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3 de Maio de 2024

Origem e crítica ao Regime Disciplinar Diferenciado

Publicado por Alcir Junior
há 5 anos

1 Estado, Crime e Prisão

Quanto ao conceito de Estado, Thomas Hobbes e John Locke partem da premissa de um pacto social. O Estado seria uma instituição protetora, destinada a servir o bem comum, e o governo o bem do povo.

Antes desse ajuste, os homens viviam no “estado de natureza” ou “estado de selvageria”, em uma guerra de todos contra todos: “o homem é o lobo do homem”.

Por meio desse acordo racional, os indivíduos abririam mão de parcela de sua liberdade para criar uma instituição que lhes garantiria a preservação da vida. O Estado seria grandioso e teria o poder da criatura mitológica Leviatã, um quase-Deus, sendo imprescindível à defesa dos indivíduos e à manutenção da ordem contra o estado de barbárie inerente ao homem.

O controle do homem pelo Estado se daria através de um corpo disciplinador, ou seja, pelo monopólio do direito de punir. A penalidade passaria a ser um direito, em contraposição à guerra de todos contra todos. Nesse sentido, o Direito Penal é uma construção política que os governados aceitam.

Locke entende necessário o “corpo disciplinador”. Para ele, o Estado deve garantir o liberalismo econômico, a preservação da propriedade e do patrimônio. O Estado é garantidor das iniciativas privadas e das liberdades individuais.

Por sua vez, Nicolau Maquiavel compreende o Estado como uma fundação absoluta do homem. Em “O Príncipe”, ele pública um conjunto de recomendações técnicas para a instituição e a manutenção do Estado, e, por conseguinte, para a estabilidade social. A origem e o fundamento do poder político do soberano é a malignidade do ser humano, que precisa ser contida, inclusive com o uso da força e da violência, caso necessário.

Pierre Bourdieu adverte que se deve precaver contra as pré-noções no sentido de Durkheim, contra as ideias feitas, contra a sociologia espontânea, pois se corre o risco de aplicar ao Estado um pensamento de Estado, porquanto as próprias estruturas da consciência através das quais os indivíduos constroem o mundo social e esse objeto particular que é o Estado são provavelmente produto do Estado.

Para referido autor, crítico de inúmeros teóricos, a tarefa de conceituar Estado é tão complexa, que ele próprio se abstém de dar uma definição pronta e acabada, limitando-se a sugerir algo temporário:

“se eu tivesse de dar uma definição provisória daquilo a que chamamos “Estado”, diria que o setor do campo do poder que podemos designar por “campo administrativo” ou “campo da função pública”, esse setor no qual se pensa particularmente quando se fala do Estado, sem mais explicações, define-se pela detenção do monopólio da violência física e simbólica legítima. Há já alguns anos, fiz uma adição à célebre definição de Max Weber que define Estado como o “monopólio da violência legítima”, que corrijo, acrescentando: “monopólio da violência física e simbólica”; poder-se-ia até dizer: “monopólio da violência simbólica legítima”. (BOURDIER, p. 16)

Para justificar a existência do Estado, colhe-se o ponto comum de que há um princípio oculto: o Estado se manifesta pela manutenção da ordem pública, que é oposto da desordem, da anarquia, da guerra civil.

No entanto, deve-se reconhecer que a violência e o crime sempre existirão no meio social; o que se deve buscar é mantê-los em níveis reduzidos, aceitáveis.

Cesare Beccaria busca a origem e o fundamento do direito de punir. Referido pensador, que também é um contratualista, ressalta que a reunião dos indivíduos visa à preservação da ordem social, da harmonia. Ele defende a justeza da pena, tendo sido o primeiro a exigir uma proporcionalidade entre a infração perpetrada e a sanção correspondente.

Beccaria pode ser considerado o pioneiro da democratização do Direito Penal, preconizando que o Estado deve utilizar a pena unicamente com o desiderato de prevenir o crime, e não como forma de vingança. Ele chama atenção para a gravidade do delito, ressaltando que o grau de comprometimento da ordem deve ser sopesado para imposição de pena proporcional.

