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1 de Maio de 2024

STF - ordem concedida de ofício para restabelecer a sentença absolutória - Crime da Lei de Drogas

ano passado

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 222.117 PA RANÁ

RELATOR : MIN. EDSON FACHIN

PACTE.(S) : MATEUS LEMES PONTES SOARES

IMPTE.(S) : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

ADV.(A/S) : DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL

COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão: Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão proferido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, assim ementado (AgRg no RESp 1.971.571/PR - eDOC 5):

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. TRÁFICO DE DROGAS. ABSOLVIÇÃO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CONSUMO. REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. Na hipótese, entender de modo contrário ao estabelecido pelo eg. Tribunal a quo e absolver o recorrente ou desclassificar a conduta, como pretende a defesa, demandaria o revolvimento, no presente recurso, do material fático-probatório dos autos, inviável nesta instância. Agravo regimental desprovido

Narra o impetrante que: a) o paciente foi absolvido pelo Juízo de primeiro grau da imputação da prática do crime previsto no art. 33, caput, da Lei 11.343/2006, com fulcro no art. 386, VI, do CPP; b) o Tribunal local deu provimento à apelação ministerial para condenar o paciente pela prática de tráfico de drogas em razão da apreensão de 53g de maconha e do desemprego do paciente à época dos fatos; c) o exame da pretensão encartada desde a origem não demanda qualquer revolvimento fático-probatório; d) não há, nos autos, qualquer prova contundente de que a droga era destinada à traficância; e) constou da sentença que não foi encontrado com o paciente nenhum valor em dinheiro que pudesse ser proveniente da comercialização dos ilícitos ou qualquer instrumento usual do tráfico, tais quais balança de precisão, caderno de anotações ou embalagens para individualizar os entorpecentes; f) "a abordagem do Paciente não foi precedida de maiores averiguações, bem assim a autoridade policial não assegurou qualquer ato de mercancia observado em face do Paciente"; g) "[a]o se considerar a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, a conduta do agente autoriza apenas a adequação típica do fato ao que prevê o artigo 28 da Lei de Drogas, o qual também dispõe acerca das condutas ‘adquirir’, ‘guardar’, ‘tiver em depósito’, ‘transportar ou trouxer consigo’".

À vista do exposto, pugna, liminarmente, pela concessão da ordem para que o paciente seja absolvido, com fulcro no art. 386, VII, do CPP ou, subsidiariamente, para que a conduta seja desclassificada para aquela prevista no art. 28 da Lei de Drogas.

É o relatório. Decido.

1. Cabimento do habeas corpus:

A jurisprudência desta Corte é firme no sentido do não cabimento de habeas corpus destinado ao reexame dos pressupostos de admissibilidade de recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido:

"PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECUSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS . PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA PELO STF. INADMISSÃO DE RECURSO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICABILIDADE. 1. A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não cabe habeas corpus para reexaminar os pressupostos de admissibilidade de recurso interposto perante Tribunal Superior (vg. HC

111.324, de que fui Redator para o acórdão; HC 109.156, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 115.357-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli). 2. [...]" ( RHC 138.371 AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 07.11.2017, grifei)

"Habeas corpus . Penal. Tráfico de drogas praticado nas imediações de estabelecimento prisional (art. 33 c/c o art. 40, inciso III, da Lei nº 11.343/06). Insurgência contra os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto perante o Superior Tribunal de Justiça. Inadmissibilidade de discussão na via do habeas corpus. Precedentes. Afastamento da causa de aumento de pena do art. 40, inciso III, da Lei de drogas. Impossibilidade. Constatação de comercialização de drogas nas imediações de estabelecimento prisional. Motivo hábil que autoriza a incidência da causa de aumento da pena. Irrelevância de o agente infrator visar os frequentadores daquele local. Precedentes. Ordem denegada. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está sedimentada na impossibilidade do uso do habeas corpus para se reexaminarem os pressupostos de admissibilidade de recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça . Precedentes. 2. [...]" ( HC 138.944, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 21.03.2017, grifei)

2. Análise da possibilidade de concessão da ordem de ofício no caso concreto:

Devido ao caráter excepcional da superação da jurisprudência da Corte, a concessão da ordem de ofício configura providência a ser tomada tão somente em casos absolutamente aberrantes e teratológicos, em que a ilegalidade deve ser cognoscível de plano, sem a necessidade de produção de quaisquer provas ou colheita de informações, o que, no caso concreto, se verifica.

