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1 de Maio de 2024

STF nov22 - Retroatividade do Acordo de Não Persecução Penal - Ordem Concedida

ano passado

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 221.878 CE ARÁ

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

PACTE.(S) : JULIANA DAMITO DE SOUZA

IMPTE.(S) : WLADIMIR ALBUQUERQUE DALVA E OUTRO (A/S) COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal Justiça - STJ, que negou provimento ao Agravo Regimental no RHC 168.840/CE, assim ementado:

"PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS . OFERECIMENTO DE ANPP - ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. NÃO CABIMENTO. RETROATIVIDADE ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. DENÚNCIA RECEBIDA EM DATA ANTERIOR. AUSÊNCIA DE ARGUMENTOS NOVOS APTOS A ALTERAR A DECISÃO AGRAVADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

I - Assente que a defesa deve trazer alegações capazes de alterar o entendimento anteriormente firmado, sob pena de ser mantida a r. decisão vergastada pelos próprios fundamentos.

II - Como é amplamente consabido, a Lei n. 13.964/2019 (comumente denominada como ‘Pacote Anticrime’) refletiu no trabalho do membro do Ministério Público, em especial ao criar o art. 28-A do Código de Processo Penal, que prevê o instituto do acordo de não persecução penal.

III - A Corte de origem invocou fundamentos para indeferir a pretensão defensiva quanto à eventual proposta de acordo de não persecução penal que estão em sintonia com o entendimento deste Sodalício, cuja jurisprudência se consolidou quanto à retroatividade do art. 28-A do CPP, incluído pela Lei n. 13.964/2019, desde que a exordial acusatória ainda não tenha sido recebida.

IV - In casu , a denúncia foi recebida em data de 13/3/2019 (fl. 160), antes, portanto, da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, que foi publicada em 24/12/2019, com vigência superveniente a partir de 23/1/2020.

V - No presente agravo regimental, no tocante à matéria do ANPP, não se aduziu qualquer argumento novo e apto a ensejar a alteração da decisão ora agravada, devendo ser mantida por seus próprios fundamentos.

Agravo regimental parcialmente provido, apenas para conhecer do recurso ordinário." (págs. 1-2 do doc. eletrônico 21).

Neste habeas corpus, a defesa alega, em síntese, que

"{...] os motivos da negativa do presente acordo foram limitados ao fato da denúncia já ter sido oferecida. Entretanto, a jurisprudência indica a necessidade do oferecimento, mesmo em casos de processos em curso, desde que ainda seja útil e viável ao processo. Ademais, este fator foi desconsiderado pelo precedente em questão.

21. Assim, ao observar os institutos formulados pelo pacote anticrime, advém a possibilidade do acordo de não persecução penal, tendo neste o acordo de não persecução penal como mecanismo útil para resguardar o processo de demoras injustificadas, trazendo a justiça penal, desde que cumpridos os requisitos do artigo 28-A, in verbis:

[...]

23. Cabe frisar ainda da possibilidade de aplicação intemporal, vez que não se trata de um instituto meramente processual, mas advém efetivamente de um instituto de aplicabilidade penal. Isto é, TRATA-SE DE NORMA DE DIREITO PENAL MATERIAL E NÃO NORMA DE DIREITO PROCESSUAL!" (págs. 10-11 da petição inicial).

Requer, ao final, a concessão da ordem para "reconhecer a ilegalidade da decisão que negou o direito ao acordo de não persecução penal, devendo-se aplicar o artigo 28-A pelas normas de direito intertemporal". (pág. 15 da petição inicial).

É o relatório. Decido.

Discute-se, nestes autos, a retroatividade do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), constante do art. 28-A do Código de Processo Penal - CPP, inserido pela Lei 13.964/2019.

