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5 de Maio de 2024

Crimes previstos no Estatuto do Torcedor

A Lei nº 12.299/10 trouxe ao Estatuto de Defesa do Torcedor cinco tipos penais

Publicado por Fabio Rabello
há 4 anos

Foto: Agência Reuters

A Lei nº 10.671/03, mais conhecida como Estatuto de Defesa do Torcedor (ou só Estatuto do Torcedor), regula as normas destinadas para a proteção dos consumidores dos mais variados eventos esportivos. Como a ideia é preponderantemente de proteção ao espetáculo, a Lei nº 12.299/10 inovou e trouxe ao Estatuto alguns crimes, podendo estes serem cometidos tanto pelos admiradores, quanto dirigentes, cartolas, árbitros, cambistas, etc. Para muitos, diante das normas ali expressas, trata-se de uma verdadeira extensão ao Código de Defesa do Consumidor, porém, voltado ao ramo do Direito Desportivo.

Em primeiro momento, é necessário desmistificar a ideia que o Estatuto do Torcedor somente punirá os infratores durante partidas de futebol. Não é somente nesta modalidade, mas sim em qualquer evento esportivo que ocorra no país (como corridas de Fórmula 1, partidas de basquete, vôlei, futsal, etc). Além disso, os torcedores não estão sujeitos somente aos delitos ali previstos, mas também em todas as outras tipificações de nosso ordenamento jurídico, como aqueles previstos no Código Penal e na Lei de Contravencoes Penais. Como a ideia é justamente abordar o Estatuto em si, outras ações típicas cometidas por torcedores (como os delitos contra a honra) não serão abordados aqui, mas sim em uma postagem posterior.


Considerações Iniciais:

A lei define expressamente o que é torcedor:

Art. 2o Torcedor é toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva.
Parágrafo único. Salvo prova em contrário, presumem-se a apreciação, o apoio ou o acompanhamento de que trata o caput deste artigo.

Como extraí-se da breve leitura, é uma norma bem ampla, definindo torcedor até mesmo aquele que não acompanha com frequência algum clube ou que não tenha um “time do coração”. A título de exemplo, um são-paulino que decide ir à Vila Belmiro assistir um jogo do Santos contra o Corinthians e comete algum crime previsto no Estatuto do Torcedor, será considerado infrator sem problema algum, por própria disposição da lei, que decidiu definir torcedor como acima colocado.

A norma assegura também que os Estados e o Distrito Federal podem criar juizados especializados para melhor acompanhamento dessas infrações:

Art. 41-A. Os juizados do torcedor, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pelos Estados e pelo Distrito Federal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das atividades reguladas nesta Lei.

No estado de São Paulo, por exemplo, o Provimento nº 2.258/15 do Tribunal de Justiça (TJ/SP) estabeleceu permanentemente a instituição o Anexo do Torcedor ao Juizado Especial Criminal (popularmente conhecido como “Juizado do Torcedor”), que fica disponível, além do expediente forense regular, durante as modalidades desportivas com grandes aglomerações (como partidas dos Campeonatos Estaduais e Nacionais). Lembramos, contudo, que a competência para estes se restringe aos delitos com pena máxima até dois anos, por força constitucional, ratificando a ideia no próprio provimento:

Art. 36. O Anexo Judicial de Defesa do Torcedor permanente será competente para processar e julgar, no âmbito da Comarca de São Paulo, os crimes de menor potencial ofensivo e os previstos na Lei 10.671/2003 (acrescentados pela Lei 12.299/2010), bem como os conexos a eles, praticados em eventos futebolísticos ou em decorrência deles, sem prejuízo das regras de conexão do Código de Processo Penal.
Parágrafo único. Os inquéritos e os pedidos de natureza cautelar, referentes à competência do Anexo Judicial de Defesa do Torcedor permanente, serão distribuídos a este.


Dos Crimes em Espécie:

Os crimes previstos nessa lei estão expressos no Capítulo XI-A, todos de ação penal incondicionada, ou seja, o Ministério Público ao tomar ciência que a norma foi violada entrará com uma ação penal independentemente de qualquer outro aviso, autorização ou comunicação (“princípio da obrigatoriedade”).