Por sua vez, Foucault preconiza que o objetivo do Poder é tornar as pessoas dóceis, disciplinadas. O Poder está difuso; não se concentra só no Estado. Em “Vigiar e Punir”, o autor expõe os dois tipos de pena: o suplício e a privação da liberdade.

No Suplício, o corpo sofre a punição, significando esta uma vingança do rei. Foucault explicita ter havido uma evolução em direção à prisão, que passa a ser uma pena disciplinadora, corretora, “normalizadora”, uma “Governamentalidade”.

Foucault cita o Panóptico de Bentham como a principal expressão dessa tecnologia do poder. Tal modelo arquitetônico de vigilância constante, que existe nas escolas e nos hospitais, por exemplo, estabelece a onipresença da estrutura do cárcere em diferentes meios sociais.

“O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. [...] Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ato está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente.” (In Vigiar e Punir, p. 194)

Em “Microfísica do Poder”, Foucault ressalta o fracasso da prisão, na medida em que o seu objetivo não é alcançado, já que tal resposta estatal não melhora o indivíduo: “desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade” (p. 216).

Ele, então, questiona qual é a real função do encarceramento. E ele mesmo responde que a prisão tem por fim manter os aparatos repressivos do Estado, já que a prisão é um multiplicador de criminosos:

“Seria preciso ser tão ingênuo quanto Baudelaire para imaginar que a burguesia é tola e pudica. Ela é inteligente e cínica. Bastar apenas ler o que ela dizia de si mesma e, ainda melhor, o que dizia dos outros. A sociedade sem delinquência foi um sonho do século XVIII que depois acabou. A delinquência era por demais útil para que se pudesse sonhar com alto tão tolo e perigoso como uma sociedade sem delinquência. Sem delinquência não há polícia. O que torna a presença policial, o controlo policial tolerável pela população senão o medo do delinquente? Você fala de um ganho prodigioso. Essa instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por isso. Aceitamos entre nós essa gente de uniforme, armada, enquanto nós não temos esse direito, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não houvesse os delinquentes? Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinquentes.?” (In Microfísica do Poder, p. 225)

A falência do sistema prisional brasileiro é patente, onde, de um lado, propala-se haver uma quantidade exacerbada de inquéritos policiais e ações penais em andamento, o que tem exigido providências por parte do Conselho Nacional de Justiça para atingimento de metas especialmente direcionadas a resolução dessas demandas[1]; e, de outro, não se evidencia a pretendida redução da prática de novos delitos e/ou minoração da violência urbana, que seriam os próprios fundamentos da Justiça Penal[2].

Pelo contrário, a sensação de insegurança que incide sobre a sociedade hodierna aumenta, gerando um medo que interfere nos mais diversos campos sociais: na moradia, no trabalho, na educação, na mobilidade urbana, no lazer.

E, neste mesmo cenário, se evidencia penitenciárias lotadas, que impõem condições degradantes e desumanas aos internos (inclusive provisórios), que estigmatizados não têm a menor condição de voltar ao convívio social. Mesmo que absolvidos da acusação que se lhes imputou, aqueles que passaram pelo sistema penal carregarão a pecha indelével de delinquentes, como anotou Foucault: “a partir do momento em que alguém entrava na prisão, acionava-se um mecanismo que o tornava infame, e quando saía, não podia fazer nada senão voltar a ser delinquente” (In Microfísica do Poder, 2014, p. 219).