Quanto ao tema, destaco que o Ministro Gilmar Mendes afetou ao Plenário, nos termos do art. 22, parágrafo único, b , do Regimento Interno do STF - RISTF, o julgamento do HC 185.913/DF, fundado na "[...] potencial ocorrência de tal debate em número expressivo de processos e a potencial divergência jurisprudencial, o que destaca a necessidade de resguardar a segurança jurídica e a previsibilidade das situações processuais, sempre em respeito aos direitos fundamentais e em conformidade com a Constituição Federal".

O relator delimitou, naqueles autos, as seguintes "questões- problemas":

"a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou do processo?"

Aquele writ , desde então, aguarda o julgamento pelo Colegiado maior.

Como é de conhecimento geral, a Lei 13.964/2019, cunhada de "Pacote Anticrime" e em vigência desde 23/1/2020, introduziu fecundas mudanças na legislação processual, dentre elas a inclusão do art. 28-A no Código de Processo Penal, que trata do referido Acordo de Não Persecução Penal.

Cuida-se, a toda evidência, de instrumento consensual híbrido, qualificado como negócio jurídico extrajudicial singular firmado entre o investigado, assistido por seu defensor, e o órgão do Ministério Público. Sim, porque as partes ajustam cláusulas negociais a serem cumpridas pelo contratante, de modo que, em contrapartida, ficará esvaziada a pretensão estatal, por meio da decretação da extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13º, do CPP), após o cumprimento daquelas condições.

Ademais, a legislação processual vigente discriminou, de forma exaustiva, as hipóteses em que a justiça penal negociada não poderá ocorrer, ou seja, indicou expressamente as situações de impedimento ao ANPP, conforme previsão tipificada no art. 28-A, § 2º, do CPP.

Quanto à possibilidade de retroação do ANPP, reconhecidamente norma processual penal mais benéfica, lembro que, ao julgar o HC 180.421/SP, a Segunda Turma desta Suprema Corte decidiu que "[a] expressão ‘lei penal’ contida no art. , inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo". Concluindo que "[o] § 5º do art. 171 do Código Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato de pública incondicionada para pública condicionada à representação como regra, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque, ao mesmo tempo em que cria condição de procedibilidade para ação penal, modifica o exercício do direito de punir do Estado ao introduzir hipótese de extinção de punibilidade, a saber, a decadência (art. 107, inciso IV, do CP)".

Assim, "[essa] inovação legislativa, ao obstar a aplicação da sanção penal, é norma penal de caráter mais favorável ao réu e, nos termos do art. , inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado".

Assentou-se, ademais, que, "[diferentemente] das normas processuais puras, que são orientadas pela regra do tempus regit actum (art. do CPP), as normas de conteúdo misto, quando favoráveis ao réu, devem ser aplicadas de maneira retroativa em relação a fatos pretéritos enquanto a ação penal estiver em curso, nos termos do que dispõe o art. , inciso XL, CF (‘a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’)".

Nessa esteira, Gustavo Badaró leciona que,

"[no] direito penal, o problema da sucessão de leis no tempo é resolvido segundo a garantia constitucional de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu ( CR, art. , caput, XL).

Já no campo processual penal, a norma geral de direito intertemporal encontra-se prevista no art. 2.º do CPP: ‘A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’. Trata-se do princípio tempus regit actum , que não se confunde com a ideia de retroatividade da lei processual.

[...]

Inegavelmente, há normas de caráter exclusivamente penal e normas processuais puras. Todavia, a doutrina também reconhece a existência das chamadas normas mistas ou normas processuais materiais. Embora não se discuta a existência de tais normas, há discrepância quanto ao conteúdo mais restrito ou mais ampliado que se deve dar a tais conceitos.

A corrente restritiva considera que são normas processuais mistas, ou de conteúdo material, aquelas que, embora disciplinadas em diplomas processuais penais, disponham sobre o conteúdo da pretensão punitiva. Assim, são normas formalmente processuais, mas substancialmente materiais, aquelas relativas: ao direito de queixa ou de representação, à prescrição e decadência, ao perdão, à perempção, entre outras.