Bacharel em Direito, ex-vice-presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF), atual vice-presidente do Santos Futebol Clube e especialista em Gestão do Esporte, Orlando Galante Rollo nos contou um pouco sobre a importância do Estatuto do Torcedor tipificar delitos para prevenir a prática de violência próximo às praças esportivas:

“Sobre os crimes previstos no Estatuto do Torcedor (lei nº 10.671 de 2003), estes foram inseridos através de uma necessidade específica, com o intuito de trazer significativos avanços a lei que estabelece normas de proteção e defesa do torcedor possibilitando desta forma, medidas concretas de prevenção e repressão a violência por ocasião de competições esportivas.
Esta inclusão se deu através da lei nº 12.299 de 2010, que acrescentou os artigos: 1º-A, 2º-A, 13-A, 31-A, 39-A, 39-B e 41-A, além do Capítulo XI-A, com os artigos 41-B, 41-C, 41-D, 41-E, 41-F e 41-G, ao texto original do Estatuto do Torcedor. Com esta inclusão, cito a previsão em que o juiz deverá converter a pena de reclusão, em impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, podendo ser convertida em pena privativa de liberdade, em caso de descumprimento injustificado, como uma das medidas concretas supramencionadas que tiveram efeito prático visando coibir os atos de violência entre torcedores e torcidas, através da implantação desta sanção alternativa”.

Com a colocação pontual de Rollo, uma verdadeira autoridade no tema, será possível destrincharmos mais detalhada os crimes em espécies a partir de agora. Alguns destes somente poderão ser cometidos por pessoas com “poderes superiores”, como juízes, dirigentes, treinadores, etc. Outros, por sua vez, são cometidos por qualquer um, mas mais comum por torcedores (ou “pseudotorcedores”). Para melhor compreender, iremos separar essas categorias:

  • 1) Os crimes cometidos por torcedores, simpatizantes, “pseudotorcedores”, e público em geral:
a) Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos.
Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.

O tipo penal é bem abrangente. O ato de promover tumulto pode ser considerado qualquer mera confusão entre torcedores que divergirem de opinião, como, por exemplo, quando um treinador substitui jogador X e um critica, o outro ao lado não gosta da crítica, e ambos começam a partir para uma discussão ‘mais calorosa’, com empurrões e provocações. Entende-se como praticar violência o ato de deixar insultos e a discussão verbal de lado e partir para as vias de fato ou até mesmo danificar algum objeto próximo. Quanto a essa situação, podemos dizer que é a consequência da elementar anterior de praticar tumulto, e, portanto, quem praticar violência responderá pela prática em si, e não em concurso com a outra elementar do delito.

incitar a violência é um ato, em regra, pretérito ao anterior mencionado. É o mais comum de todas estas ações descritas no artigo. Ao irmos aos estádios, é natural nos depararmos com alguns cantos de torcidas organizadas contra uniformizadas de adversários ou até mesmo árbitros. Com o simples canto incentivando a briga ou se vangloriando de “vitórias” em confrontos, quem assim o fez comete o delito. Necessário destacar que esta elementar se assemelha ao disposto nos artigos 286 e 287 do Código Penal, contudo, em virtude do “princípio da especialidade”, a previsão na Lei do Torcedor deve ser a norma aplicada, mesmo que a pena seja maior. Entretanto, como se tornou algo tão comum no Brasil, este caso específico dificilmente é levado à justiça, e, ao que nos parece, se acobertou pela excludente de tipicidade material do “princípio da adequação social” (portanto, não seria mais considerado um crime), afinal, em um estádio com 60 mil pessoas, pense como a Polícia conseguiria prender todos aqueles que cantassem músicas neste sentido? O caos estaria instalado.

Por fim, a ação de invadir local restrito abrange a invasão de pessoas não autorizadas ao campo, quadra, vestiário, salas de imprensa, local reservado à ônibus e etc. Se a pessoa possui uma credencial não estará invadindo o local, mas sim exercendo seu direito regularmente.

Podemos dizer, portanto, que o caput desse artigo é um tipo penal misto alternativo, ou seja se consuma o delito com a promoção do tumulto (em sentido amplo, pois a invasão também pode ser considerada um tumulto) ou a mera incitação da violência.

No parágrafo 1º do artigo, a lei pune com a mesma pena quem:

§ 1o Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:
I - promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil) metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de ida e volta do local da realização do evento;
II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência.