No mesmo sentido, o referido autor francês externa sua percepções após visita à prisão de Attica, localizada no Texas:

“[...] se trata unicamente [...] de um mecanismo inteiramente singular de eliminação circular: a sociedade elimina enviando para a prisão pessoas que a prisão quebra, esmaga, elimina fisicamente; uma vez quebradas essas pessoas, a prisão as elimina libertando-as, reenviando-as à sociedade; nesta, sua vida na prisão, o tratamento que sofreram, o estado no qual saíram, tudo concorre industriosamente para que, de modo infalível, a sociedade os elimine de novo, reenviando-os para a prisão, à qual etc.” (FOUCAULT, 2003, p. 134)

A despeito da constatação de que a prisão não cumpre a função de prevenir a violência, mas, ao revés, a fomenta, uma vez que cria e profissionaliza o criminoso, ao tratar a pessoa de maneira indigna dentro do cárcere e ao estigmatizá-la, para sempre, quando o deixa, o Brasil segue utilizando esse método de sanção.

E pior, desde o início deste século, criou-se uma figura de prisão arbitrária e ainda mais rigorosa, qual seja o Regime Disciplinar Diferenciado.

2 Origem do Regime Disciplinar Diferenciado

A criação do RDD pode ser vista como a medida estatal de maior impacto no combate às facções criminosas que funcionam dentro do sistema penitenciário, especialmente no afã de satisfazer a opinião pública e em resposta à megarrebelião orquestrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) em fevereiro de 2001, que atingiu 29 unidades prisionais paulistas e escancarou à sociedade o alto nível de organização dos presos no sistema carcerário do Estado de São Paulo.

A Resolução n. 026/01 da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo instituiu o RDD antes mesmo de sua legalização em 2003, atribuindo aos administradores prisionais a decisão de encaminhamento do preso ao referido Regime. Conforme a ementa deste ato normativo, ele regulamentou "a inclusão, permanência e exclusão dos presos no Regime Disciplinar Diferenciado". Essa resolução teria sido veiculada no exercício da competência estadual para legislar sobre direito penitenciário e, inclusive, foi considerada válida/constitucional pelo TJSP (HC 400.000.3/8, 6ª Cam., julgado em 21.11.02).

Tal experiência do governo paulista motivou o Projeto de Lei nº 5.073/2001, do Poder Executivo Federal, que veio a ser aprovado, resultando na Lei nº 10.792/03, que introduziu em no ordenamento jurídico brasileiro o regime disciplinar diferenciado. A partir da instituição desta Lei, a prerrogativa de decidir pelo encaminhamento ao RDD foi retirada dos administradores prisionais, passando à competência da autoridade judiciária.

Referida lei alterou diversos dispositivos da Lei de Execução Penal (Lei Federal n. 7.210/84), dentre os quais o art. 52, que assim passou a dispor:

“Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (Incluído pela Lei nº 10.792, de 2003)”

Portanto, a inclusão no RDD poderá ocorrer em três hipóteses distintas, quais sejam: a) como sanção disciplinar, em decorrência da prática de falta grave consistente em crime doloso, que ocasione subversão da ordem ou da disciplina interna (art. 52, caput, e art. 53, V, da LEP); b) para condenados ou presos provisórios que apresentem alto risco para a ordem ou a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, § 1º); c) para condenados ou presos provisórios sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, § 2º).

Concernente à primeira hipótese, entende-se que se configura do descumprimento dos deveres do preso e da disciplina, consistindo em manifestação do poder sancionatório, a fim de manter o controle sobre o estabelecimento penal, que deveria ser do Estado, e não dos presos. O sistema de progressão de regime está baseado no mérito – ou no demérito – do condenado. Por isso, seria razoável imputar ao condenado que comete falta grave tipificada como crime doloso e que afete a ordem e a disciplina do estabelecimento uma punição proporcional. Os defensores do RDD asseveram que isto seria, pois, um instrumento adequado a casos de motins violentos, em cujo contexto ocorreriam, não raro, crimes graves, como homicídios qualificados pela crueldade.

Cuidando-se de fatos novos, consistentes na falta grave cometida, não haveria se falar em violação da coisa julgada que assegurava, eventualmente, regime menos rigoroso, como já decidiu o STF, tratando de hipótese em que se invocava tal instituto para obstar a aplicação do art. 127 da LEP, que trata da perda do benefício da remição em caso de cometimento de falta grave. Assim, não haveria em dupla punição pelo mesmo fato.

