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Curso de Processo Civil - Vol. 2 - Ed. 2023

Curso de Processo Civil - Vol. 2 - Ed. 2023

9.1.. A Função da Prova

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Sumário:

9.1. A função da prova

9.1.1. A verdade e as teorias sobre sua busca

A ideia de prova evoca, naturalmente, e não apenas no processo, a racionalização da descoberta da verdade. Realmente, a definição clássica de prova liga­-se diretamente àquilo “que atesta a veracidade ou a autenticidade de alguma coisa; demonstração evidente”. 1 Tem­-se (ou, tinha­-se) essa ideia para a ampla maioria das ciências, e a ciência processual clássica não foge à regra. Também o juiz, na atividade cognitiva do processo, tradicionalmente é visto como alguém que tem por função precípua a reconstrução dos fatos a ele narrados, aplicando sobre esses a regra jurídica abstrata contemplada pelo ordenamento positivo; feito esse juízo de concreção da regra aos fatos – também chamado de juízo de subsunção –, extrai­-se a consequência aplicável ao conflito, disciplinando­-o na forma como preconizada pelo legislador. 2

A verdade dos fatos, a realidade, nessa perspectiva, tem papel fundamental para legitimar a própria decisão judicial. Supondo o Direito como um dado, e sabendo que os fatos aconteceram dessa ou daquela maneira, ter­-se­-ia a certeza de que a decisão não é fruto de arbítrio judicial, mas da manifestação soberana do legislador, ligada a um dado objetivo: a realidade. Daí se explica a razão pela qual a investigação dos fatos no processo ocupe quase que a totalidade do procedimento e das regras que disciplinam o tema nos diversos códigos processuais que se aplicam no direito brasileiro. 3 Se a norma jurídica pode ser decomposta em uma hipótese fática (em que o legislador prevê uma conduta) e em uma consequência jurídica a ela atrelada, não há dúvida de que o conhecimento dos fatos ocorridos na realidade é essencial para a aplicação do direito positivo, sob pena de ficar inviabilizada a concretização da norma abstrata. 4 Tamanha é a importância da verdade e da prova no processo, que Chiovenda ensinava que a atividade de conhecimento da causa trava­-se entre dois termos (a demanda e a sentença), por uma série de atos, sendo que “esses atos têm, todos, mais ou menos diretamente, por objeto, colocar o juiz em condições de se pronunciar sobre a demanda e enquadram­-se particularmente no domínio da execução das provas ”. 5 Na mesma linha de pensamento, Liebman, ao conceituar o termo “julgar”, asseverava que tal consiste em valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração esta feita com base no direito vigente, determinando, como consequência, a norma concreta que regerá o caso. 6

Diante dessas premissas, nada mais natural do que eleger, como um dos princípios essenciais do processo – senão a função principal do processo –, a busca da verdade. Como dizem Taruffo e Micheli, no processo, a verdade não constitui um fim em si mesmo, contudo insta buscá­-la enquanto condição para que se dê qualidade à justiça ofertada pelo Estado. 7 No dizer de Mittermayer, a verdade seria a concordância entre um fato ocorrido na realidade sensível e a ideia que fazemos dele. 8

Porém, se a atuação do Direito poderia, na época de Mittermayer, de Chiovenda e de Liebman, ser explicada por esse esquema simplório, o mesmo não se pode dizer hoje. De um lado, tem­-se como certo que a aplicação da regra não se dá de modo tão automática como se acreditava no passado. O juiz, como intérprete da regra, confere sentido ao texto e, portanto, participa da criação da norma.

Por outro lado, também as relações do processo com a verdade não são tão simples com parecem. Pensar a verdade como correspondência entre um fato e uma ideia que se tem a seu respeito, hoje, representa apenas uma das visões possíveis a respeito desse tema. Essa perspectiva, correspondente à visão defendida pelo paradigma do objeto, 9 é hoje objetada por outras tantas visões sobre essa questão. Embora muitas noções jurídicas continuem apoiando­-se nessa ideia, é de se ver que há muitas outras correntes que criticam a existência dessa correspondência, ou que lhe negam qualquer utilidade, especialmente no campo do processo.

O direito processual, portanto, deveria preocupar­-se, antes de tudo, em fazer uma escolha nesse campo, apontando a que, efetivamente, diante das várias teorias hoje existentes, se destina a atividade de conhecimento do juiz no processo. Só a partir daí seria possível, realmente, criar uma teoria da prova adequada e extrair as consequências necessárias. 10

Nesta obra, de caráter didático, não se pretende resolver essa questão, que extrapolaria sua finalidade. 11 Porém, deve­-se esboçar rapidamente algumas das opiniões mais correntes a respeito do tema.

Primeiramente, há quem trabalhe com a noção de verdade material (por vezes também chamada de verdade absoluta ou de verdade real) como base para a atividade processual. Esse conceito de verdade, que supõe a perfeita correspondência entre a realidade e a ideia que dela se faz, sem dúvida é ainda base de muitos argumentos em direito processual. Subsidia, por exemplo, como se verá adiante, a tese da relativização da coisa julgada e muitas vezes é argumento que se aponta contra a vedação às provas ilícitas.

Todavia, de todas as ideias que se pode ter a respeito das relações entre prova e “verdade”, essa é, de longe, a mais imprestável. Por se tratar de um conceito absoluto, 12 sua ligação com a atividade probatória é inviável. O processo não tem condições de reconstruí­-la e, muitas vezes, renuncia à sua busca. Pense­-se, por exemplo, na exclusão das provas ilícitas, nas vedações legais ao emprego de determinados meios de prova em certas circunstâncias ou nas provas tarifadas, eventualmente admitidas. 13 Pense­-se, ainda, em limites temporais, a exemplo das preclusões e da coisa julgada. Por isso, observa Giovanni Verde, 14 que no processo as regras sobre prova não regulam apenas os meios de que o juiz pode servir­-se para “descobrir a verdade”, mas também traçam limites à atividade probatória, tornando inadmissíveis certos meios de prova, resguardando outros interesses (como a intimidade, o silêncio etc.) ou ainda condicionando a eficácia do meio probatório à adoção de certas formalidades (como o uso do instrumento público).

