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6 de Maio de 2024

A pandemia do coronavírus e seus reflexos nas relações contratuais.

há 4 anos

A disseminação global do Covid – 19 (novo coronavírus Sars – Cov – 2) fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 decretasse a situação de pandemia, o que exigiu de todos os países a adoção de medidas para controle da disseminação da doença.

O governo brasileiro a fim de adotar medidas mais eficazes de combate à pandemia promulgou o decreto 6/2020 reconhecendo o estado de calamidade no país com efeitos até 31 de dezembro de 2020.

Por se tratar de emergência de saúde pública foram adotadas medidas de confinamento para evitar aglomerações, conforme orientações da OMS. Alguns Estados como São Paulo e Rio de Janeiro emitiram decretos suspendendo o funcionamento do comércio em geral, fechamento de shoppings, cinemas, bares, restaurantes, sendo permitido apenas o exercício de atividades essenciais.

Como podemos observar o impacto da pandemia não se restringiu às questões de saúde pública, também têm impactado fortemente a economia, ameaçando a atividade empresarial, a produção, consumo, emprego e renda.

Estamos diante de uma situação excepcional e sem precedentes, que desafia a humanidade, com nítidas repercussões jurídicas, especialmente no que diz respeito aos contratos, tais como os contratos de financiamento de veículos, imobiliário, locações, serviços, obras, e tantos outros, que serão diretamente afetados pelos efeitos da crise decorrente do Covid – 19.

Certamente diversas obrigações contratuais não poderão ser adimplidas da maneira como foram pactuadas, mas é importante destacar que embora a pandemia nos insira em uma realidade completamente inusitada e imprevisível, nosso ordenamento jurídico dispõe de remédios processuais para responder adequadamente aos anseios da sociedade, quer seja por meio da revisão contratual, que permitirá rediscutir as cláusulas contratuais retomando o equilíbrio, ou até mesmo por meio da resolução contratual, que consiste na extinção do contrato sem cumprimento, medidas estas que a depender do caso concreto se farão necessárias diante do atual cenário.

Não podemos deixar de salientar a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) que é inerente a toda relação contratual, portanto, o que foi pactuado deve ser cumprido, fazendo lei entre as partes, resguardando o princípio da intervenção mínima nas relações contratuais privadas, conforme parágrafo único do artigo 421 do CC/02, favorecendo a segurança jurídica nas relações.

Contudo, a força obrigatória dos contratos não é absoluta, e pode ser mitigada, privilegiando outros princípios contratuais, em especial os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

A função social dos contratos está prevista no caput do referido art. 421 do CC/02 e exige que todo contrato deve se desenvolver em respeito aos valores sociais, a fim de que não haja lesão para as partes e tão pouco para a sociedade. O princípio da boa-fé objetiva (art. 422 CC/02) exige conduta ética e leal dos contratantes, que devem agir com honestidade recíproca em todas as fases do contrato.

Ambos princípios são tutelados pela lei civil e pela Constituição Federal, sendo o princípio da função social de ordem pública, o que autoriza a aplicação de ofício pelo juiz.

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Os contratos celebrados antes da pandemia nasceram em um contexto econômico totalmente diferente, enquanto que na fase de execução se instalou um problema de saúde pública global, totalmente imprevisível e inevitável, que poderá resultar no inadimplemento de obrigações, típica situação de caso fortuito ou força maior.

A pandemia do Covid – 19 configura uma situação excepcional, que impactou o convívio social, paralisou a atividade comercial, empresarial e, por conseguinte a geração de receita para as empresas e famílias.

Diante de tal contexto, cabe trazer à tona a teoria da imprevisão, extraída da antiga cláusula rebus sic stantibus, que permite mitigar a força obrigatória dos contratos, conforme disposto nos arts. 478 a 480 do Código Civil de 2002, que autoriza a revisão contratual ou sua resolução (extinção sem cumprimento) quando por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis a obrigação contratual se tornar excessivamente onerosa para uma parte, impedindo o cumprimento da obrigação, e com extrema vantagem para a outra parte.

Esclarecemos que parte dos doutrinadores defende que os arts. 478 a 480 do CC/02 tratam da teoria da onerosidade excessiva, e que a teoria da imprevisão estaria positivada no art. 317 do CC/02, mas deixaremos as divergências doutrinárias para outro momento.

O que nos interessa no presente estudo é revelar medidas de grande importância disponíveis na legislação, que autorizam o devedor pleitear a revisão do contrato ou a sua resolução, medidas estas que serão cabíveis para os contratos de execução continuada, em que as prestações se repetem sucessivamente ao longo do tempo, a exemplo dos contratos de financiamento, e também para os contratos de execução diferida, que são aqueles em que o cumprimento ocorre de uma vez só no futuro.     Art.