3. Inicialmente, esclareço que a análise da questão versada na inicial

prescinde de revolvimento da matéria fático-probatória dos autos, providência que seria inviável na via estreita do habeas corpus . Em verdade, o caso desafia o enfrentamento de questão eminentemente jurídica, relativa à robustez da prova dos elementos que configuram o tipo previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006.

Tal proceder está em consonância com a jurisprudência pacífica desta Corte, no sentido de que a "mera revaloração jurídica dos fatos, a partir do acervo colhido nas instâncias ordinárias, distingue-se do revolvimento do conjunto fático e probatório dos autos." ( HC 192.115 ED, Relator (a): ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe 17.02.2021)

Como é cediço, uma condenação requer provas concretas e objetivas de que o agente tenha praticado ou concorrido para a prática do crime. Quanto ao modelo de constatação probatório (ou standard) exigível para lançar uma condenação criminal, a doutrina especializada ressalta ser necessária a prova acima da dúvida razoável (Knijnik, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 78).

Em nosso ordenamento jurídico, vigora o princípio da presunção de inocência (art. , inciso LVII, da Constituição Federal), que tem origem no direito romano, na regra do in dubio pro reo. Trata-se de princípio vetor do processo penal brasileiro, orientado pelo sistema acusatório e que tem, dentre as suas características, o ônus da prova da culpa atribuído à acusação.

Indissociável dos postulados do contraditório e da ampla defesa, a presunção de inocência impõe tanto um dever de tratamento quanto um dever de julgamento. O dever de tratamento exige que a pessoa acusada seja tratada, durante todo o curso da ação penal, como presumidamente inocente; por outro lado, o dever de julgamento significa que recai exclusivamente sobre o órgão de acusação o ônus de comprovar de maneira inequívoca a materialidade e a autoria do crime narrado na denúncia - e não sobre o acusado o ônus da demonstração de sua inocência -, de sorte que, ao final da instrução processual, a dúvida deve inexoravelmente gerar decisão favorável ao réu.

Efetivamente, não pode o julgador atribuir ao réu o dever de provar a inocência, nem fundamentar seu convencimento com base em meras presunções, pois incumbe ao Ministério Público o ônus da prova da configuração do tipo e da culpabilidade do agente; ao Juiz, o dever de proferir decisões condenatórias com lastro em provas robustas.

Nesse sentido, trago à colação os seguintes precedentes deste Tribunal:

E M E N T A: "HABEAS CORPUS" [...] AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA. - Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes.

- Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais ("essentialia delicti") que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente.

- Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita. ( HC 84580, Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/08/2009, DJe-176 DIVULG 17- 09-2009 PUBLIC 18-09-2009 EMENT VOL-02374-02 PP-00222 RT v. 98, n. 890, 2009, p. 500-513)

PENAL E PROCESSO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO FUNDADA SOMENTE EM ELEMENTOS INFORMATIVOS OBTIDOS NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL NÃO CORROBORADOS EM JUÍZO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. AÇÃO PENAL IMPROCEDENTE. 1 . A presunção de inocência exige, para ser afastada, um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sendo imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, para a atribuição definitiva ao réu, de qualquer prática de conduta delitiva, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova . 2. Inexistência de provas produzidas pelo Ministério Público na instrução processual ou de confirmação em juízo de elemento seguro obtido na fase inquisitorial e apto a afastar dúvida razoável no tocante à culpabilidade do réu.