Mesmo que se adote a corrente restritiva, inegavelmente devem ser consideradas normas processuais materiais, ou normas mistas, com aplicação retroativa, por serem mais benéficas, os seguintes dispositivos da Lei 13.964/2019: a exigência de representação para o crime de estelionato ( CP, art. 171, § 5º), a possibilidade de celebração de acordo de não persecução penal ( CPP, art. 28-A).

[...]

De outro lado, no que diz respeito ao acordo de não persecução ( CPP, art. 28-A), igualmente é válido o paralelo com a situação trazida pela Lei 9.099/1995, com a criação de outro instituto consensual, no caso, a transação penal. Reconheceu-se, sem qualquer vacilação, o conteúdo misto de tal instituto que, por evitar a condenação do acusado era mais benéfico e, assim, passível de ser aplicado aos processos em curso. Para quem esteja sendo processado, por crime que passou a admitir o acordo de não persecução penal, tal instituto é mais benéfico e deve ser aplicado retroativamente.

Com relação ao acordo de não persecução penal, a jurisprudência se encaminhou no sentido de que no caso de investigações em curso, poderia ter aplicação imediata a nova lei e ser formulada a proposta de acordo de não persecução penal mas, por outro lado, no caso de processo com denúncias já oferecidas quando entrou em vigor a lei, não seria possível a formulação de tal proposta. A 1a Turma do STF, no julgamento do HC 191.464/SC AgR, fixou a seguinte tese: ‘o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia’. A matéria foi afetada ao Plenário do STF, pelo Min. Gilmar Mendes, no HC nº 185.913/DF, que ainda não se pronunciou sobre o tema.

Há, contudo, entendimento contrário, no sentido de que o acordo de não persecução penal também se aplica aos processos em curso, desde que não tenha havido o trânsito em julgado. É a posição à qual nos filiamos.

Não se disputa a premissa de que o acordo de não

persecução penal é um instituto de natureza mista, de direito penal e processual penal. O caráter benéfico, no plano do direito material é inegável: aceito e cumprido o acordo de não persecução penal, o imputado não será denunciado, processado nem condenado. Não sofrerá as consequências penais nem civis de uma sentença condenatória. Trata-se, pois, no plano material de norma evidentemente benéfica e, como tal, deve ser aplicada a fatos ocorridos antes do início de sua vigência.

Não se pode esquecer, contudo, da face processual do acordo de não persecução penal. O instituto visa evitar os males de um processo penal que, ao final, ainda que redunde em condenação, não levará o réu ao cumprimento de pena privativa de liberdade. O processo em si mesmo já é um mal para o acusado, independentemente do seu desfecho. Por outro lado, movimentar a máquina judiciária, levando até o fim a persecução penal, para que, após a condenação, o acusado simplesmente pague uma multa ou, tenha que cumprir pena restritiva de direitos ou, ainda, no máximo, obtenha o sursis, não deixa de ser algo ineficiente e que representa desperdício de tempo e dinheiro.

Assim, por esse aspecto de ‘desprocessualização’ do acordo de não persecução penal, poder-se-ia supor que, se quando o art. 28-A do CPP entrou em vigor, houvesse processo instado, ou mesmo sentença proferida e estando pendente somente o julgamento do recurso, não haveria qualquer benefício em utilizar tal instituto, visto que a finalidade de sua aplicação não poderia ser atingida. O acordo de não persecução penal evita a própria instauração do processo. Mas no caso, já haveria um processo instaurado ou, até mesmo, em grau de recurso. Essas razões poderiam levar a uma resposta negativa sobre a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal, após transposto o momento procedimental do oferecimento da denúncia.