478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a     prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com    extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos     extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução    do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à     data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a     modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das   partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou    alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Observamos que o art. 478 do CC/02 versa apenas sobre a extinção do contrato (resolução), contudo, doutrina majoritária defende ser cabível também o pedido de revisão, merecendo destaque os arts. 479 e 480, pois muitas das vezes o devedor não tem interesse em extinguir o contrato, tão somente rever suas condições, a fim de que seja restabelecido o equilíbrio no contrato e afastada a onerosidade excessiva, o que é permitido.

Oportuno observar ainda, que a extrema vantagem para a parte contrária ora descrita no caput do art. 478 do CC/02 não é requisito essencial, pois a alteração radical do contrato decorrente de circunstâncias extraordinárias não necessariamente será vantajosa para a outra parte.

Importante destacar que a revisão contratual ou sua resolução somente será admitida quando a alteração no ambiente em que o contrato se formou seja excepcional, e que esta alteração não pudesse ser prevista à época, resultando em onerosidade excessiva para o contratante, tornando insuportável o cumprimento da obrigação, requisitos estes que se enquadram perfeitamente na realidade imposta pela pandemia do Covid - 19.

Em respeito aos princípios da função social e da conservação do negócio jurídico, a resolução do contrato (extinção) sempre que possível deve ser evitada, sendo a última alternativa, autorizando o juiz mesmo na hipótese de pedido de extinção do contrato, propor sua revisão, dando a oportunidade para o réu oferecer meios para restabelecer o equilíbrio e salvar o contrato (art. 479 CC/02). Mas é importante frisar que a revisão não pode ser imposta contra a vontade das partes.

Destacamos agora o art. 317 do CC/02 que trata especificamente da revisão contratual a pedido da parte, quando por motivo imprevisível houver inegável aumento da prestação, tornando-a desproporcional em relação ao que foi celebrado no negócio, buscando assim que seja restabelecido o equilíbrio das prestações.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Verificamos que o diploma civil dispõe de ampla possibilidade de revisão contratual, e que mudanças nas condições externas do ambiente em que o contrato se formou não podem ser ignoradas, pois fatalmente poderão interferir na execução.

Por fim e não menos importante trataremos da possibilidade de revisão contratual nas relações de consumo, eis que o Código de Defesa do Consumidor - CDC veda práticas abusivas, devendo ser preservados os direitos básicos do consumidor, dentre eles o direito à revisão contratual por fato superveniente quando verificada onerosidade excessiva, conforme redação do inciso V, art. o CDC.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Estamos diante da teoria da quebra da base objetiva do contrato, que permite a revisão contratual quando presente a onerosidade excessiva decorrente de fato superveniente.

Diferente das teorias adotadas pelo Código Civil não há exigência de que o evento superveniente seja imprevisível ou extraordinário, bastando que esteja presente a onerosidade excessiva, que é expressamente vedada pelo CDC (art. 39, inciso V).

Novamente o que se pretende é restabelecer o equilíbrio contratual, afastar a onerosidade excessiva e as cláusulas abusivas (art. 51 do CDC), especialmente nas relações de consumo que merecem ampla proteção por serem de interesse social.

A possibilidade de revisão contratual ou de resolução disponíveis tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, são mecanismos importantes que podem socorrer contratantes que se encontram em situação de extrema dificuldade para cumprir as obrigações firmadas antes da pandemia do coronavírus.

Mas é importante primar pelo princípio da boa-fé objetiva, eis que cada caso certamente será analisado pormenorizadamente pelo poder judiciário, a fim de que seja verificado se a pandemia, as políticas públicas adotadas para contenção do vírus, efetivamente geraram onerosidade excessiva para o devedor, impossibilitando o adimplemento da prestação pactuada.

Nunca é demais lembrar que o momento exige bom senso de todos, devendo ser privilegiado o diálogo, a composição amigável e a proteção dos mais vulneráveis, sem a utilização leviana dos mecanismos judiciais para afastar obrigações legítimas.

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JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de A. Código civil comentado. 11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 7ª ed., São Paulo: Ed. Método, 2017.

SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2020.

DONIZETTI, Elpídio. QUINTELLA, Felipe. Curso didático de direito civil. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 2016.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: teoria geral dos contratos. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA, Rodolfo. Novo curso de direito civil: obrigações. volume 2, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

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· Janaina Ferreira Campos Advogada especialista em direito civil e processual civil. Sócia fundadora do escritório que leva seu nome.

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3 Comentários

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Parabéns pelo artigo, bem como pela clareza do texto explicativo!! continuar lendo

Devido ao senário atual e sabendo que os órgãos públicos encontram-se também em quarentena, qual seria a medida a ser tomada por aqueles que tem contratos e financiamentos em andamento aja vista que a lei nos respalda em situações enfrentadas atualmente?? continuar lendo

Inicialmente o ideal seria entrar em contato com o credor para negociar, alguns bancos estão prorrogando a data de vencimento das prestações, locadores estão reduzindo valor do aluguel, prorrogando. Como mencionei no artigo, não sendo possível resolver amigavelmente o mais indicado é procurar um advogado para analisar a medida mais apropriada para resolver a questão.
Lembrando que as atividades essenciais não estão em quarentena. continuar lendo