O segundo caso de imposição do RDD não estaria vinculado a uma falta cometida, nem possuiria caráter punitivo. Nesta hipótese, a medida incide, em caráter cautelar, a fim de evitar a concretização de um risco iminente. A sua imposição dependeria da demonstração da existência de indícios concretos do risco, o que seria referido na decisão de imposição do regime, como corolário do dever geral de fundamentação das decisões.

Por fim, em se tratando de organização criminosa, quadrilha ou bando, a implantação do regime disciplinar diferenciado representaria uma reação estatal contra formas específicas de criminalidade.

Com relação às organizações criminosas, o Brasil assumiu, mesmo no plano internacional, a obrigação de reprimi-las (vide Decreto Legislativo nº 231, de 29/05/03, e do Decreto nº 5.015, de 12/03/04 - Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova Iorque em 15/11/00). Assim, o Estado brasileiro estaria comprometido a viabilizar, internamente, o combate àqueles agrupamentos delitivos, de maneira que argumentava-se que, até que a lei brasileira viesse a oferecer um conceito definido de crime organizado, deveria ser considerado válida a aplicação do conceito dado pela Convenção de Palermo.

Entretanto, imperioso aclarar que, desde a promulgação da Lei Federal n. 12.850, de 02/08/13, tal discussão acerca da falta de determinação do conceito de “organização criminosa” restou superado:

§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.” (Art. 1º da Lei 12.850/13)

3 Crítica ao RDD

A crítica ao Regime Disciplinar Diferenciado perpassa por questões jurídicas e teleológicas.

No primeiro caso, o membro do Ministério Público baiano Rômulo de Andrade Moreira assevera que:

“Mais uma vez, utiliza-se de um meio absolutamente ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes, sabemos todos, está na desigualdade social que ainda reina no Brasil (apesar da esperança que ainda também nos resta). Efetivamente, nos últimos anos temos visto várias leis criminais serem apresentadas como um bálsamo para a questão da violência urbana e da segurança pública, muitas delas com vícios formais graves e, principalmente, outros de natureza substancial, inclusive com mácula escancarada à Constituição Federal.”

O mencionado membro do parquet rechaça o longo tempo de duração da medida (360 dias) e a possibilidade de sua reaplicação/prorrogação por tempo razoavelmente grande. Além disso, critica também a possibilidade de imposição dessa “pena” (o RDD) a um preso provisório, cuja condenação, portanto, nem ao menos restou cabalmente demonstrada segundo o devido processo legal, ofendendo evidentemente o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade.

Ademais, contesta as expressões legais vagas e indeterminadas utilizadas para justificar a aplicação dessa medida tão gravosa, tais como “fundadas suspeitas” e “ou outra autoridade administrativa”.

“O que seriam mesmo fundadas suspeitas? Afinal, a presunção constitucional não é a de não-culpabilidade? [...] A inclusão no RDD será determinada por “prévio e fundamentado despacho do juiz competente”, a partir de “requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa”, sendo imprescindível a “manifestação do Ministério Público e da defesa”, devendo ser “prolatada no prazo máximo de quinze dias.” Pergunta-se: quem seria esta outra autoridade administrativa? O Secretário de Estado da Justiça? O Governador do Estado? Estariam eles então, agora, a figurar como partes ou sujeitos do procedimento jurisdicional de execução penal? Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranqüilidade ser tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. ., XLVII, e, CF/88), assegurando-se aos presos (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5º., XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III).” (MOREIRA)

Nesse sentido, o jurista Rogério Lauria Tucci resumiu que o Regime Disciplinar Diferenciado seria:

“mais do que um retrocesso, apresenta-se como autêntica negação dos fins objetivados na execução penal, constituindo um autêntico bis in idem, uma vez tida a imposição da pena como ajustada à natureza do crime praticado – considerados todos os seus elementos constitutivos e os respectivos motivos, circunstâncias e consequências -, e à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social e à personalidade do agente.” (Boletim do IBCCrim, nº. 140, julho/2004, p. 4.)