A figura prevista no inciso I busca claramente proteger a sociedade dos confrontos organizados pelas torcidas uniformizadas antes (especialmente) de clássicos. Segue a mesma regra do caput, contudo, alcançando uma distância maior, seja em um raio de 5km do local que será realizado o espetáculo ou no trajeto ao estádio/ginásio, independentemente da distância.

Aqui devemos tomar cuidado para não confundirmos com o crime previsto no artigo 137 do Código Penal (rixa), porém, para este ser cometido é necessário três grupos distintos brigando, enquanto o previsto no Estatuto do Torcedor não há essa necessidade. Portanto, aquelas cenas de combate que aparecem em diversos meios de comunicação são, via de regra, o previsto no artigo 41-B, § 1º, I, do Estatuto do Torcedor. Para melhor compreensão, separei um texto doutrinário e uma decisão de Tribunal:

Percebe-se, portanto, que para a configuração do delito de rixa exige-se a presença de, pelo menos, três pessoas, que brigam indiscriminadamente entre si. O que caracteriza a rixa, na verdade, é a confusão existente no entrevero. Não é, assim, pelo fato de três pessoas estarem envolvidas numa briga que já devemos raciocinar em termos do delito de rixa. Isso porque pode acontecer, por exemplo, que duas pessoas, unidas entre si, lutem contra uma outra, e aí não teremos o delito de rixa, mas o de lesões corporais. (Greco, Rogério.    Código Penal: comentado / Rogério Greco. – 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017, p. 605).
Não ocorre o crime de rixa, e sim vias de fato e homicídio, quando se trata de luta de dois grupos distintos, com participação possível de ser individualizada (TJMT, Rec., Rel. Milton Figueiredo Ferreira Mendes, RT 508, p. 397).

Já o inciso II é muito controverso e necessita de uma interpretação menos abrangente. Ao punir quem portar, deter ou transportar quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência, o legislador permite que as autoridades considerarem qualquer coisa que apresentar risco um crime, inclusive chinelos e demais calçados capazes de tanto. Porém, como o Direito Penal deve se preocupar com ações que potencialmente sejam capazes de colocar em risco a integridade de qualquer cidadão, nos parece haver a necessidade do torcedor transportar um objeto efetivamente capaz de ferir alguém, pois caso contrário estaríamos diante do instituto do “Crime Impossível”. Sendo assim, a figura seria mais destinada aos que tentam ingressar em recintos esportivos com sinalizadores navais, fogos de artifício, armas brancas, produtos inflamáveis, etc.

É importante destacar que se o torcedor portar alguma bomba caseira ou armas de fogo, poderá eventualmente incorrer no delito previsto no artigo 16 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.823/03), conforme ensina os nobres doutrinadores Sanches Cunha e Luís Flávio Gomes:

(...) o conflito aparente de normas com o Estatuto do Desarmamento resolve-se com a aplicação deste, solução orientada pelo princípio da especialidade, pois os objetos descritos na Lei nº 10.823/03 são especiais em relação aos instrumentos enumerados no artigo em comento. (Estatuto do Torcedor Comentado, Luís Flávio Gomes e Outros, Ed. Revista dos Tribunais, p. 124).

As figuras previstas neste artigo são crimes de menor potencial ofensivo, podendo, portanto, serem abrangidas, em regra, por diversos institutos despenalizadores, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, ou seja, o indiciado aceita cumprir algumas condições para que a justiça não o julgue. Ocorre que, por expressa determinação legal, se o Ministério Público oferecer o primeiro instituto, deve unicamente a pena restritiva de direito (condição) ser o impedimento do beneficiado em comparer às proximidades do estádio e a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3 (três) anos:

§ 5o Na hipótese de o representante do Ministério Público propor aplicação da pena restritiva de direito prevista no art. 76 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, o juiz aplicará a sanção prevista no § 2º.

Com a máxima vênia ao legislador, mas restringir essa aplicação tira a autonomia assegurada na Constituição Federal ao Parquet, pois em muitas vezes é necessário aplicar mais restritivas, sendo, inclusive, algumas mais eficazes para a coletividade (como prestar serviços sociais em creches próximas à sede do Clube).