Ora, um modelo que trabalha com esses obstáculos certamente não pode comprometer­-se em encontrar uma “verdade material”, “real” ou “absoluta”.

Daí a razão pela qual não se pode aceitar a clássica dicotomia, comumente feita, entre verdade material e verdade formal . Na acepção clássica, a verdade material seria absoluta, e deveria ser buscada em processos que lidassem com interesses indisponíveis. Já a verdade formal (também chamada de processual), seria uma verdade limitada, própria de processos que trabalham com interesses disponíveis. Ora, aceitar essa diferenciação seria supor que há processos que pretendem a verdade, enquanto outros trabalhariam com a não verdade e, portanto, alguma espécie de falsidade. 15 Sem dúvida, aqui se tem conceitos imprestáveis para o processo moderno.

A essa concepção, clássica, que pretende a busca incansável no processo pela verdade absoluta, pode­-se contrapor uma variedade de outras ideias mais modernas.

Todas elas partem da premissa de que é impossível a reconstrução da verdade absoluta, ou ao menos ter certeza de que ela foi atingida. No dizer de Miguel Reale, deve­-se trabalhar com um conceito de verdade que signifique apenas uma quase verdade , tomando por premissa a percepção de que é impossível a absoluta certeza da reconstrução dos fatos pretéritos. 16 A reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre é influenciada por aspectos subjetivos das pessoas que o assistiram ou ainda daquele que (como o juiz) há de receber e valorar a evidência concreta. 17 Sempre, o sujeito que percebe uma informação (seja presenciando diretamente o fato ou conhecendo­-o através de outro meio) filtra o seu real conteúdo, absorve­-o à sua maneira, acrescentando­-lhe um toque pessoal que talvez venha a distorcer a realidade. 18 Mais que isso, o julgador (ou o historiador ou o cientista ou, enfim, quem quer que deva tentar reconstruir fatos do passado) 19 jamais poderá excluir a possibilidade de que as coisas tenham se passado de forma diversa daquela a que suas “impressões” o levaram.

A partir daí, porém, pode­-se imaginar que a realidade possa servir como um ideal regulativo da atividade processual. Nesse sentido, embora se reconheça que, muitas vezes, o processo seja incapaz de alcançar a verdade dos fatos, entende­-se é objetivo último da cognição judicial aproximar­-se o mais possível dessa realidade . Por outro lado, sob essa concepção, deve­-se recusar qualquer construção probatória que redunde em situação manifestamente contrária à realidade verificada. 20

Outra corrente defende a ideia de que, na ausência da possibilidade de se operar com o conceito de verdade (absoluta), se concentre a análise no tema do discurso e da argumentação. Sob essa noção, tudo giraria em torno da ideia de comunicação e de argumentação, no sentido de se compreender que a verdade é construída a partir de um diálogo. 21 O resultado desse diálogo depende, como é óbvio, da garantia da universalidade do procedimento. 22 A verdade, sob essa teoria, não mais é buscada no conteúdo da assertiva, mas na forma pela qual ela é obtida (consenso). O conteúdo é evidentemente importante, mas nada tem a ver com a verdade – pois para esta apenas interessa a forma pela qual a afirmação é obtida. O verdadeiro e o falso não têm origem nas coisas, nem na razão individual, mas no procedimento.

9.1.2. A definição de prova

Ao tentar definir “prova”, uma primeira observação que deve ser feita: a prova não é assunto exclusivamente versado pelo direito processual. 23 Por isso, seu conceito, sua função e suas particularidades não devem ser encontrados exclusivamente no campo do direito (ou, mais restritamente, no campo do direito processual), mas, ao contrário, são informados por elementos das mais diversas ciências, não obstante ingressem no direito processual com visão e regime particular .

Cabe advertir, também, que a palavra “prova” pode assumir diferentes conotações não apenas no processo civil, mas também em outras ciências. 24 Assim é que pode significar inicialmente os instrumentos de que se serve o magistrado para o conhecimento dos fatos submetidos à sua análise, sendo possível assim falar em prova documental, prova pericial etc. Também pode essa palavra representar o procedimento através do qual aqueles instrumentos de cognição se formam e são recepcionados pelo juízo; esse é o espaço em que se alude à produção da prova. De outra parte, prova também pode dar a ideia da atividade lógica, celebrada pelo juiz, para o conhecimento dos fatos (percepção, dedução e indução, no dizer de Proto Pisani) 25 . E, finalmente, tem­-se como prova, ainda, o resultado da atividade lógica do conhecimento.

Como já se disse acima, a definição da prova depende da orientação que se tenha a respeito de suas relações com a verdade ou com a realidade. Para quem acredita na possibilidade de se encontrar a verdade absoluta no processo, a definição de prova vem ligada à ideia de reconstrução (pesquisa) de um fato que é demonstrado ao magistrado, capacitando­-o a ter “certeza” sobre os eventos ocorridos e permitindo-lhe exercer sua função. Assim, por exemplo, manifestava­-se Lessona, dizendo que “provar , neste sentido, significa fazer conhecidos para o juiz os fatos controvertidos e duvidosos, e dar­-lhe a certeza do seu modo preciso de ser”. 26 Nessa mesma linha, Liebman definia prova como sendo “os meios que servem para dar o conhecimento de um fato e por isso para fornecer a demonstração e para formar a convicção da verdade de um fato específico”. 27