A reposta positiva, contudo, parece mais correta. O acordo de não persecução penal, indiscutivelmente, é mais benéfico do que a condenação penal. Por essa razão, sempre que não houver óbice à aplicação de tal instituto, será necessário buscar a solução consensual. Não se pode objetar com a irracionalidade de não se processar quem já está sendo processado ou mesmo quem já se submeteu a todo rito em primeiro grau, ou mesmo parte da fase recursal. As repercussões e vantagens do acordo de não persecução penal, no plano material, principalmente em relação à não caracterização da reincidência, autorizam sua aplicação aos processos em curso quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, mesmo se houver denúncia oferecida e, até mesmo, se o processo já se encontre em fase bastante desenvolvida.

O único óbice temporal é quando já houver a coisa jugada. Não se desconhece que o art. , caput , do Código Penal, prevê a aplicação da lei penal mais benéfica, mesmo após o trânsito em julgado da condenação penal. Mas essa regra se aplica aos casos de novatio legis in mellius , referente a institutos exclusivamente de direito penal. No caso de normas mistas, com conteúdo material e processual, a existência de um processo em curso é um limite que não pode ser transposto.

Voltando ao tema das normas processuais mistas, ou de conteúdo material, a corrente ampliativa define-as como aquelas que estabeleçam condições de procedibilidade, ou que disciplinem constituição e competência dos tribunais, que tratem dos meios de prova e sua eficácia probatória, dos graus de recurso, da liberdade condicional, da prisão preventiva, da fiança, das modalidades de execução da pena e todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.

Preferível a corrente extensiva. Todas as normas que disciplinam e regulam, ampliando ou limitando, direitos e garantias pessoais constitucionalmente assegurados, mesmo sob a forma de leis processuais, não perdem o seu conteúdo material. Com base nessa premissa, são normas processuais de conteúdo material as regras que estabelecem: as hipóteses de cabimento de prisões e medidas cautelares alternativas à prisão, os casos em que tais medidas podem ser revogadas, o tempo de duração de tais prisões, a possibilidade de concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, entre outras. Assim, quanto ao direito processual intertemporal, o intérprete deve, antes de mais nada, verificar se a norma, ainda que de natureza processual, exprime garantia ou direito constitucionalmente assegurado ao suposto infrator da lei penal. Para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lex gravior." (in BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal [livro eletrônico].

9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, RB-2.1).

Portanto, com base no referido precedente da Segunda Turma desta Suprema Corte, que, em caso análogo, reconheceu a retroação de norma processual penal mais benéfica em ações penais em curso até o trânsito em julgado, e na mais atual doutrina do processo penal, entendo que o acordo de não persecução penal é aplicável também aos processos iniciados em data anterior à vigência da Lei 13.964/2019, desde que ainda não transitados em julgados e mesmo que ausente a confissão do réu até o momento de sua proposição.

Isso posto, concedo a ordem para determinar ao Juízo de primeiro grau competente que remeta os autos ao Ministério Público para que verifique a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal ao caso sob exame (art. 192 do RISTF).

Comunique-se ao Juízo da 11a Vara Criminal da Comarca de Fortaleza/CE (Processo 0138737-21.2012.8.06.0001).

Publique-se.

Brasília, 7 de novembro de 2022.

Ministro Ricardo Lewandowski

Relator

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(STF - HC: 221878 CE, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 07/11/2022, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 08/11/2022 PUBLIC 09/11/2022)

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 221.969 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

PACTE.(S) : ROBERTO CASILLO CHURA

IMPTE.(S) : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

ADV.(A/S) : DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL

COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal Justiça - STJ, que negou provimento ao Agravo Regimental no Recurso Especial 1.990.371/SP, assim ementado:

"PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TELECOMUNICAÇÃO CLANDESTINA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL - ANPP. CABIMENTO ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. ‘A norma do art. 28-A do CPP, que trata do acordo de não persecução penal, somente é aplicável aos processos em curso até o recebimento da denúncia’ ( AgRg no REsp 1882601/PR, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, DJe 12/3/2021).