Ademais, a discussão acerca da constitucionalidade do RDD perpassa pela difícil negação de que há violação aos incisos III, XLVII, alínea e, e XLIX do art. da Constituição Federal: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; “não haverá penas cruéis”; e “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Por outro viés, no que atine à ineficácia do RDD à obtenção dos fins pretendidos, Camila Caldeira Nunes Dias salienta o caso do preso Marcos Wilians Herbas Camacho, mais conhecido pela alcunha “Marcola”, que mesmo após vários anos sob o Regime Disciplinar Diferenciado continuava (e continua) sendo considerado o líder precípuo do Primeiro Comando Capital:

“a despeito de tantos anos sob o RDD, Marcola ainda é visto pelo poder público como a liderança principal do PCC. Esse reconhecimento parece paradoxal pois contrasta com ideias difundidas, principalmente autoridades público, especialmente gestores da segurança e do sistema penitenciário – inclusive de governantes – segundo as quais o RDD é eficaz no combate a essas organizações porque promove o isolamento dos líderes. Em primeiro lugar, sabemos que esse isolamento não é absoluto; por direito constitucional os presos podem ter contato, embora indireto e sem a presença física direta, com advogados e familiares. Conforme amplamente noticiado há alguns anos, os advogados se constituíam em importantes peças no esquema da organização criminosa, servindo como pombo-correio na comunicação entre seus membros. Isto para não falar da corrupção sistêmica no universo prisional, que facultas aos presos canais de comunicação diversos, como os telefones celulares. [...] O temor dos presos em relação ao RDD, que evidentemente existe, não é suficiente para impedi-los de cometer os atos que são previstos como condições para sua remoção para o regime, [...] o RDD não se constitui em fator de dissuasão dos atos que visa reprimir, haja vista que, embora tal regime tenha sido criado em 2001, em 2006 o PCC produziu uma crise sem precedentes na segurança pública paulista.” (DIAS, 2011, p. 315)

Aponta-se que o principal efeito prático do RDD foi o isolamento dos líderes das organizações criminosas, acarretando a suposta desestruturação destes agrupamentos à medida em que seus membros foram destituídos do comando (PORTO, 2007, p. 66).

Contudo, essa visão não se confirmou na pesquisa realizada por Camila Dias:

“Dezenas de eventos observados durante a pesquisa de campo poderiam aqui ser relatados para corroborar a afirmação acima. Citam-se apenas alguns, a título de ilustração: o pátio de sol é de uso exclusivo dos presos, sendo que o funcionário não pode transitar pelo mesmo durante o banho de sol; o PCC convoca reuniões com a massa carcerária, no pátio, com finalidades diversas (dar avisos vindos de instâncias superiores, “conscientizar” a população para que evite problemas com dívidas de drogas, informar problemas com a diretoria da unidade, etc); cada preso que chega na unidade prisional, após ser entrevistado pelo diretor de segurança, passa por uma entrevista – chamada de sumário – com uma liderança do PCC, que anotará num caderno – chamado cadastro – os dados do recém-chegado (nome, matrícula, as três últimas unidades em que passou, de qual bairro/cidade é proveniente); qualquer pedido ou reclamação da população carcerária não pode ser feito diretamente ao diretor, devendo, antes, ser passado para a liderança da facção, que, se for o caso, levará o problema ao diretor; qualquer briga ou conflito entre presos deve ser reportado, necessariamente, à liderança, que tomará as atitudes que achar conveniente para resolver a situação.” (DIAS, 2009, nota de rodapé número 12, p. 142)

Infere a socióloga que, se decorreu algum efeito prático do RDD, esse não foi, de forma nenhuma, a desarticulação das facções criminosas. Ela admite que houve “baixas” no PCC – com a expulsão dos fundadores “Geléião” e “Cesinha” –, mas ressalta a cúpula foi, então, assumida por Marcola, que permanece no “cargo” até os dias atuais, tendo demonstrado relevante capacidade de organização, estruturação e coesão (DIAS, 2009, p. 134).