Voltando­-se ao campo jurídico – que, como já dito, apresenta, em função de sua regulamentação especial, certas peculiaridades – tem­-se a ideia de Giovanni Verde. Segundo esse autor, 28 o conceito de prova, para a ciência jurídica, não pode ser encontrado nas mesmas origens em que se encontra esse conceito para as ciências empíricas. É que a ampla liberdade de convencimento que rege a atividade judicial e a fixação de disciplina específica para o aporte de provas ao processo torna essa noção diversa (e mesmo impensável) para outros ramos de ciência, que também têm sua atividade baseada na reconstrução de fatos. Partindo dessa premissa, Verde conceitua prova como sendo “todos aqueles instrumentos na base dos quais se pode fixar a hipótese à qual a norma torna possível implicar os efeitos jurídicos pretendidos”. 29 Nessa visão, provas seriam todos os elementos que poderiam restabelecer a verdade dos fatos (fixar) da hipótese aventada pela parte, para suportar certa consequência jurídica pretendida. 30

Porém, mesmo o passo avante, dado por Giovanni Verde, não é capaz de esconder a nítida vinculação à ideia de que a prova se destina ao passado, à reconstrução de um fato pretérito ou, enfim, à verificação desse fato, gerando no juiz uma convicção de “certeza” sobre sua efetiva ocorrência, o que, de resto, representa a ideia quase que unânime de toda a doutrina.

Viu­-se no item anterior, porém, que é impossível o restabelecimento dos fatos pretéritos (especialmente no processo), mesmo porque jamais se logrará extirpar toda a dúvida possivelmente existente sobre a efetiva acuidade do juízo a que se chegou. Quer dizer, em outras palavras, que a verdade, enquanto exata correspondência, jamais pode ser atingida, uma vez que não se pode “recuperar” o que já passou; de outra banda, também a ideia de certeza somente pode ser concebida no nível subjetivo específico, sendo que esse conceito pode variar de pessoa para pessoa – o que demonstra a relatividade dessa noção. Conclui­-se, então, e de acordo com as premissas expostas até aqui, que qualquer dos conceitos acima ofertados, enquanto relacionados a paradigmas já superados do conhecimento, não se prestam para uma definição adequada do conceito de prova.

A depender, portanto, do conceito que se tenha de “conhecimento” e de “verdade”, é possível elaborar diferentes noções a respeito da prova e de sua finalidade, especialmente no processo.

Para quem aceita o papel regulativo da prova, a prova assume a função de justificar a escolha de uma das teses apresentadas pelas partes no processo. Nas palavras de Michele Taruffo, a prova realiza, nesta perspectiva, a função de fundamento para a escolha racional da hipótese destinada a constituir o conteúdo da decisão final sobre o fato. 31

Já quem salienta o papel discursivo do conhecimento, salientará a função retórica da prova, invocando sua função no discurso que formará a construção do conhecimento. Nesse contexto, seria possível dizer que a prova é todo meio retórico, regulado pela lei, e dirigido a, dentro dos parâmetros fixados pelo direito e de critérios racionais, convencer o Estado­-juiz da validade das proposições, objeto de impugnação, feitas no processo.

Em ambos os casos, sobressai a importância da motivação da decisão judicial. Tanto na primeira, como na segunda orientações mencionadas, é evidente que o fundamental será sempre a avaliação crítica da argumentação apresentada pelo juiz para fundamentar suas conclusões.

E nisso resulta o dado mais essencial. As regras sobre prova funcionam, para o processo, como instrumentos de facilitação da argumentação do juiz. Sempre que suas conclusões puderem fundar­-se direta e imediatamente em uma regra clara de lei, haverá argumentação facilitada. Do contrário, o ônus argumentativo aumenta e deve o juiz justificar, de modo coerente com o ordenamento nacional, suas escolhas.

Obviamente, essas observações não retiram a importância do tema da prova também para os demais sujeitos do processo, em particular para as partes. A prova também se presta para a sustentação da argumentação das partes – e de outros sujeitos parciais do processo – em relação a seus argumentos no campo dos fatos. 32 Ainda assim, nessa perspectiva, a prova permanece no campo da sua atuação dialogada e persuasiva, como elemento de argumentação dos sujeitos do processo.

9.2. Objeto da prova

Observando o que foi dito até aqui, um elemento deve ser destacado, qual seja a menção a que a prova não se destina a provar fatos, mas sim afirmações de fato. É, com efeito, a alegação, e não o fato, que pode corresponder ou não à realidade daquilo que se passou fora do processo. O fato não pode ser qualificado de verdadeiro ou falso, já que esse existe ou não existe. É a alegação do fato que, em determinado momento, pode assumir importância jurídico­-processual e, assim, assumir relevância a demonstração da veracidade da alegação do fato .

Precisam ser alegados apenas os fatos principais , e não os fatos secundários , uma vez que existe a possibilidade de os últimos serem apreciados pelo juiz ainda que não tenham sido afirmados pela parte interessada . 33 Os fatos principais (também ditos essenciais ou diretos) são aqueles que devem ser afirmados na petição inicial e na contestação, destinando­-se diretamente a demonstrar com quem está a razão. Como dito, a prova deve se situar no âmbito das afirmações de fato que suportam o thema decidendum ou, mais precisamente, no espaço criado pelos argumentos do autor, que embasam seu pedido, e pelos argumentos do réu, que conformam as defesas apresentadas para a rejeição do pedido (ou seja, somente no espaço das afirmações de fato controvertidas no processo).

Porém, podem existir outros fatos que não sejam capazes de demonstrar diretamente a verdade dessas afirmações de fato, embora sirvam indiretamente para convencer o juiz de que elas são verdadeiras. Trata­-se dos fatos secundários (também ditos indiciários).

O fato secundário não precisa ser alegado – e assim não se submete ao chamado ônus da afirmação , ainda que isso não queira dizer, evidentemente, que o autor não possa alegá­-los. O que se quer esclarecer é que o fato secundário, ainda que não alegado, pode ser objeto de prova. Esse fato não precisa ser alegado porque se destina a demonstrar que a afirmação do fato principal (direto ou essencial) é verdadeira.