2. No caso dos autos, além do recebimento da denúncia criminal, o agravante já foi condenado pela prática delitiva apontada na peça acusatória, o que afasta a aplicação do disposto no art. 28-A do Código de Processo Penal - CPP. 3. Agravo regimental desprovido." (ementa obtida em consulta ao sítio eletrônico do STJ).

Busca-se a concessão da ordem "para reconhecer LIMINARMENTE o direito subjetivo dos recorrentes a ter a oferta da ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL, com remessa dos autos à Procuradoria-Geral da República, para que decida sobre o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal". (pág. 6 da petição inicial).

É o relatório. Decido.

Discute-se, nestes autos, a retroatividade do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), constante do art. 28-A do Código de Processo Penal - CPP, inserido pela Lei 13.964/2019.

Quanto ao tema, destaco que o Ministro Gilmar Mendes afetou ao Plenário, nos termos do art. 22, parágrafo único, b , do Regimento Interno do STF - RISTF, o julgamento do HC 185.913/DF, fundado na "[...] potencial ocorrência de tal debate em número expressivo de processos e a potencial divergência jurisprudencial, o que destaca a necessidade de resguardar a segurança jurídica e a previsibilidade das situações processuais, sempre em respeito aos direitos fundamentais e em conformidade com a Constituição Federal".

O relator delimitou, naqueles autos, as seguintes "questões- problemas":

"a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado?

b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou do processo?"

Aquele writ , desde então, aguarda o julgamento pelo Colegiado maior.

Como é de conhecimento geral, a Lei 13.964/2019, cunhada de "Pacote Anticrime" e em vigência desde 23/1/2020, introduziu fecundas mudanças na legislação processual, dentre elas a inclusão do art. 28-A no Código de Processo Penal, que trata do referido Acordo de Não Persecução Penal.

Cuida-se, a toda evidência, de instrumento consensual híbrido,

qualificado como negócio jurídico extrajudicial singular firmado entre o investigado, assistido por seu defensor, e o órgão do Ministério Público. Sim, porque as partes ajustam cláusulas negociais a serem cumpridas pelo contratante, de modo que, em contrapartida, ficará esvaziada a pretensão estatal, por meio da decretação da extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13º, do CPP), após o cumprimento daquelas condições.

Ademais, a legislação processual vigente discriminou, de forma exaustiva, as hipóteses em que a justiça penal negociada não poderá ocorrer, ou seja, indicou expressamente as situações de impedimento ao ANPP, conforme previsão tipificada no art. 28-A, § 2º, do CPP.

Quanto à possibilidade de retroação do ANPP, reconhecidamente norma processual penal mais benéfica, lembro que, ao julgar o HC 180.421/SP, a Segunda Turma desta Suprema Corte decidiu que "[a] expressão ‘lei penal’ contida no art. , inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo". Concluindo que "[o] § 5º do art. 171 do Código Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato de pública incondicionada para pública condicionada à representação como regra, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque, ao mesmo tempo em que cria condição de procedibilidade para ação penal, modifica o exercício do direito de punir do Estado ao introduzir hipótese de extinção de punibilidade, a saber, a decadência (art. 107, inciso IV, do CP)".

Assim, "[essa] inovação legislativa, ao obstar a aplicação da sanção penal, é norma penal de caráter mais favorável ao réu e, nos termos do art. , inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado".

Assentou-se, ademais, que, "[diferentemente] das normas processuais puras, que são orientadas pela regra do tempus regit actum (art. do CPP), as normas de conteúdo misto, quando favoráveis ao réu, devem ser aplicadas de maneira retroativa em relação a fatos pretéritos enquanto a ação penal estiver em curso, nos termos do que dispõe o art. , inciso XL, CF (‘a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’)".

Nessa esteira, Gustavo Badaró leciona que,

"[no] direito penal, o problema da sucessão de leis no tempo é resolvido segundo a garantia constitucional de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu ( CR, art. , caput, XL).