Opostamente, caso a ação penal siga em curso (seja pelo averiguado rejeitar a proposta ou por não ter direito ao instituto), o juiz, caso entenda o mesmo ser culpado, deverá converter a pena para a mesma restritiva comentada anteriormente, desde que o réu seja primário, de bons antecedentes e não ter cometido anteriormente o crime (ao meu ver, uma redação completamente redundante, já que o cometimento deste crime indicará na folha de antecedentes perpetuamente). Além disso, o Poder Judiciário, nesta hipótese, obrigará o torcedor a comparecer ao estabelecimento duas horas antes do jogo, se retirando somente duas horas depois do término do mesmo. Se porventura estes descumprirem tais medidas, a pena poderá ser convertida em prisão:

§ 2o Na sentença penal condenatória, o juiz deverá converter a pena de reclusão em pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3 (três) anos, de acordo com a gravidade da conduta, na hipótese de o agente ser primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de condutas previstas neste artigo.
§ 3o A pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a qualquer local em que se realize evento esportivo, converter-se-á em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta.
§ 4o Na conversão de pena prevista no § 2o, a sentença deverá determinar, ainda, a obrigatoriedade suplementar de o agente permanecer em estabelecimento indicado pelo juiz, no período compreendido entre as 2 (duas) horas antecedentes e as 2 (duas) horas posteriores à realização de partidas de entidade de prática desportiva ou de competição determinada.

Caso realmente a pessoa fique impedida de entrar nos locais, deve a justiça comunicar entidade responsável pela organização da competição, por expressa determinação legal do artigo , § 3º do Estatuto do Torcedor:

§ 3o O juiz deve comunicar às entidades de que trata o caput decisão judicial ou aceitação de proposta de transação penal ou suspensão do processo que implique o impedimento do torcedor de frequentar estádios desportivos.

Ao prever legalmente desta forma, o legislador se preocupou muito mais em tirar dessas pessoas a possibilidade de frequentar os estádios ou demais praças esportivas ao prendê-las, conforme bem pontuou Orlando Rollo pouco acima. O encarceramento será uma exceção ao infrator deste delito.

b) Art. 41-D. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição desportiva ou evento a ela associado.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.

Com o intuito de evitar a famosa “mala preta”, esta tipificação é conhecida como “Corrupção Ativa Desportiva” por ser muito similar ao artigo 333 do Código Penal (Corrupção Ativa). Aqui busca-se punir qualquer pessoa que entregue ou somente prometa alguma vantagem para qualquer um dos envolvidos na prática desportiva, com a finalidade de alterar ou falsear o resultado do evento. Difere-se da “Corrupção Ativa” justamente por isso, já que no Código Penal quem tirará possivelmente uma vantagem é um funcionário público, enquanto no Estatuto do Torcedor é algum dos envolvidos no evento.

O crime de “Corrupção Ativa Desportiva” é de natureza formal, isto é, se consuma no momento da entrega espontânea ou da mera promessa, de modo que é irrelevante a parte contrária aceitar ou até mesmo alterar o resultado do jogo. Pune-se, portanto, o mero ato realizado, indiferente da aceitação ou não de qualquer dos responsáveis.

Diante da pena máxima ser seis anos, a competência não é mais do JECRIM, e não é permitido oferecer quaisquer dos institutos despenalizadores mencionados neste texto, porém, com o advento do Pacote Anticrime, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é possível, diante da pena mínima em abstrato estar abaixo dos quatro anos.

Interessante notar que pune-se a entrega “mala preta”, mas a chamada “mala branca”, conhecida como incentivo feito a jogadores de outro time (em uma partida que o time que oferece dinheiro não está envolvido) para que joguem melhor, como uma forma de incentivar a conseguir um resultado positivo (empate ou vitória), não é considerado ilícito penal até o presente momento, apesar de ser considerado crime em outros países (como na Espanha). Recentemente, entendeu o STJD que trata-se de uma infração administrativa prevista no Código de Justiça Desportiva e condenou o ex-presidente de um time do nordeste com multa, baseando-se no artigo 243-A de tal codificação, um verdadeiro marco na Justiça Desportiva brasileira, mas que ainda precisará enxergar com melhores olhos a possibilidade da “mala branca” ser tipificado no 41-D do Estatuto do Torcedor.

c) Art. 41-F. Vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete.
Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.

O denominado “cambismo” nada mais é que o ato ilegal do sujeito vender ingressos com valor exorbitante em relação ao anunciado no próprio bilhete. A prática é muito comum em finais de campeonatos, já que a procura se torna muito maior.