Por outro lado, somente alegações a respeito de fatos pertinentes e relevantes para o processo constituem objeto de prova. Assim, pouco interessa para o processo a afirmação e, consequentemente, a prova de fatos não importantes à solução do litígio – por exemplo, nenhuma relevância existiria na afirmação, e consequente prova, quanto às circunstâncias em que a petição inicial foi elaborada, se estava chovendo naquele instante ou não, se a aceitação da causa foi ou não difícil etc. – já que não constituem esses elementos pontos (ou questões) sobre os quais é possível controverter no processo.

De outro lado, também o direito não depende de prova, já que é dever do magistrado conhecê­-lo. Excetua­-se dessa regra, ao menos aparentemente, a possibilidade de o juiz exigir a prova do direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário. Tal é o que prevê o art. 376, autorizando o magistrado a, em havendo necessidade de recorrer a essa espécie de direito, poder determinar a prova de seu teor e sua vigência à parte que o alega. A exceção, porém, é mais aparente do que real. Na verdade, muito embora o preceito fale em prova da alegação do direito, a verdade é que direito não se alega; direito invoca­-se, supondo­-se, em virtude do brocardo Iura novit curia , que o juiz o conheça. O que se alega são fatos. 34 E, a prova admitida no dispositivo, a rigor, não é a prova “do direito”, mas apenas a prova do teor e da vigência de determinada norma, o que obviamente é questão que não pode ser rigorosamente qualificada como prova do direito.

9.3. Direito à prova, dever de prova e regras de privilégio

9.3.1. O direito e o dever à prova

Não deve haver dúvida de que o direito a produzir prova no processo constitui um direito constitucional, apoiado tanto na garantia de acesso à Justiça (art. 5.º, XXXV, da CF) como nos direitos ao contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LV, da CF). Em termos mais gerais, pode­-se dizer que esse direito constitui elemento indissociável do direito ao processo justo, que constitui toda a estrutura do nosso direito processual civil. 35

De fato, supor que o direito de acesso à tutela jurisdicional pode restringir­-se ao simples direito de reclamar perante o Judiciário – sem que, junto com isso, haja o direito de provar as suas alegações pelos modos necessários – é sem dúvida erro fundamental. Em um sistema processual, como o nacional, em que o magistrado deve convencer­-se para decidir a partir das provas constantes dos autos (art. 371), é conclusão básica a de que só poderá ter sucesso uma pretensão ou uma defesa no processo – ao menos em relação a fatos – se ela estiver apoiada em provas para a sua confirmação. Por outras palavras, alegar sem provar, no processo civil brasileiro, tende a gerar a mesma consequência que sequer alegar.

Por isso é que, se o Estado garante ao particular o direito de ter apreciado, pelo Judiciário, qualquer lesão ou ameaça a direito, e garante ainda a ampla defesa e o contraditório às partes do processo, então também está albergado o direito constitucional à prova. Percebendo isso, prevê o art. 369, que as partes (e todos os sujeitos que participam do processo) têm o direito de utilizar quaisquer meios de prova, previstos expressamente ou não vedados, para demonstrar seus argumentos de fato e influir eficazmente na convicção do juiz.

Todavia, a prova não se limita a um direito no campo processual.

Ela é também um dever, alinhado aos deveres de lealdade e de boa­-fé processuais . Realmente, para que o Estado possa desempenhar adequadamente a sua tarefa de decidir as controvérsias que lhe são submetidas, é essencial que as pessoas que tenham conhecimento dos fatos relevantes para a solução desse litígio efetivamente colaborem e tragam para o processo esses elementos em que se fundará o conhecimento do órgão jurisdicional. Afinal, se o texto constitucional impõe ao Estado o dever de julgar os conflitos e de dar tutela efetiva, tempestiva e adequada a qualquer lesão ou ameaça a direito, então é indispensável que se imponha a toda coletividade o consectário dever de auxiliar a jurisdição nessa tarefa, fornecendo­-lhe os subsídios para que possa conhecer os fatos e julgar corretamente (art. 378).

Por isso, pode­-se afirmar que ao lado de um direito, a prova é também um dever. E esse dever nada mais é do que um reflexo – para toda a sociedade – dos direitos fundamentais processuais, em particular, dos direitos de acesso à Justiça e de ampla defesa. De fato, considerando que esses direitos fundamentais não são oponíveis apenas ao Estado, mas alcançam toda a sociedade, então é certo concluir que todos estão ligados a tais direitos fundamentais processuais e devem contribuir para a sua plena realização.

Diante disso, pode­-se afirmar que o dever de auxílio – e, particularmente, o dever de prova – tem também assento constitucional e incide sobre todos, independentemente de serem ou não parte em determinado processo.

Clarificado esse ponto, conclui­-se que as normas presentes no Código de Processo Civil que impõem algum dever de colaboração probatória nada mais são do que o desdobramento infraconstitucional de imposições que já são, antes, abraçados pela própria Constituição Federal. Esse esclarecimento é importante, até para que não se diminua a importância desses deveres e se imagine que tais deveres estão subordinados a direitos infraconstitucionais. Isto seria clara subversão da própria interpretação do papel e da estrutura dos direitos fundamentais.

De toda sorte, o Código de Processo Civil possui vários preceitos que indicam a existência de verdadeiros deveres específicos em matéria de prova.

A começar, pode­-se apontar o art. 378, que estabelece que “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”. Não se trata, como é fácil perceber da simples leitura do texto, de uma consideração apenas retórica ou de regra abstrata, sem qualquer consequência concreta. Bem ao contrário, trata­-se de verdadeira imposição geral de colaboração – assentada, como já se disse, no próprio texto constitucional – em matéria de prova. Tampouco se trata de simples recomendação ou de mera faculdade; o preceito é claro ao fixar aí um dever geral, de modo que todos estão subordinados a essa colaboração.