3. Improcedência da ação penal. ( AP 883, Relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 20/03/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe- 092 DIVULG 11-05- 2018 PUBLIC 14-05-2018)

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL VERIFICADO. ORDEM CONCEDIDA PARA RESTABELECER A DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE

SE NEGA PROVIMENTO. ( HC 187266 AgR, Relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 24/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-216 DIVULG 28-08- 2020 PUBLIC 31-08-2020)

Na espécie, o Magistrado de primeiro grau absolveu o paciente e o corréu Guilherme da imputação da prática do crime de tráfico de drogas com base nestes fundamentos (eDOC 3, p. 462/466 - grifei):

AUTORIA

A autoria delitiva, por sua vez, não restou suficientemente demonstrada, tendo em vista que não há provas concretas de que os entorpecentes apreendidos em posse dos acusados GUILHERME OLIVEIRA DE SOUZA e MATHEUS LEMES PONTES SOARES fossem destinados à entrega ao consumo de terceiros.

Desde a fase investigatória foram realizadas diligências visando esclarecer a autoria da prática criminosa, especialmente a oitiva dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante dos acusados e o interrogatório deles.

Foram apreendidos com o acusado GUILHERME 30g (trinta gramas) de substância entorpecente e, com o acusado MATHEUS 53g (cinquenta e três gramas) de substância entorpecente (eventos 1.7 e 1.8).

Os entorpecentes foram periciados e mostraram-se positivos para Cannabis sativa L., popularmente conhecida como maconha (cf. laudo pericial de evento 120.2).

Durante a instrução processual, como visto, os policiais militares confirmaram suas versões sob o manto do contraditório e da ampla defesa e os acusados negaram a autoria delitiva que lhes foi imputada.

Portanto, após a análise de todo o plexo probatório produzido

nos autos, observa-se que a autoria delitiva imputada aos acusados GUILHERME OLIVEIRA DE SOUZA e MATHEUS LEMES PONTES SOARES no primeiro e segundo fatos da denúncia é improcedente tendo em vista que não há provas concretas de que os entorpecentes que eles traziam destinavam-se à entrega a consumo de terceiros, não restando suficientemente caracterizado o delito tipificado no artigo 33, caput da Lei nº 11.343/2006.

Note-se, de início, que ambos os acusados, em seus interrogatórios judiciais (eventos 451.1 e 507.1), negaram a autoria delitiva que lhes foi imputada, afirmando que os entorpecentes que possuíam destinavam-se exclusivamente ao seu consumo pessoal.

Ainda, conforme se extrai dos depoimentos judiciais prestados pelos policiais militares responsáveis pela prisão (eventos 209.1 e 414.1), a abordagem do acusado GUILHERME decorreu exclusivamente do fato de ele ter dispensado invólucro ao visualizar a viatura policial. Por sua vez, a abordagem do acusado MATHEUS decorreu do fato de que foi visto pelos policiais saindo da residência de LUCAS, que teria sido apontada por GUILHERME como o local onde adquiriu os entorpecentes.

Ora, tais condutas são perfeitamente compatíveis com a condição de usuário de entorpecentes, não apontando, por si só, que o delito praticado pelos réus era o tráfico.

Ademais, noto que os únicos objetos apreendidos com ambos os acusados foram as substâncias entorpecentes (eventos 1.7 e 1.8), não sendo encontrado em sua posse nenhum valor em dinheiro que pudesse ser proveniente da comercialização dos ilícitos ou qualquer instrumento usual do tráfico, tais quais balança de precisão, caderno de anotações ou embalagens para individualizar os entorpecentes.

Além disso, observa-se que não há nos autos nenhuma notícia de narcodenúncia indicando que os acusados praticassem o tráfico de entorpecentes, que eles não foram surpreendidos pelos policiais militares em clara situação de traficância e que não foi identificado nenhum usuário que eventualmente houvesse adquirido entorpecentes deles, não havendo nenhuma outra situação que justificasse a abordagem policial.

Ora, todos estes elementos indicam, com suficiente grau de segurança, que a destinação dos entorpecentes apreendidos nos eventos 1.7 e 1.8 efetivamente era o consumo pessoal pelos denunciados GUILHERME OLIVEIRA DE SOUZA e MATHEUS LEMES PONTES SOARES.

É de se ressaltar, quanto ao ponto, que é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a quantidade ou natureza da droga não pode ser utilizada como único fator para analisar sua destinação. Assim, diante da completa ausência de provas acerca da mercancia da droga, não há como se sustentar, com o grau de certeza necessário ao decreto condenatório, que sua destinação era o tráfico, não se podendo condenar os réus com base, apenas, em probabilidades.

