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27 de Maio de 2024

A morte de um cinegrafista

Publicado por Rogério Tadeu Romano
há 5 meses

A MORTE DE UM CINEGRAFISTA

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

A Justiça do Rio de Janeiro condenou o artesão Caio Silva de Souza, um dos acusados pela morte do cinegrafista Santiago Andrade, a 12 anos de prisão em regime inicialmente fechado. Ele foi condenado por lesão corporal seguida de morte.

O outro réu, o tatuador Fábio Raposo Barbosa, foi absolvido pelo Conselho de Sentença do 3º Tribunal do Júri do Rio. Caio poderá recorrer em liberdade, como noticiou o portal de notícias da Folha, em 13.12.23.

Fabio e Caio foram denunciados por homicídio triplamente qualificado –por motivo torpe, impossibilidade de defesa da vítima e emprego de explosivo– e pelo crime autônomo de explosão. os jurados concluíram que não existiu o dolo eventual em matar a vítima.

Como aludiu o portal do jornal O Globo, em 12.12.23, um dos advogados do réu Fábio Raposo Barbosa, Wallace Martins ressaltou a coerência da tese apresentada pela defesa.

— Nós nunca mudamos a nossa tese, que é coesa, são 10 anos que estamos afirmando que não houve dolo nem mesmo eventual. O que houve ali foi a inobservância do dever de cuidado o que caracteriza crime culposo ou, no máximo, o delito de explosão com resultado morte, jamais homicídio doloso — analisa Martins.

“Fábio e Caio haviam sido acusados pelo crime de homicídio doloso qualificado por emprego de explosivo. Porém, os jurados concluíram que não existiu o dolo eventual em matar a vítima, o que levou à desclassificação do crime. Com isso, a competência para julgar Caio, que foi quem acendeu o rojão, passou a ser da juíza Tula Correa de Mello, que o condenou pelo crime de lesão corporal seguida de morte”, afirma o TJRJ.

Acentuou ainda a Folha, em reportagem, em 13.12.23:

"Fabio afirmou em seu depoimento que era um frequentador das manifestações e protestava contra o governo.

Em 6 de fevereiro de 2014, dia em que Santiago foi atingido, ele chegou na manifestação por volta das 18h30 e disse ter percebido um tumulto. Na correria, alegou ter visto no chão um objeto preto e pegou por" curiosidade "sem saber que era um rojão.

Ele relatou não ter visto o momento em que Caio acendeu o rojão nem quando o explosivo atingiu Santiago.

Caio declarou sentir culpa pela morte de Santiago."Eu passo todo dia pela Central do Brasil e carrego o peso da minha mochila, mas também carrego o peso de ter matado um trabalhador. Todo dia eu carrego peso do meu trabalho e o peso de ter matado um trabalhador", disse.

De acordo com o artesão, ele e Fabio se conheciam de vista e se encontraram no dia da manifestação. Fabio teria perguntado se Caio tinha um isqueiro. Após acender e colocar o artefato no chão, Caio teria deixado o local.

Ele afirmou que soube do motivo da morte do cinegrafista nos dias seguintes, com a repercussão na imprensa. Antes, acreditava que ela havia sido provocada por bombas jogadas pela Polícia Militar.

"Se eu tivesse consciência do que era e o que poderia causar, eu jamais iria pegar na minha mão. Eu vi outras pessoas soltando algo que fez uma explosão de cores", alegou."

II – A DESCLASSIFICAÇÃO

Houve, portanto, por parte do Tribunal do Júri popular uma desclassificação da tipificação penal.

A desclassificação pode ser própria ou imprópria.

O conselho de sentença altera a figura penal descrita na pronúncia para outra, sem, no entanto, indicar qual. Negando o segundo quesito (essas lesões deram causa à morte?), retiram o nexo de causalidade entre a infração descrita e o delito doloso contra a vida. A competência é encaminhada ao juiz presidente que termina por julgar o mérito.

Assim a desclassificação própria dar-se-ia quando os jurados, ao responderem certos quesitos que lhe são formulados, decidem que o fato imputado não caracteriza crime doloso contra a vida, sem, contudo, identificar qual seria o pretenso crime praticado pelo acusado.

"Quando afastada a figura penal, não se decide diante das respostas dos jurados sobre a existência ou não de qualquer outra figura penal, pois o Júri não especifica o nomen juris do tipo penal, alterando a classificação constante na sentença de pronúncia, assumindo o juiz presidente a capacidade decisória, pela manifestação do Conselho de Sentença. Como exemplo sempre citado pela doutrina, temos a desclassificação de tentativa de homicídio para outro delito cujo nomem juris não é indicado no momento em que os jurados desclassificam a tentativa de homicídio, para outra infração penal. Neste caso, devolve-se ao Juiz Presidente toda a questão referente ao direito e ao fato, uma vez que os jurados não reconheceram a sua competência para julgar o acusado de crime doloso contra a vida. Quando a matéria é transferida para o juiz-presidente, este pode examiná-la e julgá-la como convém, aplicando o princípio do livre convencimento motivado, tendo em vista que o Júri declarou a sua incompetência para julgar o delito. Assim, se o processo tiver um exame pericial, o juiz pode condenar por lesões corporais graves (art. 129 § 1º do CP), por lesão leve (art. 129 do CP), por perigo para vida ou saúde de outrem (art. 132 do CP), ou mesmo absolver o acusado. Se a infração for desclassificada para lesão leve ou culposa, a vítima terá 30 dias para representar nos termos do art 89 da Lei 9099/95. Se o réu for militar, com a desclassificação do crime, seja a desclassificação própria ou imprópria, o processo será enviado à justiça militar. Com a superveniência do julgamento pelo Júri, havendo a desclassificação para lesão corporal e envio dos autos ao juízo competente resta prejudicada a análise de indigitados vícios na pronúncia."(STJ, 6.ᵃ T., HC 103.878/MG, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j.10/11/2009, DJe 07/12/2009).