Mais do que isso, não se trata de um dever sem consequência, que o transformaria, quando muito, em mero dever moral. Trata­-se de imposição sancionável por diversos dispositivos. Por exemplo, a violação a esse dever de colaboração pode implicar as sanções correspondentes ao atentado (art. 77, VI, c/c seu § 7.º). Pode ainda redundar em hipótese de litigância de má­-fé, nos termos do que prevê o art. 80, II, que pode acarretar a incidência da multa e da indenização a que alude o art. 81 do Código. Pode até mesmo repercutir na esfera criminal, como se vê dos tipos penais de fraude processual (art. 347 do CP) ou de sonegação de papel ou objeto de valor probatório (art. 356 do CP). Enfim, há aí dever perfeito, cujo descumprimento pode levar a reações graves do ordenamento jurídico.

De modo ainda mais pontual, estabelece o art. 380 que o terceiro tem, em relação a qualquer processo, o dever de “I – informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento; II – exibir coisa ou documento que esteja em seu poder”. A violação desses deveres, aliás, gera sanções enérgicas por parte da jurisdição, que podem consistir, além da imposição de multa, no emprego de qualquer medida coercitiva ou sub­-rogatória necessária à obtenção dessa colaboração (art. 380, parágrafo único). 36

Também as partes estão submetidas, obviamente, a esse dever de colaboração. Trata­-se de um dever geral de colaboração, no sentido de que as partes devem sempre contribuir para a solução adequada do litígio. Esse dever encontra assento específico para o campo da prova nos preceitos do art. 77, I, II, III e VI, que impõe a todos os que participam do processo,aí incluídas, logicamente, às partes , diversos deveres, especialmente ligados à veracidade e à sinceridade na condução do processo. E, ainda de modo mais evidente, no ponto que aqui interessa, tem-se o contido no art. 379, a dizer que, ressalvado o direito de não produzir prova contra si, 37 devem as partes “I – comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; II – colaborar com o juízo na realização de inspeção judicial que for considerada necessária; III – praticar o ato que lhe for determinado”.

Parte da doutrina nacional considera que, em relação às partes não haja, propriamente, um dever de prova , mas apenas um ônus nesse campo. Como se sabe, o ônus se liga a condutas desejadas de alguém, cujo descumprimento não implica sanção, mas apenas um “prejuízo processual”, retratando, então, um “imperativo do próprio interesse”. 38 Nesse sentido, afirma­-se que as “imposições” feitas à parte, em matéria de prova, só repercutem na comprovação ou não de suas afirmações, ou seja, que a não produção de uma prova pela parte não implica sanções a ela, mas apenas prejuízo à demonstração dos fatos que lhe interessam.

A tese, todavia, não pode ser aceita. De um lado, porque o texto legal é claro em estabelecer para a parte deveres e não apenas ônus, tanto no campo da prova, como em relação ao comportamento geral desses sujeitos. Em segundo lugar, porque claramente há a previsão no código de sanções para o descumprimento dessas imposições, o que claramente as qualifica como deveres próprios e não como ônus. De fato, no campo da prova, a violação a esses deveres é qualificada como litigância de má­-fé, nos termos do art. 80, II e V, acarretando o emprego de multa e impondo o dever de reparar eventuais prejuízos causados. Em casos pontuais, aliás, a violação ao dever de colaboração probatória pode acarretar sanções ainda mais graves, tal como ocorre com a violação do dever de exibição de documento pela parte, que pode gerar a aplicação de qualquer medida coercitiva ou sub­-rogatória tida como necessária para a satisfação da ordem (art. 400, parágrafo único).

Enfim, parece indiscutível que, no campo da prova, o sistema processual nacional trabalha com a premissa de que haja um dever geral – imputável a todos , e especialmente aos terceiros intervenientes e às partes – de colaboração e de produção de prova. Apenas em casos excepcionais, esse dever é afastado, e sempre em favor de outros interesses também fundamentais, como se verá no tópico a seguir.

9.3.2. As regras de privilégio como exceção ao dever de prova

O direito angloestadunidense trata pelo nome de privilégios (evidentiary privileges) certas concessões feitas a determinadas pessoas ou situações, em que se dispensa o dever de colaboração com o Estado, na busca de provas.

Como se viu no item anterior, a regra geral é a existência de um dever geral de colaboração na reconstrução dos fatos da causa. Todavia, porque a Constituição também se compromete com outros valores, é necessário, às vezes, limitar esse dever geral, a fim de não ofender outra garantia também tida como fundamental ao Estado brasileiro.

São essas situações, que tanto podem favorecer as partes como os terceiros, tratadas com o nome de privilégios , que serão agora examinadas.

Em princípio, o direito brasileiro, na linha do que fazem os sistemas de direito comparado, prevê duas modalidades de privilégios: o privilégio contra a autoincriminação (alargado, no direito pátrio, para os fatos torpes e que causam prejuízo à honra da pessoa ou de seus familiares) e o privilégio em razão do conhecimento de certos assuntos por ofício, função ou profissão (advogado­-cliente, médico­-paciente, padre­-confitente etc.).

Quanto ao primeiro dos privilégios, vê­-se que ele vem acolhido expressamente, dentre outros, pelos arts. 388, I, e 403, III. A previsão tem origem no princípio geral de direito da inexigibilidade da autoimputação criminosa, colhendo como paradigma a previsão do art. 454.º, n. 2, do CPC português, que determina que “não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida”.

O princípio tem origem no direito estadunidense, mais precisamente na famosa 5.ª Emenda à Constituição, que prevê o privilege against self­-incrimination . Inicialmente, a garantia tinha por escopo apenas o processo penal, representando uma garantia ao acusado de permanecer silente, sem necessidade de prestar­-se como testemunha contra si mesmo. Todavia, por entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, referido privilégio aplica­-se, em certas circunstâncias, também a processos de natureza civil. 39

O Código Civil brasileiro ampliou sobremodo este privilégio, dispondo que ninguém é obrigado a depor sobre fatos que possam expô­-lo (ou a seu cônjuge, ou a parente em grau sucessível, ou ainda a amigo íntimo) a “perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato” (art. 229, III). O exagero da previsão é evidente, e merece ser temperado pela doutrina e pela jurisprudência, já que a aplicação irrestrita deste comando permitiria a qualquer um invocá­-lo como critério para eximi­-lo do dever de depor.