Neste sentido:

(...)

Ressalto ainda, além de tudo que já foi apontado, que no caso dos autos não foi produzida nenhuma prova contundente quanto a conduta dos denunciados que possa conduzir a conclusão de que traficavam drogas, uma vez que não foi realizada investigação mais aprofundada pelos policiais que realizaram a prisão em flagrante.

Ademais, não foram procedidas campanas nas proximidades do local, não foram realizadas investigações preliminares, não foram identificados os fornecedores da droga, não foram documentadas imagens de comércio de entorpecentes realizado, não foram ouvidos usuários que tenham adquirido drogas com os acusados, enfim, não foi realizada nenhuma diligência pelos policiais que permitisse concluir que os réus estivessem comercializando as drogas que foram apreendidas.

Ressalte-se, neste ponto, que pairando dúvida relevante acerca da autoria delitiva, sempre tal dúvida deverá operar em favor do acusado:

(...)

Assim, considerando que o Ministério Público não se desincumbiu de seu ônus probatório, bem como considerando a existência de relevantes dúvidas quanto à destinação dos entorpecentes apreendidos com os acusados, sua absolvição é o único caminho possível.

Isso porque um juízo condenatório não pode ser fundamentado em meras probabilidades, exigindo a configuração do crime em toda a sua estrutura analítica, sem espaço para a dúvida, sob pena de se incorrer em injustiça, condenando-se um possível inocente.

Em outros termos, "A prova capaz de embasar o peso de uma condenação deve ser sólida e congruente, apontando, sem qualquer dúvida, a ocorrência dos fatos e os indivíduos denunciados como autores do fato criminoso, sob pena de se fundar um veredicto condenatório baseado em ilações, deduções ou presunções, não admitidas em matéria criminal" (TJ-RS - ACR: 70053946505 RS, Relator: Ícaro Carvalho de Bem Osório, Data de Julgamento: 08/08/2013, Sexta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/08/2013).

Ademais, não se pode esquecer do caráter estigmatizante e repressor do direito penal, de modo que sua incidência se justifica apenas quando realmente existem provas aptas a ensejar o decreto condenatório, o que não se verifica no caso em análise em relação aos acusados.

Repise-se que a "desclassificação" do crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/06) para aquele referente ao consumo pessoal (art. 28 da Lei 11.343/06) não é possível.

Como se sabe, no processo penal, o acusado se defende dos fatos narrados na denúncia e a peça acusatória deixou de descrever o elemento subjetivo de tal tipo penal (consumo de substância entorpecente), restando impossível a desclassificação pretendida pelas partes, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa, nos moldes do artigo , inciso LV, da Constituição Federal, bem como do princípio da correlação.

(...)

Por conseguinte, considerando que as provas angariadas durante a instrução processual não foram capazes de ensejar a condenação dos denunciados GUILHERME OLIVEIRA DE SOUZA e MATHEUS LEMES PONTES SOARES no crime tráfico de drogas descrito nos dois primeiros fatos da peça vestibular, a absolvição à luz do princípio in dubio pro reo é medida que se impõe.

Em sede de apelação, a Corte local deu provimento à apelação ministerial para condenar o paciente e o corréu Guilherme pelo crime de tráfico de drogas (eDOC 3, p. 675/681 - grifei):

(...)

Objetiva o Parquet a condenação dos réus Guilherme Oliveira de Souza e de Mateus Lemes Pontes Soares pela prática do crime de tráfico de drogas (art. 33, caput da Lei nº 11.343/06) ao argumento de que a materialidade e a autoria restaram devidamente comprovadas.

Pois bem.

O fato delitivo atribuído a Guilherme Oliveira de Souza está descrito no FATO I da denúncia. Lá, consta que ele trazia consigo 18 buchas de maconha (aproximadamente 30 gr). Já o imputado a Mateus Lemes Pontes Soares está detalhado no FATO II, por ele estar com 01 (um) tijolo da substância entorpecente conhecida como maconha, totalizando 53g (cinquenta e três gramas), embalado em papel alumínio.