A título de exemplo, na final da Copa América de 2019 entre Brasil x Peru, um ingresso popular custava R$ 120,00 no site oficial do evento, enquanto que, nas mãos de cambistas, o preço chegava a R$ 2.000,00, conforme relatou a reportagem do portal Terra (Disponível em 08/07/2020 em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/cambistas-vendem-ingressos-para-final-da-copa-america-por-mais-der2-mil,90a8d7ec4943372ff4f09a64a92996920a4e0ojm.html)

Assim como o delito do artigo 41-B, este também é uma infração de menor potencial ofensivo, porém, não está sujeita às restrições previstas nos parágrafos § 4º e 5º daquele, embora não ocorra qualquer restrição de aplicação às penas restritivas ali elencadas se assim entender conveniente o membro do Ministério Público em sua eventual proposta de transação penal ou suspensão condicional do processo.

Detalhe que deve ser observado é que a elementar diz vender INGRESSOS (no plural), de modo que o fato de vender um único ingresso (singular), em tese, não configuraria a prática do delito.

d) Art. 41-G. Fornecer, desviar ou facilitar a distribuição de ingressos para venda por preço superior ao estampado no bilhete.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.

Por fim, muito similar ao “cambismo”, temos a figura daquele que de algum modo entrega aos cambistas ingressos para que os venda por preço superior ao estampado no bilhete.

Vejam que, apesar de ser algo mais comum aos responsáveis pelo evento, nada impede que um torcedor comum adquira cinco ingressos e repasse de alguma forma aos cambistas, sabendo que estes vão vender com preço acima do estipulado. Caso não saiba que estes irão vender por um preço acima do normal, não haverá a prática delitiva, já que se pune somente o dolo na situação.

Ou seja, o que diferencia a tipificação do art. 41-G ao anterior é justamente a ideia incriminar aquela pessoa que, mediante intenção de obter lucro com a comercialização do bilhete esportiva por preço superior ao fixado no ingresso, forneça, desvie ou facilite a distribuição dos mesmos, e não o ato de vender em si.

Caso a pessoa que facilite, desvie ou forneça estes ingressos for integrante da Confederação ou do Clube, haverá aumento de pena:

Parágrafo único. A pena será aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o agente for servidor público, dirigente ou funcionário de entidade de prática desportiva, entidade responsável pela organização da competição, empresa contratada para o processo de emissão, distribuição e venda de ingressos ou torcida organizada e se utilizar desta condição para os fins previstos neste artigo.

Ambas as figuras deste artigo específico deixam a esfera do Juízado Especial Criminal do Torcedor, passando à Justiça Criminal “comum” (algumas comarcas, da mesma forma, com o ‘Anexo Torcedor’).

Ao meu ver, a prática mais comum é justamente a forma majorada do tipo penal, já que dificilmente um torcedor irá favorecer cambistas sem qualquer ganho financeiro. É possível o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal em ambas as formas.


  • 2) Os crimes cometidos por dirigentes, cartolas, atletas e árbitros:

Diferentemente da situação anterior que é um crime comum, ou seja, praticado por qualquer pessoa, estes outros delitos devem ser considerados próprios de autoridades superiores do mundo desportivo, já que é impossível outros atingirem tal consumação. Além disso, em certos esportes individuais (como é o caso do tênis), é possível que o próprio atleta seja responsabilizado.

O bem jurídico protegido aqui é a lisura das competições esportivas, não admitindo, em regra, qualquer instituto despenalizador, com exceção do ANPP.

a) Art. 41-C. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.

O primeiro delito abordado se assemelha ao crime de “Corrupção Passiva” previsto no artigo 317 do Código Penal, porém, voltado à proteger a livre competição esportiva sem qualquer viés financeiro. Por ser de natureza formal, é punível independentemente do placar esportivo ser alterado. A consumação ocorre com o ato de solicitar ou aceitar promessa de vantagem.

Se eventualmente ocorrer a solicitação ou aceitação por alguém que não tenha capacidade para alterar ou falsear o resultado da competição, o crime será outro:

Para a existência do delito deve haver um nexo entre a vantagem solicitada ou aceita e a atividade exercida pelo subornado. Assim, caso não seja o agente competente para a realização do ato comercializado, não há que ser falar no crime em estudo, faltando-lhe um dos elementos legais constitutivos do tipo, podendo, nessa hipótese, ocorrer estelionato ou outro crime (Estatuto do Torcedor Comentado, Luís Flávio Gomes e Outros, Ed. Revista dos Tribunais, pág. 126).