Disse Do Vale (A desclassificação no Tribunal do Júri, in Ius Brasil) quanto a desclassificação imprópria:

"A desclassificação imprópria, que se opera quando as respostas dos jurados remetem ao juiz presidente a competência para julgar como juiz singular, mas condicionado à definição de um crime fixado pelos jurados, em geral por quesitos da defesa. Por exemplo, os jurados desclassificam o delito doloso para culposo. A competência do Tribunal do Júri encerra-se quando votado quesito que culmine em desclassificação imprópria, devendo o julgamento do feito ser atribuído ao Juiz Presidente. Constatada a desclassificação, a continuidade da votação implica nulidade apenas das respostas dadas pelo Conselho de Sentença para os demais quesitos, não se fazendo necessária a anulação de toda a sessão de julgamento, sob pena de violação do princípio da soberania dos veredictos, já que, em novo julgamento, o Conselho de Sentença poderia, em tese, modificar as respostas conferidas aos quesitos formulados anteriormente à nulidade."

Com a desclassificação própria o julgamento sai da competência do Conselho de Sentença, uma vez que não se está mais diante de um crime doloso contra a vida, à luz do artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição Federal de 1988.

A desclassificação imprópria acontece quando os jurados afirmam os dois primeiros quesitos, mas por conta da violação de qualquer outro – podendo ser ou não ser tese defensiva – terminam concluindo que não houve dolo, mas, crime culposo contra a vida.

A desclassificação própria pode ocorrer em dois casos: a) nega-se o dolo, ainda que eventual; b) nega-se a tentativa (artigo 14, II, do CP), neste último caso, voltando ao segundo quesito. Caberá ao Juiz -Presidente proferir decisão, pois o Tribunal do Júri se declarou incompetente para tanto quando negou a presença de um delito doloso contra a vida, tendo remanescido figura delituosa a ser apreciada.

Herminio Alberto Marques Porto ( Júri, pág. 140 e 141) ensina ocorrer a desclassificação própria quando o Conselho de Sentença altera a figura penal descrita na pronuncia, para outra, sem, no entanto, indicar qual. É o que se dá, por exemplo, quando há a negativa ao segundo quesito, no caso de homicídio consumado. Afinal, negando o primeiro quesito – no que diz respeito à materialidade do fato – estão os jurados adentrando o mérito da infração penal e absolvendo o acusado. Ocorre que negando o segundo quesito (essas lesões deram causa a morte da vítima?) não há mais nexo de causalidade estabelecido entre a infração descrita no primeiro quesito e o delito doloso contra a vida, o que asseguraria a competência do júri para julgar o caso. Nessa hipótese aplica-se, de forma integral, o disposto no parágrafo primeiro do artigo 492 do CPP, de modo que a competência para julgar a infração desloca-se para o juiz-presidente, que lhe poderá dar a configuração que bem entenda e até mesmo absolver o réu, por entender não provada a existência do crime. Havendo crime conexo todos serão julgados pelo magistrado togado, presidente do júri. Por sua vez, a desclassificação imprópria acontece quando os jurados afirmam os dois primeiros quesitos, mas, por conta da votação de outro qualquer – podendo ser ou não tese defensiva – terminam concluindo que não houve dolo, mas crime culposo contra a vida. Imagine-se ter o defensor sustentado em plenário que o réu, de fato, disparou sua arma contra a vítima, causando-lhe sua morte, mas o fez por imprudência, jamais dolosamente. O magistrado irá incluir um outro quesito, indagando do Conselho de Sentença se a morte adveio da imprudência com que agiu o acusado. Afirmando-se este quesito, terá havido a desclassificação imprópria que, para Marques Porto vincula o magistrado presidente a condenar o réu como incurso no artigo 121, § 3º, do Código Penal, bem como faz prosseguir a votação no tocante aos demais quesitos pertinentes.

Em síntese, havendo a desclassificação própria ou imprópria deve o juiz dar por encerrada a votação, passando a decidir o caso sem qualquer vinculação inclusive no tocante aos crimes conexos.

III - A LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE: O CRIME PRETERDOLOSO

O crime de lesão corporal tem sua objetividade jurídica em ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (artigo 129).