A materialidade dos delitos é incontroversa e a autoria do crime do tráfico de drogas, não obstante os judiciosos fundamentos que culminaram na absolvição dos inculpados, tem-se que os elementos probatórios carreados aos autos revelam a prática do crime de tráfico de drogas, segundo se apresta a analisar adiante.

Pablio André dos Santos Garmeiro, policial militar que efetuou a prisão em flagrante dos recorridos, disse em Juízo:

"no dia dos fatos estava realizando patrulhamento com seu parceiro pelo Campo de Santana, na Rua Lucas de Carvalho, quando visualizaram um indivíduo andando na rua; quando este indivíduo percebeu a aproximação dos policiais, demonstrou nervosismo e de imediato dispensou um invólucro no meio do mato. Afirmou que procederam à abordagem e encontraram o objeto dispensado, verificando que se tratava de um pacote com 16 (dezesseis) invólucros de substância análoga à maconha; questionaram o sujeito e ele confirmou que realizava o comércio da substância pela região. Informou que questionaram onde o sujeito havia adquirido os entorpecentes e ele apontou que foi em um local próximo; foram até a residência indicada pelo suspeito onde encontraram outro indivíduo saindo da casa. Contou que abordaram este indivíduo e o revistaram, localizando em seu bolso mais um invólucro de maconha, com aproximadamente 50g (cinquenta gramas). Afirmou que questionaram se ele havia adquirido os entorpecentes naquela residência e ele informou que sim, de modo que adentraram e encontraram um terceiro indivíduo. Relatou que este terceiro confirmou que os entorpecentes haviam saído de dentro do imóvel, de modo que realizaram buscas e localizaram balanças de precisão, celulares e uma embalagem de papel alumínio que era semelhante àquela encontraram em posse do segundo sujeito. [...]. Confirmou que o primeiro sujeito abordado foi o acusado GUILHERME; ele estava a aproximadamente 02 (duas) ou 03 (três) quadras de distância da residência. Informou que GUILHERME relatou que havia adquirido as drogas naquela residência, mas não sabe dizer se era o proprietário quem lhe determinava que realizasse a venda. Disse que MATHEUS, que foi abordado saindo da residência, estava com um bloco de maconha inteiro; não sabe se ele falou que as drogas eram para comércio ou para uso pessoal. Ainda, disse que o acusado LUCAS, que era o proprietário da residência, confirmou que havia vendido as drogas para MATHEUS. [...] Afirmou que não se recorda de ter apreendido nenhuma quantia em dinheiro em posse de MATHEUS; não viu se havia câmeras próximas ao local da abordagem e não se recorda de nenhuma testemunha que estivesse passando pelo local. Confirmou que GUILHERME foi abordado na Rua Lucas Carvalho, a 02 (duas) ou 03 (três) quadras de distância da casa de LUCAS; [...]. Confirmou que foi seu parceiro que fez a revista no GUILHERME e, pelo que se recorda, não encontrou nenhum valor em dinheiro.

Seu colega de farda, Jeferson Luis Ribeiro, asseverou sob o crivo do contraditório:

"o acusado MATHEUS estava saindo da residência, fechando o portão, quando o abordaram; ele estava sozinho. Contou que não se recorda se havia dinheiro com MATHEUS, mas ele possuía uma pequena quantia de entorpecentes; não sabe se havia câmera no local. Relatou que no dia dos fatos sua equipe estava em patrulhamento quando avistou o acusado GUILHERME, que já haviam abordado anteriormente em posse de entorpecentes; a rua em que o abordaram era muito conhecida pelo tráfico. Confirmou que após avistarem GUILHERME viram ele dispensando um invólucro, que encontraram após o abordarem e verificaram que se tratava de entorpecentes; ele relatou que havia adquirido as drogas em uma residência próxima. Informou que se deslocaram até o local e avistaram o acusado MATHEUS saindo da casa; o abordaram e encontraram entorpecentes em sua posse. Afirmou que entraram na residência, onde encontraram o acusado LUCAS; pouco depois o pai dele chegou ao local e autorizou as buscas. Informou que encontraram maconha, crack e cocaína na residência de LUCAS, parte no quarto dele e parte em outras partes da residência; os comprovantes de depósito que encontraram foram apreendidos porque acreditaram que pudessem ser de pagamentos de drogas adquiridas. Afirmou que as drogas que foram encontradas na casa de LUCAS estavam embaladas da mesma foram que aquelas que foram apreendidas com GUILHERME e MATHEUS. Disse que o pai de LUCAS acompanhou parte das buscas realizadas na residência; ele afirmou que desconfiava que LUCAS estava realizando o tráfico. Apontou que não se recorda se questionou LUCAS se ele vendeu as drogas para GUILHERME e MATHEUS. Contou que do que se recorda, a primeira abordagem que realizou em GUILHERME foi decorrente de uma denúncia de um vizinho; não se recorda de ter abordado LUCAS anteriormente. Confirmou que os entorpecentes que encontraram com GUILHERME estavam já separados em buchas, preparadas para a venda; baseado em sua experiência profissional, pode afirmar que qualquer pessoa que é encontrada com mais de 05 (cinco) buchas de entorpecentes ou é traficante ou está transportando as drogas

