão virtual de 09.12.2022 a 16.12.2022), por entender que a natureza da ação e suas implicações jurídicas exigem uma prestação jurisdicional célere, a fim de não esvaziar o próprio direito ou a pretensão punitiva estatal (seja pelo cumprimento integral da pena, seja pelo reconhecimento da prescrição).

No referido julgamento virtual, a Turma reconheceu a aplicação retroativa do art. 28-A do CPP e determinou a conversão da ação criminal em diligência, a fim de oportunizar ao Ministério Público a propositura de eventual Acordo de Não Persecução Penal.

Ao proclamar o voto no HC 220.249/SP, inicialmente esclareci que, em temática similar à dos autos (em que se pretendia a aplicação retroativa do art. 171, § 5º, do CP, com a redação introduzida pela Lei 13.964/2019), a Segunda Turma reconheceu a natureza mista da norma e assentou que tais preceitos, quando favoráveis ao réu, devem ser aplicados de maneira retroativa em relação a fatos pretéritos enquanto a ação penal estiver em curso , nos termos do que dispõe o art. , XL, da CF ( HC 180.421/SP, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 06.12.2021).

Como ressaltei naquela ocasião, a expressão "lei penal" contida no art. , inciso XL, da Constituição Federal deve ser interpretada como gênero. Dessa forma, a expressão deve abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado (como, por exemplo, aquelas relativas ao direito de queixa ou de representação, à prescrição ou à decadência, ao perdão ou à perempção, a causas de extinção de punibilidade) ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo (como, por exemplo, admissão de fiança, alteração das hipóteses de cabimento de prisão cautelar). Essas normas, quando beneficiarem o réu, devem retroagir, nos termos do dispositivo constitucional em comento.

A meu ver, ao acordo de não persecução penal deve ser aplicada idêntica interpretação, pois o caráter híbrido da norma (material- processual) é evidente. Embora inserida no Código de Processo Penal, consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência.

Nesse contexto, como bem pondera XXXXXXXX, ainda que já tenha sido apresentada a denúncia e, consequentemente, esteja preclusa a primeira finalidade processual do ANPP (evitar a instauração da ação criminal), persiste hígido o escopo material do instituto negocial, qual seja: a conservação do estado de inocência e da liberdade.

A esse respeito esclarece o autor que "em sendo novatio legis in mellius, a retroação aos processos em curso é mandatória por imposição constitucional (art. , XL, da CRFB/88), não lhe sendo oponível o ato jurídico perfeito" . E ainda, "o ANPP, à semelhança da transação penal, incide sobre as instruções criminais em curso, independentemente de a denúncia ter sido, ou não, recebida, seja por força da retroatividade da Lei nº 13.964/19, seja em razão da desclassificação da imputação, pelo juízo processante ou em sede recursal, para outra que comporte o benefício." (SANTOS, Marcos Paulo D. Comentários ao Pacote Anticrime . São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 207 e 208, respectivamente).

Com efeito, o recebimento da denúncia ou mesmo a prolação da sentença não esvaziam a finalidade do ANPP, pois a sua celebração evita prisão cautelar, condenação criminal e seus efeitos (cumprimento de pena, reincidência, maus antecedentes, etc) e o próprio processo (com todas as fases recursais). Tais marcos processuais não excepcionam a garantia constitucional de retroatividade da lei mais benéfica, mesmo sob o argumento da utilidade do instituto para o órgão de acusação. Ora, o critério da utilidade deve ser visto sob a óptica de todo o sistema de justiça criminal e dos atores envolvidos, incluindo aqui a vítima e o acusado.

Nessa linha, colho lição de Guilherme de Souza Nucci:

"O acordo de não persecução penal, introduzido pela Lei 13.964/2019, é uma norma processual de natureza mista, pois evita a propositura de ação penal e, com isso, permite a extinção da punibilidade. Assim sendo, temos sustentado que essa espécie de norma processual penal deve retroagir no tempo, tal como a norma penal benéfica, atingindo todos os processos em andamento, desde que não tenha havido trânsito em julgado.Entretanto, a tendência da jurisprudência, por ora, tem sido não acolher a retroatividade benéfica dessa norma do art. 28-A do CPP; defende-se que, havendo o recebimento da denúncia ou queixa, está-se diante de ato jurídico perfeito, não podendo ser alterada a situação. Esse entendimento, na realidade, deixa de reconhecer a força da norma processual penal de natureza mista." (NUCCI, Guilherme de S. Manual de Processo Penal. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 234 - grifei).