Já no campo processual penal, a norma geral de direito intertemporal encontra-se prevista no art. 2.º do CPP: ‘A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’. Trata-se do princípio tempus regit actum , que não se confunde com a ideia de retroatividade da lei processual.

[...]

Inegavelmente, há normas de caráter exclusivamente penal e normas processuais puras. Todavia, a doutrina também reconhece a existência das chamadas normas mistas ou normas processuais materiais. Embora não se discuta a existência de tais normas, há discrepância quanto ao conteúdo mais restrito ou mais ampliado que se deve dar a tais conceitos.

A corrente restritiva considera que são normas processuais mistas, ou de conteúdo material, aquelas que, embora disciplinadas em diplomas processuais penais, disponham sobre o conteúdo da pretensão punitiva. Assim, são normas formalmente processuais, mas substancialmente materiais, aquelas relativas: ao direito de queixa ou de representação, à prescrição e decadência, ao perdão, à perempção, entre outras.

Mesmo que se adote a corrente restritiva, inegavelmente devem ser consideradas normas processuais materiais, ou normas mistas, com aplicação retroativa, por serem mais benéficas, os seguintes dispositivos da Lei 13.964/2019: a exigência de representação para o crime de estelionato ( CP, art. 171, § 5º), a possibilidade de celebração de acordo de não persecução penal ( CPP, art. 28-A).

[...]

De outro lado, no que diz respeito ao acordo de não persecução ( CPP, art. 28-A), igualmente é válido o paralelo com a situação trazida pela Lei 9.099/1995, com a criação de outro instituto consensual, no caso, a transação penal. Reconheceu-se, sem qualquer vacilação, o conteúdo misto de tal instituto que, por evitar a condenação do acusado era mais benéfico e, assim, passível de ser aplicado aos processos em curso. Para quem esteja sendo processado, por crime que passou a admitir o acordo de não persecução penal, tal instituto é mais benéfico e deve ser aplicado retroativamente.

Com relação ao acordo de não persecução penal, a jurisprudência se encaminhou no sentido de que no caso de investigações em curso, poderia ter aplicação imediata a nova lei e ser formulada a proposta de acordo de não persecução penal mas, por outro lado, no caso de processo com denúncias já oferecidas quando entrou em vigor a lei, não seria possível a formulação de tal proposta. A 1a Turma do STF, no julgamento do HC 191.464/SC AgR, fixou a seguinte tese: ‘o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia’. A matéria foi afetada ao Plenário do STF, pelo Min. Gilmar Mendes, no HC nº 185.913/DF, que ainda não se pronunciou sobre o tema.

Há, contudo, entendimento contrário, no sentido de que o acordo de não persecução penal também se aplica aos processos em curso, desde que não tenha havido o trânsito em julgado. É a posição à qual nos filiamos.

Não se disputa a premissa de que o acordo de não persecução penal é um instituto de natureza mista, de direito penal e processual penal. O caráter benéfico, no plano do direito material é inegável: aceito e cumprido o acordo de não persecução penal, o imputado não será denunciado, processado nem condenado. Não sofrerá as consequências penais nem civis de uma sentença condenatória. Trata-se, pois, no plano material de norma evidentemente benéfica e, como tal, deve ser aplicada a fatos ocorridos antes do início de sua vigência.

Não se pode esquecer, contudo, da face processual do acordo de não persecução penal. O instituto visa evitar os males de um processo penal que, ao final, ainda que redunde em condenação, não levará o réu ao cumprimento de pena privativa de liberdade. O processo em si mesmo já é um mal para o acusado, independentemente do seu desfecho. Por outro lado, movimentar a máquina judiciária, levando até o fim a persecução penal, para que, após a condenação, o acusado simplesmente pague uma multa ou, tenha que cumprir pena restritiva de direitos ou, ainda, no máximo, obtenha o sursis, não deixa de ser algo ineficiente e que representa desperdício de tempo e dinheiro.