Aliás, o atual Código de Processo Civil, ao que parece sem notar a dimensão dessa previsão exagerada, resolveu ampliá­-la ainda mais, colocando, no início do art. 379, uma cláusula geral que cria um “imaginado” direito para a parte de não produzir prova contra si, na esfera cível. Esse direito, em que pese a aparente previsão legal, na realidade não existe e jamais poderia existir em um sistema como o nacional . Como já se disse, o dever de produzir prova é uma imposição que decorre do próprio texto constitucional, de modo que somente em razão de outro valor também constitucional poderia ser restringido. Por isso, é plenamente justificável que se restrinja o dever de colaboração para a proteção da garantia contra a autoincriminação, já que essa também tem assento constitucional (decorrendo, na ótica da doutrina e da jurisprudência, do contido no art. 5.º, LVII, da CF). Todavia, a amplitude da redação – absolutamente injustificada e absurda, diga­-se – da parte inicial do art. 379 praticamente cria um direito “fundamental” à não colaboração e, assim, um direito também “fundamental” a esconder a verdade no processo civil. Em última análise, a interpretação literal desse preceito (em sua parte inicial) institui e legitima a chicana processual e autoriza a litigância abertamente de má­-fé, o que não se pode aceitar.

Supor que a parte tenha o direito de esconder a prova que lhe é desfavorável, e que só tenha o “dever” – que aí é nada mais do que o seu próprio interesse! – de trazer aos autos a prova que lhe é favorável, realmente, é imaginar que a parte deve sempre tentar litigar, ainda que de forma abusiva, na esperança de que a parte contrária não consiga obter por outra via a prova que foi, com a autorização do código, escondida. Nada há que justifique esse imaginado “direito”, que sequer se harmoniza com a seriedade que se espera de quem litiga judicialmente.

Não bastasse a falta de respaldo constitucional e ético para esse preceito, vê-se ainda que ele sequer encontra eco na própria estrutura do CPC . De fato, como já se sublinhou antes, o código possui várias regras que impõem um dever de produção de provas para a parte, permitindo, inclusive, no caso de desobediência (que, logicamente, só ocorrerá quando a prova for desfavorável a essa parte), o emprego de medidas coercitivas ou sub­-rogatórias para a obtenção da informação (v.g., arts. 400, parágrafo único e 379, I, II e III).

Aliás, a suposta existência de um direito (civil) de não produzir prova contra si é claramente incompatível com a previsão, no ordenamento jurídico, da técnica da confissão (em especial, a ficta). Afinal, se é “direito” da parte “não produzir prova contra si”, então como se justifica que aquele que exerce esse direito (se recusando a depor), nos termos do art. 386, sofra os efeitos da confissão ficta?

Enfim, é evidente que a parte inicial do art. 379 é apenas um excesso infeliz, que exige interpretação que o reduza aos seus limites constitucionais: o direito de não produzir prova que possa repercutir em sua incriminação . Assim, em que pese a literalidade do dispositivo, o preceito – até para se harmonizar com o resto do código de processo civil e para compatibilizar­-se com o texto constitucional – impõe que se compreenda que a garantia oferecida pela parte inicial do art. 386 é, e só pode ser, aquela que sempre foi aceita no plano constitucional brasileiro, ou seja, a garantia contra a autoincriminação.

Feita essa ressalva inicial, importa ver que, com esse privilégio, busca­-se evitar a situação, quase desumana, de impor à parte o dever de declarar a verdade quando esse implicar o dever de autoincriminação. Obrigando­-se a parte a manifestar­-se sobre ilícitos que eventualmente haja praticado, e se lhe impondo o dever de dizer a verdade, certamente ela seria colocada em situação absurda, que sequer o processo penal exige: a de ter que confessar um delito. E, na tentativa da preservação de sua liberdade, certamente a situação o forçaria a mentir sobre o fato, incorrendo eventualmente, perante o regime do direito processual civil brasileiro, em sanções processuais, como a litigância de má­-fé e podendo induzir o juízo a conclusões equivocadas. 40

Em razão desse insustentável dilema, autoriza a lei processual (em sentido evidentemente ampliado pelo Código Civil , como visto anteriormente), por questões humanitárias e por acolher, como princípio, o da inexigibilidade da autoimputação criminosa, a dispensa da parte em depor sobre fatos criminosos ou torpes que lhe são imputados . 41

O outro privilégio diz respeito ao sigilo, especialmente aquele decorrente de relações ético­-profissionais, como o dever de sigilo imposto aos fatos conhecidos por relação advogado­-cliente, médico­-paciente etc. Aqui, a previsão se faz para assegurar o desenvolvimento adequado e correto das próprias atividades profissionais que, sem essa garantia, restariam abaladas pela falta de confiança entre os sujeitos envolvidos (arts. 388, II; 404, IV e 448, II).

O dever de guardar sigilo aplica­-se, no direito brasileiro, tanto a hipóteses de relações profissionais e religiosas, como derivadas de função pública exercidas por alguém, ou ainda de ofícios específicos (arts. 154 e 325 do CP brasileiro). Também se entende que pessoas auxiliares daquelas que devem guardar o segredo ficam vinculadas ao sigilo da informação (por exemplo, a secretária do advogado). Em todos esses casos, a manutenção do sigilo é dever que se impõe não apenas em decorrência da determinação de dispositivo processual civil, mas ainda porque a violação desse segredo pode importar em crime ou infração ética.

E mais, esse segredo deve ser mantido – especificamente em alguns casos determinados –, ainda que o “interessado” consinta na sua violação (ver, por exemplo, o art. 7.º, XIX, da Lei 8.906/1994 – Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil).