Na mesma direção, colaciono o ensinamento de Aury Lopes Junior:

"Quanto à aplicação no tempo, trata-se de norma mais benigna que deverá retroagir. Como explicamos no início dessa obra, ao tratar da lei processual no tempo (para onde remetemos o leitor), na concepção clássica, essa seria uma norma mista, com prevalentes caracteres penais (pois uma vez cumprido, extingue a punibilidade) que retroagem para beneficiar o réu. Portanto, pode ser aplicado aos processos nascidos antes da vigência da Lei n. 13.964 e pode ser oferecido até o trânsito em julgado." (LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 86).

Cito, ainda, precedentes da lavra do eminente Ministro Ricardo Lewandowski, em que, baseado no entendimento firmado no HC 180.421/SP quanto à retroação da Lei 13.964/2019, concedeu a ordem para determinar a remessa dos autos a órgão superior do Ministério Público, a fim de verificar a possibilidade de celebração do ANPP: HC 221.969, DJe 07.11.2022; HC 221.756, DJe 28.10.2022; HC 214.408, DJe 05.10.2022; DJe 221.878, DJe 09.11.2022; HC 213.966 no AgRg, DJe 05.10.2022; HC 218.725, DJe 06.10.2022.

No âmbito do Ministério Público Federal, também foi firmada orientação nesse mesmo sentido. Vejamos o item 8 da Orientação Conjunta 3/2018 da 2a, 4a e 5a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, revisada e ampliada após a edição da Lei 13.964/2019:

"8 Admite-se o oferecimento de acordos de não persecução penal no curso da ação penal, podendo ser dispensada, nessa hipótese, a instauração de PA, caso a negociação seja realizada nos próprios autos do processo. Nessa hipótese, deverá ser requerido ao juízo o sobrestamento da ação penal".

Assim também dispõe o Enunciado n. 98 da 2a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF:

"É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão". (Enunciado alterado na 187a Sessão de Coordenação, de 31/08/2020).

3. No presente caso , apesar de os fatos serem anteriores à alteração legislativa, o feito ainda aguardava a prolação da sentença quando a Lei 13.964/2019 entrou em vigor. Desse modo, imperativo é o reconhecimento do efeito retroativo do art. 28-A do CPP.

4. No que tange à vedação contida no art. 28-A, § 2º, III, do CPP, não antevejo, no caso dos autos, verossimilhança nas alegações do Ministério Público e das instâncias ordinárias.

Além de ter afastado a aplicação retroativa da lei, o Ministério Público se negou a formalizar o ANPP em razão de o agravante ter sido beneficiado pelo mesmo instituto nos autos n. 0161035-63.2020.8.19.0001, suscitando a incidência do § 2º do inciso III do art. 28-A do CPP, que veda a celebração do acordo na hipótese de "ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo".

Contudo, em consulta ao sítio eletrônico do TJRJ, verifiquei que, nos autos em que houve a celebração do ANPP ( 0161035-63.2020.8.19.0001), o recorrente foi preso em flagrante no dia 15.08.2020 e, em 16.03.2021, foi celebrado o acordo de não persecução penal.

Com efeito, não houve, no caso concreto, celebração de ANPP nos 5 (cinco) anos anteriores a 13/04/2016 - data do cometimento da infração penal processada nos autos n. 0062214-32.2018.8.19.002 -, de modo que o não oferecimento do instituto com base no art. 28-A, § 2º, III, do CPP encontra suporte em realidade fática inexistente.

Desse modo, registro que, a despeito da discussão doutrinária a respeito da natureza do instituto (direito adquirido do acusado ou ato discricionário do órgão acusatório), o fato é que o Ministério Público se vincula à motivação exarada.

Assim, constatada a inexistência dos motivos que teriam obstado a celebração do acordo e considerando o limite cognitivo do Poder Judicário, há que se oportunizar ao Parquet , novamente, a propositura do acordo.

5. Ante o exposto, com fulcro no art. 317, § 2º, do RISTF, reconsidero, parcialmente, a decisão agravada e, em vista da retroatividade do art. 28-A do CPP e da ausência de motivação idônea para deixar de celebrar o acordo, concedo a ordem, em menor extensão, para determinar que o Juízo singular abra vista ao Ministério Público, a fim de oportunizar- lhe a propositura do Acordo de Não Persecução Penal, caso preenchidos os requisitos. Quanto ao mais, mantenho os fundamentos da decisão agravada.

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(STF - HC: 220577 RJ, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 15/03/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16/03/2023 PUBLIC 17/03/2023)

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