O delito surge cinco anos após um dos casos mais tristes do futebol brasileiro. Conhecida como “Máfia do Apito”, diversos jogos do Campeonato Brasileiro de 2005 foram remarcados diante da descoberta que um grupo de investidores havia “negociado” com alguns árbitros um favorecimento a algum time para que o resultado apostado pudesse ocorrer. Ao todo, onze partidas foram anuladas e remarcadas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (em somente duas o vencedor foi o mesmo).

O crime de “Corrupção Passiva Desportiva” claramente condiz com a ratificação da Convenção de Mérida (Decreto 5.687/2006), cujo Brasil está obrigado a punir as várias formas de corrupção no setor privado, buscando, neste caso específico, o recebimento ou solicitação da conhecida “mala preta” (os comentários referentes ao tema da “mala branca” segue a mesma ideia do artigo 41-D).

b) Art. 41-E. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos e multa.

O último delito analisado pune aquele envolvido que efetivamente contribuir ou fraudar o resultado da competição desportiva. Não exige-se qualquer vantagem, mas tão somente os atos mencionados. Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci nos alerta que o delito em questão poderá ser absorvido por figuras anteriores:

Este delito pode ser o mero exaurimento dos crimes previstos nos artigos 41-C e 41-D. Portanto, caso o agente solicite ou aceite vantagem (art. 41-C) e, depois, fraude o resultado (41-E), pune-se somente a conduta primária (41-C), considerando-se a conduta subsequente (41-E) como fato posterior não punível. Se o agente der ou prometer vantagem (41- D) e, após, contribuir para a fraude (41-E), responde somente pela figura primária (41-D) - (NUCCI, Guilherme de Souza: Leis Penais e Processuais Comentadas, Volume 1, Ed.RT, 6ª edição, 2012, pg. 515).

Os já mencionados doutrinadores Luís Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, na obra do “Estatuto do Torcedor Comentado”, defendem a ideia que até mesmo o atleta pego no “dopping” seria considerado infrator deste delito, desde que, é claro, tivesse o dolo em melhorar seu desempenho físico querendo ou assumindo o risco de influir no resultado de uma competição. O “dopping culposo” não é criminalizado. Outra situação que se enquadraria ao caso seria dar ao adversário alguma bebida “batizada”, como o polêmico caso do jogo Argentina 1x0 Brasil durante a Copa do Mundo de 1990 (Disponível em 08/07/2020 em: https://oglobo.globo.com/esportes/relembre-caso-da-agua-batizada-na-copa-de-90-3212659).


Conclusão:

É fato que o Estatuto do Torcedor veio, ainda que de maneira célere, defender um dos maiores hobbies do cidadão brasileiro: A diversão e lisura da competição esportiva. Buscou, de forma especial, punir quem de alguma forma deixa de lado os princípios básicos do esporte, sejam pessoas comuns que, com brigas e demais situações, embaraçam de alguma forma o comparecimento de famílias em praças esportivas por medo, seja por pessoas de grande influência em confederações influenciando no resultado final por fatores além da dedicação dos atletas.

Apesar de parecer algo relativamente curto, é necessário relembrarmos que os envolvidos podem cometer outros delitos previstos em outras normas, como eventuais crimes contra a honra, lesões corporais, homicídios, furtos, roubos, etc. A ideia do Estatuto do Torcedor, sem dúvidas, é defender de forma especial situações específicas que são “possíveis” acontecerem na prática, sem deixar de lado as demais normas penais no ordenamento.

Por muitos destes delitos serem possível os “acordos penais”, entendo que para proteger as novas gerações e criar a mentalidade que o esporte é diversão e uma maneira de você se conectar com pessoas da mesma sintonia, deveríamos punir de forma mais severa crimes mais comuns, como o previsto no artigo 41-B, ao contrário de obrigar os clássicos serem com torcida única em certas localidades (como ocorre no estado de São Paulo nas partidas de futebol e algumas outras modalidades), além de meios eficazes por parte do Governo para prevenir a prática delituosa em geral. Não podemos de forma alguma abrir mão do lazer, garantia ao cidadão prevista na expressamente no artigo da Constituição Federal, por uma minoria que afronta a legislação pátria e prejudica acaba prejudicando os demais apreciadores do espetáculo.

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