Nesses casos, é direito do depoente recusar­-se a declarar sobre os fatos, não sendo possível que a parte venha a ser coagida a manifestar­-se, nem se pode, dessa sua conduta, extrair qualquer consequência gravosa para si ou para seus interesses. Entretanto, como pondera Moniz de Aragão, 42 nada impede que o juiz ouça, se assim entender conveniente e necessário, a pessoa que relatou os fatos àquela que se recusa a depor na condição de testemunha inquirida de ofício, situação em que poderá o magistrado inteirar­-se dos fatos que considera relevantes.

9.4. Ônus da prova

9.4.1. O fim da distribuição do ônus da prova

De acordo com o art. 373 do CPC , o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo do seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Essa regra, que distribui o ônus da prova entre o autor e o réu, aparentemente se funda na lógica de que o autor deve provar os fatos que constituem o direito por ele afirmado, mas não a inexistência daqueles que impedem a sua constituição, determinam a sua modificação ou a sua extinção. 43

Entretanto, como se viu acima, a questão referente aos deveres probatórios das partes é tratada por outros dispositivos e não se confunde com a verdadeira função da regra do ônus da prova. O ônus da prova não trata de deveres, atribuídos às partes, ainda que eventualmente possam sobrepor­-se as finalidades a que se destinam a regra do ônus probatório e as regras sobre deveres instrutórios atribuídos às partes.

Os deveres probatórios são amplos e são imputáveis não apenas às partes, mas também aos terceiros intervenientes, ao Ministério Público e ao próprio magistrado. Já o ônus da prova tem dupla finalidade. Sua mais importante finalidade é servir como regra de “fechamento do sistema”, informando ao juiz como deve julgar se, ao final da instrução da causa, permanecer em dúvida a respeito dos fatos relevantes para a decisão. Ao assim fazer, porém, também a regra exerce outra finalidade: a de orientar o comportamento das partes, de modo que, cientes de como será a decisão judicial em caso de insuficiência de prova, passam a ser os maiores interessados em produzir as provas relevantes para o processo. 44

Assim, a regra do ônus da prova destina­-se – tal como a regra que impõe deveres instrutórios às partes – a dirigir o comportamento das partes no que tange ao risco da ausência de prova e iluminar o juiz que chega ao final do procedimento sem se convencer sobre como os fatos se passaram. Nesse sentido, a regra do ônus da prova é um indicativo para as partes a respeito de quem pode se prejudicar com o estado de dúvida judicial e para o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, definir o mérito (sendo conhecida nesse contexto como uma regra de instrução , acentuando-se o aspecto subjetivo da regra que distribui o ônus da prova). Tal dúvida deve ser paga pela parte que tem o ônus da prova. Se a dúvida paira sobre o fato constitutivo, essa deve ser suportada pelo autor, ocorrendo o contrário em relação aos demais fatos. 45 Nesse sentido, é possível coexistirem regras que impõem o dever de prova às partes e regras que impõem o ônus da prova às partes: ambas são técnicas de que se vale o legislador para bem instruir o feito. 46 Desse modo, por um lado, o aporte de provas no processo pelas partes – e por qualquer pessoa que tenha conhecimento de fatos relevantes ao julgamento da causa – é um dever imposto por dispositivos como os arts. 378 , 379 e 380 do CPC . Por outro lado, em razão da regra do ônus da prova, esse mesmo aporte satisfaz também um interesse das próprias partes, a fim de evitar sujeitar­-se a uma decisão desfavorável em razão de sua omissão.

Ninguém duvida que o juiz pode julgar favoravelmente à parte que não se comportou no sentido do regime do “ônus da prova”, uma vez que o julgamento pode se basear em provas produzidas de ofício ou mesmo em provas produzidas pela parte contrária. Mas isso não retira a importância de que as partes saibam, de forma prévia , a quem incumbe o ônus da prova, pois, ainda que a omissão da parte não redunde necessariamente em seu prejuízo, não há como negar que a parte deve ter ciência prévia daquilo que lhe cabe fazer para estar em posição de receber um julgamento favorável , independentemente de outras provas, produzidas de ofício ou pela parte contrária ou ainda por terceiros.

A produção de prova não é um comportamento necessário para o julgamento favorável. Na verdade, o ônus da prova indica que a parte que não produzir prova se sujeitará ao risco de um resultado desfavorável . Ou seja, o não desempenho desse ônus não implica, necessariamente, resultado desfavorável, mas o aumento do risco de um julgamento contrário , uma vez que, como precisamente adverte Patti, certa margem de risco existe também para a parte que produziu a prova. 47 A ideia de ônus da prova não tem o objetivo de ligar a produção da prova a um resultado favorável, mas sim o de relacionar a produção da prova a uma maior chance de convencimento do juiz.

De todo modo, não há como entender que o art. 373, quando dirigido ao juiz, é uma mera regra de decisão. É também uma regra de decisão (ou de julgamento , sendo conhecida como o aspecto objetivo da regra do ônus da prova), mas não só. Ainda quando se pensa tal regra como dirigida ao juiz, não há como deixar de separar a sua aplicação como regra de decisão e como regra determinante da formação do convencimento judicial.

Quando a doutrina considera a regra do ônus da prova em relação ao juiz, supõe que a sua única função é a de viabilizar a decisão no caso de dúvida. Nessa linha, por exemplo, Patti afirma que tal regra confere ao juiz a oportunidade de acolher ou rejeitar a demanda quando, não obstante a atividade probatória das partes – ou mesmo na sua ausência –, ele esteja em dúvida em relação à verdade dos fatos. 48

É certo que o juiz pode se convencer ainda quando a parte não tenha trazido toda a prova que poderia para o processo. Recordando que o juiz pode determinar a produção de prova de ofício ou mesmo se convencer mediante prova produzida pela outra parte, diante da inexistência de dúvida, realmente não há razão para o juiz invocar a regra do ônus da prova como regra de decisão. Nessa perspectiva , é correta a conclusão de que a regra do ônus da prova somente deve importar em caso de dúvida.