O dano à integridade física trazido pelo crime deve ser juridicamente apreciável. Como dano à integridade corporal entende-se a alteração anatômica ou funcional, interna ou externa que lese o corpo, como ferimentos, cortes, luxações, fraturas, etc. O dano à saúde compreende a alteração seja fisiológica ou ainda a psíquica. Assim a dor física ou a crise nervosa, sem comprometimento físico ou mental, não configura lesão corporal, podendo caracterizar um crime de tortura, como bem disseram Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior, Fábio M. de Almeida Delmanto ( Código penal comentado, São Paulo, Renovar, 6ª edição, pág. 272).

É crime comum quanto ao sujeito, doloso, culposo (artigo 129, § 8º do Anteprojeto) ou preterdoloso (nas suas diversas figuras), comissivo ou omissivo, material, instantâneo e de resultado, sendo necessário o exame de corpo delito (artigo 158 do CPP).

Poderá ocorrer lesão corporal seguida de morte (artigo 129, parágrafo quarto), isso se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo. A pena é de prisão de quatro a doze anos.

Recorre-se a Aníbal Bruno (Direito penal, Rio de Janeiro, Forense, 1959, v. II, pág.76) para quem tem-se o crime preterintencional quando o resultado ocorrido é mais grave do que o querido pelo agente, e por esse mais em que o resultado excede o contido no seu dolo responde ainda o agente, agravando-se- lhe a pena.

Temos que, a partir de Binding, vincula-se o segundo resultado mais grave à responsabilidade do agente á título de culpa.

Afaste-se da ideia trazida por Ranieri que admite que o resultado se prende ao comportamento do agente pelo simples nexo de causalidade o que torna possível a responsabilidade somente através de um processo causal típico.

Há nesse processo dolo em relação ao resultado antecedente e culpa no resultado conseqüente.

Em verdade, o crime preterdoloso é um crime misto, em que há uma conduta que é dolosa, por dirigir-se a um fim típico, e que é culposa por causação de outro resultado que não era objeto do crime fundamental pela inobservância do cuidado objetivo. São crimes qualificados pelo resultado.

IV– O HOMICÍDIO CULPOSO E O CRIME DE EXPLOSÃO COM RESULTADO MORTE

Portanto, o Tribunal do Júri não acatou seja a tese do homicídio culposo ou ainda do crime de explosão com resultado morte.

Prescreve o artigo 121, § 3º:

§ 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)

Pena - detenção, de um a três anos.

Prevê o artigo 121, § 4º, do anteprojeto do Código Penal, que se o crime é culposo a pena é de prisão de um a quatro anos. Aumenta-se a pena máxima in abstrato, que hoje é prevista em três anos de detenção.

Culpa, na definição de Maggiore é "a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz um resultado antijurídico não querido, mas previsível, ou excepcionalmente previsto, de tal modo que podia, com a devida atenção, ser evitado."

Trata-se de um crime de dever, pois se caracteriza por uma violação do dever de cuidado.

Fala-se no crime de explosão.

Ruggero Romanese (Manuale de Medicina Legale, 1937, volume I, pág. 449), acerca da explosão, disse que, nela, a ação contundente é dada direta ou indiretamente pela brusca expansão de fluidos, sejam previamente formados e encerrados sob pressão,sejam desenvolvidos no mesmo momento em que a explosão se verifica, em seguida às reações químicas.

Será necessário que a explosão, o arremesso ou colocação acarretem risco próximo e imediato a pessoas ou patrimônios indeterminados. Sendo assim não há tal crime no caso de explosivos de mínimo poder expansivo utilizado pelo acusado em local afastado de pessoas e de bens patrimoniais (RT 427/364).

Ocorre que o crime praticado pode trazer lesão corporal de natureza grave ou morte (artigo 258 do Código Penal),envolvendo o chamado crime pretedoloso (artigo 19 do Código Penal), quando o agente pratica uma conduta dolosa, menos grave, porém obtém um resultado danoso,mais grave do que o pretendido,na forma culposa. Caberá a defesa, diante dos resultados da investigação, alegar que os resultados, seja lesão corporal grave ou morte, não foram desejados pelo agente ou agentes, ou seja, foram causados, ao menos, de forma culposa por ele ou eles, isto porque as lesões corporais leves não qualificam as figuras dolosas. Se o resultado não decorreu de culpa, mas de mera relação de causalidade, incidirão apenas as figuras simples dos crimes de perigo e não esta forma qualificada. Se do crime de explosão, resultar lesão corporal grave, a pena privativa de liberdade é aumentada da metade; se resulta morte, a pena será aplicada em dobro. Se for entendido que se trata de crime culposo de incêndio, de perigo comum, se resulta lesão corporal (sem distinção sobre a gravidade), aumenta-se a pena da metade. Se resulta morte, aplica-se a pena de homicídio culposo (artigo 121, § 3º), aumentada de um terço.

V – CONCLUSÕES

A decisão acima historiada deverá ser objeto de recursos, seja pela acusação ou ainda pela defesa, devendo chegar ao Superior Tribunal de Justiça, como maior guardião da lei federal.

Seja como for, pela hipótese narrada, com a devida vênia, o melhor entendimento parece ser o enquadramento no tipo penal de explosão com resultado morte.

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