Já os recorridos, sob o crivo do contraditório, negaram a autoria delitiva, sustentando que as drogas que traziam consigo se destinavam ao consumo próprio.

Pois bem.

As testemunhas policias, desde a fase inquisitiva, afirmaram que Guilherme Oliveira de Souza, ao ser abordado, admitiu que o entorpecente apreendido com ele se destinava à traficância.

Como sabido, a palavra dos agentes públicos, quando linear, coerente e harmônica entre si, é merecedora de credibilidade, máxime porque inexistem evidências do interesse particular daqueles na incriminação do increpado.

Em casos análogos, a jurisprudência proclama:

(...)

A propósito, a admissão feita aos policias militares é verossímil, quando se observa a quantidade de entorpecente apreendida com Guilherme: 18 buchas, ou seja, 30 gr de maconha.

Ora, para alguém que se declarou desempregado, difícil crer que teria condições de adquirir em uma só oportunidade R$ 150,00 em maconha, tendo em vista que um cigarro pesa 1g e a unidade é comercializada por um valor aproximado de R$ 5,00, o que torna nada plausível a tese de que a adquiriu para consumo próprio.

E o mesmo se diz em relação a Mateus Lemes Pontes Soares, com o qual foram apreendidos 53 gr de maconha (avaliada em aproximadamente R$ 265,00[iii]) .

Tal quantidade não se mostra insignificante considerando o Estudo Técnico elaborado pelo Departamento Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas da Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do PR de DEZ 2014. Confira-se:

(...)

Conquanto Mateus não tenha assumido a traficância de drogas aos policiais militares, custoso acreditar que a substância estupefaciente que trazia consigo era para consumo pessoal, seja pela considerável quantidade apreendida; seja porque ele se encontrava desempregado na época dos fatos, não tendo condições para desembolsar, de uma só vez, mais de R$ 260,00 apenas para estocar droga para, tão somente, consumir.

É cediço que a quantidade de droga não constitui o único fator a ser considerado para aferir se o entorpecente visava ao consumo pessoal, porque, como bem leciona Renato Brasileiro de Lima:

"É evidente que o critério da natureza e da quantidade da droga apreendida não pode ser utilizado como fator exclusivo para distinguir o tráfico do porte de drogas para consumo pessoal. Afinal, até mesmo para descaracterizar o tráfico de drogas, é muito comum que traficantes tenham à disposição pequena quantidade de drogas"[iv].

Por isso a Lei Antidrogas relacionou diversos critérios para avaliar se a droga é ou não destinada a consumo próprio - § 2º, art. 28 da Lei nº 11.343/06 -.