Assim, por esse aspecto de ‘desprocessualização’ do acordo de não persecução penal, poder-se-ia supor que, se quando o art. 28-A do CPP entrou em vigor, houvesse processo instado, ou mesmo sentença proferida e estando pendente somente o julgamento do recurso, não haveria qualquer benefício em utilizar tal instituto, visto que a finalidade de sua aplicação não poderia ser atingida. O acordo de não persecução penal evita a própria instauração do processo. Mas no caso, já haveria um processo instaurado ou, até mesmo, em grau de recurso. Essas razões poderiam levar a uma resposta negativa sobre a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal, após transposto o momento procedimental do oferecimento da denúncia.

A reposta positiva, contudo, parece mais correta. O acordo de não persecução penal, indiscutivelmente, é mais benéfico do que a condenação penal. Por essa razão, sempre que não houver óbice à aplicação de tal instituto, será necessário buscar a solução consensual. Não se pode objetar com a irracionalidade de não se processar quem já está sendo processado ou mesmo quem já se submeteu a todo rito em primeiro grau, ou mesmo parte da fase recursal. As repercussões e vantagens do acordo de não persecução penal, no plano material, principalmente em relação à não caracterização da reincidência, autorizam sua aplicação aos processos em curso quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, mesmo se houver denúncia oferecida e, até mesmo, se o processo já se encontre em fase bastante desenvolvida.

O único óbice temporal é quando já houver a coisa jugada. Não se desconhece que o art. , caput , do Código Penal, prevê a aplicação da lei penal mais benéfica, mesmo após o trânsito em julgado da condenação penal. Mas essa regra se aplica aos casos de novatio legis in mellius , referente a institutos exclusivamente de direito penal. No caso de normas mistas, com conteúdo material e processual, a existência de um processo em curso é um limite que não pode ser transposto.

Voltando ao tema das normas processuais mistas, ou de conteúdo material, a corrente ampliativa define-as como aquelas que estabeleçam condições de procedibilidade, ou que disciplinem constituição e competência dos tribunais, que tratem dos meios de prova e sua eficácia probatória, dos graus de recurso, da liberdade condicional, da prisão preventiva, da fiança, das modalidades de execução da pena e todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.

Preferível a corrente extensiva. Todas as normas que disciplinam e regulam, ampliando ou limitando, direitos e garantias pessoais constitucionalmente assegurados, mesmo sob a forma de leis processuais, não perdem o seu conteúdo material. Com base nessa premissa, são normas processuais de conteúdo material as regras que estabelecem: as hipóteses de cabimento de prisões e medidas cautelares alternativas à prisão, os casos em que tais medidas podem ser revogadas, o tempo de duração de tais prisões, a possibilidade de concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, entre outras. Assim, quanto ao direito processual intertemporal, o intérprete deve, antes de mais nada, verificar se a norma, ainda que de natureza processual, exprime garantia ou direito constitucionalmente assegurado ao suposto infrator da lei penal. Para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lex gravior." (in BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal [livro eletrônico].

9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, RB-2.1).

Portanto, com base no referido precedente da Segunda Turma desta Suprema Corte, que, em caso análogo, reconheceu a retroação de norma processual penal mais benéfica em ações penais em curso até o trânsito em julgado, e na mais atual doutrina do processo penal, entendo que o acordo de não persecução penal é aplicável também aos processos iniciados em data anterior à vigência da Lei 13.964/2019, desde que ainda não transitados em julgados e mesmo que ausente a confissão do réu até o momento de sua proposição.

Isso posto, concedo a ordem para determinar ao Superior Tribunal de Justiça que remeta os autos à Procuradoria-Geral da República para que verifique a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal ao caso sob exame (art. 192 do RISTF).

Comunique-se.

Publique-se.

Brasília, 3 de novembro de 2022.

Ministro Ricardo Lewandowski

Relator

(STF - HC: 221969 SP, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 03/11/2022, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 04/11/2022 PUBLIC 07/11/2022)

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