Acontece que esse raciocínio somente é exato quando se toma a regra do ônus da prova como regra de decisão , ou seja, como regra que passa a importar apenas depois de o juiz ter passado pela fase do convencimento e, obviamente, ter restado em estado de dúvida. Ou melhor, a insistência de que a regra do ônus da prova, quando dirigida ao juiz, importa apenas quando há dúvida decorre da falta de constatação de que o juiz somente pode decidir depois de ter passado pela fase de convicção.

Na fase de convicção e, portanto, antes de ter chegado a uma eventual dúvida, o juiz deve considerar não só a natureza dos fatos em discussão e a quem incumbe a sua prova, mas também a natureza da situação concreta a ele levada para julgamento. Há situações de direito substancial que exigem que o convencimento judicial possa se formar a partir da verossimilhança do direito sustentado pelo autor – isto é, a partir de um juízo de normalidade . Assim, por exemplo, os casos das chamadas lesões pré­­-natais, quando não há racionalidade em exigir do autor, para a procedência da ação ressarcitória, a prova de que a doença do recém­-nascido deriva do acidente que a sua mãe sofreu quando em gestação.

Em um caso como esse, a ausência de prova não leva o juiz a um estado de dúvida , que teria que ser dissipada através da aplicação da regra do ônus da prova como regra de decisão, julgando­-se improcedente o pedido pelo motivo de o autor não ter se desincumbido do ônus da prova. E isso por uma razão bastante simples: é que o juiz, nesses casos, não finaliza a fase de convencimento em estado de dúvida. Estar convicto que a verossimilhança é o bastante não é o mesmo que estar em dúvida .

Quando se fala que a regra do art. 373 importa para a formação do convencimento , deseja­-se dizer que ela pode ser atenuada diante de determinadas situações de direito substancial . Perceba­-se que, ao se admitir que a técnica da verossimilhança tem a ver com a formação do convencimento judicial, fica fácil explicar a razão pela qual o juiz, ao considerar o direito material em litígio, não deve se preocupar com a prova de fatos considerados de impossível esclarecimento . Se o juiz, para decidir, deve passar por um contexto de descoberta, é necessário que ele saiba não apenas o objeto que deve descobrir, mas também se esse objeto pode ser totalmente descoberto . Apenas nesse sentido é que o convencimento, considerado como expressão do juiz, pode ser compreendido. Ou melhor, o convencimento judicial somente pode ser pensado a partir do módulo de convencimento próprio a uma específica situação de direito material , pois o juiz somente pode se dizer convencido quando sabe até onde o objeto do seu conhecimento abre oportunidade para o convencimento.

A exigência de convencimento varia conforme a situação de direito material e, por isso, não se pode exigir um convencimento judicial unitário para todas as situações concretas. Como o convencimento varia de acordo com o direito material, a regra do ônus da prova também não pode ser vista sempre do mesmo modo, sem considerar a dificuldade de convicção própria ao caso concreto.

Quando a regra do ônus da prova passa a considerar a convicção diante do caso concreto, ela passa a ser responsável pela formação da convicção, que pode ser de “certeza ” sobre a “verdade” ou sobre a “verossimilhança ”. Isso quer dizer que pode ser de verossimilhança sem ser de dúvida . Não há como aceitar a ideia de que a regra do ônus da prova somente tem importância para permitir a decisão em caso de dúvida e não para a formação do convencimento. Ora, o juiz que decide com base em verossimilhança não está em estado de dúvida: ao contrário, ele está convencido de que a verossimilhança basta diante das circunstâncias do caso concreto.

9.4.2. Contraprova e prova dos fatos alegados pelo réu

Cabe esclarecer a distinção entre a prova dos fatos impeditivo, modificativo e extintivo e a contraprova. Tal distinção, na verdade, não recai sobre a prova, mas sim sobre o fato que a prova objetiva demonstrar. 49

Há contraprova quando o réu contesta o fato constitutivo e requer prova em relação a ele. A contraprova não é apenas a que objetiva invalidar formalmente a prova do fato constitutivo, como a que visa demonstrar a falsidade do documento que aponta para o fato constitutivo. A contraprova diz respeito ao próprio fato constitutivo, e não apenas à sua prova . Se o autor produziu prova documental ou testemunhal, a contraprova pode demonstrar o contrário do que essas provas trazem em seu conteúdo. Assim, por exemplo, se o autor produziu prova testemunhal para demonstrar que o réu atravessou o sinal vermelho, o réu produz contraprova quando requer a ouvida de uma testemunha para dizer o contrário.

Quando o réu não contesta o fato constitutivo, mas afirma um fato capaz de impedir que o fato constitutivo produza os seus efeitos, ou fatos que impliquem modificação ou a extinção do direito, não há como pensar em contraprova pela simples razão de que não houve contestação ao fato constitutivo.

Perceba­-se que não é pela razão de que ao autor incumbe o ônus da prova do fato constitutivo que o réu não poderá produzir prova com relação a ele. O réu tem o ônus de contestar de forma adequada e especificada os fatos alegados na petição inicial, podendo requerer a produção de prova ou de contraprova, para demonstrar a inexistência do fato alegado pelo autor.

É lógico afirmar que a contraprova somente tem razão de ser quando o autor produziu alguma prova do fato constitutivo ou existe algum argumento de prova capaz de evidenciar a sua existência. Acontece que, na contestação, ou mesmo antes do momento apropriado para a organização do processo, o réu apenas pode saber que uma determinada prova foi requerida, mas nunca ter certeza de que foi admitida. Por isso, o réu pode requerer contraprova, mesmo que a prova requerida pelo autor ainda não tenha sido admitida.

9.4.3. A regra do ônus da prova como saída para o juiz em estado de dúvida

A regra do ônus da prova se dirige às partes e ao juiz . Quando o juiz é o seu …

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25 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/caso-1-casos-curso-de-processo-civil-vol-2-ed-2023/1916545692