Luiz Flávio Gomes diz serem "(...) relevantes: o objeto material do delito (natureza e quantidade da droga), o desvalor da ação (local e condições em que ela se desenvolveu) assim como o próprio agente de fato (suas circunstâncias sociais e pessoais, condutas e antecedentes). É importante saber: se se trata de ‘droga’ pesada (cocaína, heroína etc.) ou ‘leve’ (maconha, v.g.); a quantidade dessa droga (assim como qual é o consumo diário possível); o local da apreensão (zona típica de tráfico ou não); as condições da prisão (local da prisão, local de trabalho do agente etc.); profissão do sujeito, antecedentes etc".[v]

In casu, rememora-se que (a) os recorridos estavam desempregados; (b) foram abordados em um conhecido local de mercancia de entorpecente; (c) traziam consigo considerável quantidade de substância entorpecente; (d) Guilherme já foi condenado pelo crime de tráfico de drogas (autos nº 0000239- 17.2018.8.16.0013), circunstâncias essas que levam a crer que a droga apreendida com os inculpados se destinava à traficância.

Ademais, é sabido que a mera condição de usuário não afasta a traficância, especialmente pelo fato de que é muito comum que usuários se tornem traficantes para sustentar o vício.

Nesta toada, proclama a jurisprudência:

(...)

Destarte, porque os elementos informativos colhidos na fase policial e os indícios e provas produzidos judicialmente tornam inequívoca a configuração do delito de tráfico de drogas na modalidade "trazer consigo", impositiva a reforma da sentença para fins de condenar Guilherme Oliveira de Souza e Mateus Lemes Pontes Soares nas sanções do art. 33, caput da Lei nº 11.343/06.

Noto que, diversamente do que conclui o Tribunal local, a quantidade de droga apreendida, a situação de desemprego, o local do flagrante (em via pública, próximo à residência do corréu Lucas Silva Almeida, condenado por tráfico de drogas) e o antecedente criminal de Guilherme não são elementos suficientes para inferir a mercancia em relação ao paciente e ao corréu, sobretudo considerando as circunstâncias do flagrante (a quantidade de entorpecente não é expressiva: 53 gramas de maconha com Matheus e 30 gramas de maconha com Guilherme) e a inexistência de diligências policiais anteriores ou posteriores ao fato.

Como bem assentou o Juízo de primeiro grau, as circunstâncias do flagrante não comprovam a destinação da droga, mormente porque o simples fato de os acusados terem sido surpreendido com o entorpecente em local próximo ao ponto de tráfico não permite identificá-los como traficante.

A ausência de ocupação lícita também não deve ser sopesada em seu desfavor, especialmente à vista da alta taxa de desemprego do país e da tenra idade do paciente. Trata-se, em verdade, de presunção discriminatória, inservível para demonstrar a suposta atuação do paciente como traficante.

Tampouco a confissão informal - que teria sido deduzida por um dos acusados no momento do flagrante, antes mesmo de ter-lhes sido garantido o direito ao silêncio - é elemento suficiente a amparar o édito condenatório.

Registro ainda que, em caso similar ao dos autos, a Primeira Turma do STF ( HC 85.457/SP, sessão de 22.03.2005) anulou condenação que se apoiava em elementos insuficientes (depoimento de policial e confissão extrajudicial posteriormente retratada em juízo). Na oportunidade, a Turma assentou que "[n]ão se pode restabelecer a validade da confissão extrajudicial, negando-se valor à retratação, com fundamento na delação dos có- reus e porque o paciente deixou de ‘dar versão hábil para o seu envolvimento nos fatos’".

Logo, considerando que o acórdão condenatório restou embasado em dados subjetivos (presunções) e que não foram indicadas provas idôneas quanto à configuração do tipo do tráfico de drogas, é o caso de restabelecer a sentença absolutória.

4. Posto isso, com fulcro no art. 192 do RISTF, não conheço da ação, mas concedo a ordem, de ofício, para restabelecer a sentença absolutória em favor de Matheus Lemes Pontes Soares (ação penal 0015210-07.2018.8.16.0013).

o corréu Guilherme Oliveira de Souza, estendo-lhe a ordem ora concedida, nos termos do artigo 580 do CPP.

Comunique-se, com urgência, ao Juízo da causa.

Comunique-se, ainda, ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e ao Superior Tribunal de Justiça, para dar-lhes ciência desta decisão.

Publique-se. Intime-se.

Brasília, 1 de dezembro 2022.

Ministro EDSON FACHIN

Relator

Documento assinado digitalmente

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(STF - HC: 222117 PR, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 01/12/2022, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 06/12/2022 PUBLIC 07/12/2022)

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