4 Conclusão

A pena de prisão tem se mostrado ineficaz para reduzir a violência urbana ou mantê-la em níveis aceitáveis, constatação que não ensejou uma mudança de estratégia por parte do Estado brasileiro.

Ao revés, a criação de novos tipos penais e o recrudescimento das penas existentes é uma demanda populista sempre evidente nas últimas três décadas, paradoxalmente durante a vigência da Constituição que foi intitulada de “Cidadã”, na qual assegurados uma gama de direitos humanos nunca antes vista no ordenamento jurídico nacional.

Naquele contexto, surgiu o Regime Disciplinar Diferenciado, condição de punição mais gravosa do que as previstas pela redação original da Lei de Execucoes Penais, com o objetivo precípuo de “combater” as organizações criminosas.

Entretanto, passada mais de uma década desde a sua implantação, denota-se que essa política de violação de direitos dos presos não surtiu o efeito esperado, de contenção da violência, na medida em que as facções criminosas continuam exercendo domínio sobre a população carcerária, bem assim disseminando o terror na sociedade, especialmente com atos de violência e vandalismo perpetrados fora dos presídios.

Além disso, revela-se que as lideranças das organizações criminosas também não foram desarticuladas, sendo caso emblemático a imposição do RDD por vários anos a Marcola, que, mesmo assim, continua sendo apontado como o principal chefe do PCC (Primeiro Comando da Capital).

5 Referências Bibliográficas

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução: Lucia Guidicini, 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989/92). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado Como Produto de um Direito Penal de Inimigo. Internet: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12561-12562-1-PB.pdf, acesso em 13/09/2016.

DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. São Paulo, 2011. Internet: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-13062012-164151/pt-br.php, acesso em 08/09/2016.

_______________________. Efeitos simbólicos e práticos do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) na dinâmica prisional. 2009. Internet: http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/tertulias/files/2012/09/Efeitos-simb%C3%B3licosepr%C3%..., acesso em 01/09/2016.

FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

________________. Microfísica do poder. 28. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

________________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

GARLAND, David. Castigo y Sociedad Moderna – un estudio de teoría social. México DF: Siglo Veintiuno editores, 1999.

MAQUIAVEL, Nicollò. O Príncipe. São Paulo: L&PM, 1998.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Este monstro chamado RDD. Internet: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=428, acesso em 13/09/2016.

PORTO, Roberto. Crime organizado e sistema prisional. São Paulo: Atlas, 2007.

SALLA, Fernando, DIAS, Camila Nunes e SILVESTRE, Giane. Políticas Penitenciárias e as Facções Criminosas: Uma Análise do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e outras Medidas Administrativas de Controle da População Carcerária. Internet: http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/view/5419/4328, acesso em 13/09/2016.


[1] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/81039-tribunais-aprovam-oito-metas-nacionais-para-2016enove-esp...

[2] “O Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 mil homicídios em 2014, uma alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003. A média de 29,1 para cada grupo de 100 mil habitantes também é a maior já registrada na história do país, e representa uma alta de 10% em comparação à média de 26,5 registrada em 2004. É o que Atlas da Violência 2016, estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), divulgado nesta terça-feira. A pesquisa ainda revela que jovens negros e com baixa escolaridade são as principais vítimas. No mundo, os homicídios representam cerca de 10% de todas as mortes no mundo, e, em números absolutos, o Brasil lidera a lista desse tipo de crime.” (In http://oglobo.globo.com/brasil/mapa-da-violencia-2016-mostra-recorde-de-homicidios-no-brasil-1893162...)

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