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8 de Maio de 2024

Casados, erotizados, infantilizados e desprotegidos

Publicado por Renan Marins
há 6 anos


Em 15 de agosto de 2017, o Portal do Observatório do Terceiro Setor veiculou uma reportagem sobre a questão do casamento infantil trazendo diversos dados, dentre os quais a informação de que o Brasil é o 4º país do mundo no ranking desse tipo de prática em números absolutos.

A definição de “casamento infantil” é formulada por pesquisadores e ativistas da área dos direitos de crianças e adolescentes a partir do parâmetro internacional fornecido pela Convenção dos Direitos da Criança da ONU (1989), que define como criança a pessoa com menos de 18 anos [nota 1] : entende-se por “casamento infantil” qualquer união conjugal formal ou informal em que ao menos um dos cônjuges tenha menos de dezoito anos. Mas além desse conceito fixado pelo critério etário, a noção de “casamento infantil” contém outras características, presentes no imaginário coletivo e que correspondem aos dados coletados e sistematizados por algumas pesquisas [nota 2]: é mais frequente em regiões de alta vulnerabilidade socioeconômica, e prevalecem as uniões entre meninas e homens mais velhos, a denotar a assimetria de gênero e geracional formada pela sobreposição de relações de poder, que estabelecem relacionamentos potencialmente desiguais e violadores de direitos dessas meninas.

Por outro lado, outros dados apresentam questões menos visibilizadas, que desconstroem outras noções estereotipadas, talvez pensadas a partir da notícia dos rituais de casamentos infantis em regiões da África e Ásia, que envolvem uniões forçadas entre homens cinquentenários e meninas impúberes.

Para compreender alguns aspectos próprios da realidade brasileira, lanço mão do relatório da pesquisa “Ela vai no meu barco – casamento na infância e na adolescência no Brasil”, em que foram pesquisados os Estados do Pará e do Maranhão, apontados no Censo de 2010 como os mais numerosos em casamentos infantis, em cotejo com a legislação brasileira sobre o tema, e sempre pensando a partir de uma perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos como uma dimensão dos Direitos Humanos.

A legislação brasileira não contempla de forma organizada os direitos sexuais e reprodutivos, em especial quando se trata do público adolescente. Estabelecem-se limites etários para o início da vida sexual – para o Direito Penal, é somente a partir dos catorze anos que se passa a considerar válido o consentimento para a prática de quaisquer atos sexuais [nota 3] – e para o casamento, permitido a partir dos dezesseis anos (tanto para as meninas quanto para os meninos), desde que com o consentimento dos pais ou responsáveis (ou com autorização do Juiz da Infância e Juventude à falta destes), sendo que a lei autoriza antecipar a idade núbil para permitir o casamento em qualquer idade se houver gravidez [nota 4] .

O pretexto da lei é proteger os adolescentes, a partir da compreensão infantilizante e equivocada de que estes não estão aptos a exercer de forma alguma sua sexualidade. Criminaliza-se a prática de atos sexuais com pessoas com menos de 14 anos – e para a lei penal tanto faz ser um homem de 40 anos mantendo relações sexuais com uma menina de 13 anos explorada sexualmente, ou se é um casal de adolescentes com idades entre 12 e 14 anos iniciando juntos sua vida sexual: para o Código Penal, ambas as situações estão sujeitas à lei penal/infracional. Aliás, vale lembrar que foi somente a partir de 2009 que o Código Penal passou a considerar crime manter relações sexuais com pessoas de idade entre 14 e 18 anos em situação de exploração sexual [nota 5] . E, ao mesmo tempo, a legislação permite o casamento em qualquer idade se a menina estiver grávida, pois não há uma idade mínima legal para gerar filhos.

Esses são os aspectos jurídico-legais brasileiros a respeito da idade mínima para praticar atos sexuais, casar-se e ter filhos, e esse modelo legal nos traz indicações importantes sobre a vigência de um determinado modelo de moral sexual que impacta a realidade dos casamentos infantis no Brasil. Que reflexões podemos extrair disso tudo? Afinal, se o casamento de pessoas com menos de dezoito anos não é necessariamente ilegal (desde que obedecidos os limites etários e regras acima citadas), há ou não problemas em uma adolescente relacionar-se e assumir uma vida de mulher adulta casada? Vale ressaltar que, de acordo com as pessoas ouvidas na pesquisa (as próprias meninas, seus maridos, pais e familiares), o casamento muitas vezes é realizado pela vontade delas, com o consentimento (e até incentivo) de seus pais. Se todos os envolvidos têm a idade que a lei prevê para exercer um direito, não seria o caso de deixar a liberdade individual de escolha solucionar a questão?

Poderíamos estar falando do direito de dirigir veículo automotor, ou de votar. Mas, no caso, estamos falando de direitos sexuais. E aí não tem como deixar de fora o debate sobre as diferenças construídas sobre os gêneros: é válido afirmar que, social e culturalmente, homens e mulheres são igualmente tratados a respeito de suas escolhas, em especial aquelas do campo da vida sexual?

Para que a escolha sobre qualquer coisa seja livre, é necessário que se disponibilizem todas as opções existentes a quem escolhe. Se, em uma mesma situação, uma pessoa tem à sua disposição mais opções de escolha do que outra, as pessoas envolvidas não estão em igualdade de condições: uma delas terá mais poder de escolha do que a outra. O universo dessas meninas é, frequentemente, de muito poucas escolhas em termos de aspirações de vida relacionadas a estudo e trabalho, combinada com um controle da sexualidade adolescente somente aceita se dentro de um casamento, que passa a ser visto como um caminho seguro para “uma menina direita”, tanto em relação à sua subsistência quanto à possibilidade de almejar aquilo que ela imagina ser a vida de uma “mulher adulta” longe do jugo dos pais.

Ainda neste século XXI recaem sobre as mulheres julgamentos morais sobre suas escolhas sexuais diferentes daqueles que recaem sobre homens. Isto implica uma assimetria de poder neste campo. Quando a esta assimetria se sobrepõe a inevitável experiência de vida cronológica que um adulto terá em superioridade em relação a um (a) adolescente, aumentam as chances de haver um exercício de poder. Se é verdade que este modelo de relação foi considerado normal – ou seja, adequado à norma”, inclusive jurídica – por muitas gerações, em que um sem-número de casamentos foi celebrado exatamente nesses termos, é importante refletirmos o que essa “normalidade” reproduz das relações de poder.

As leis penal e civil refletem uma mentalidade que ainda persiste no sentido de que adolescentes não podem ter vida sexual salvo se dentro do casamento, negando-se sua autonomia para exercer seus direitos individuais e personalíssimos à sexualidade de forma segura, o que envolve políticas educacionais e de saúde para que isso se dê em relacionamentos e experiências saudáveis e igualitárias. Mais do que a transformação da lei, é imperioso repensar as normas sociais que ao mesmo tempo infantilizam e retiram a autonomia de adolescentes enquanto os expõem a uma erotização precoce e conduzida a partir do olhar adulto.

Notas:

[nota 1] Vale ressaltar que, na legislação brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a distinção entre crianças e adolescentes dividindo-os em dois grupos por faixa etária: de zero a doze anos incompletos, e de doze anos completos a dezoito anos incompletos.

[nota 2] No Brasil, ainda há poucas pesquisas sobre o tema. Para escrever este artigo, tomei como fonte o relatório da pesquisa “Ela vai no meu barco – casamento na infância e na adolescência no Brasil”(2015), disponível em: http://promundoglobal.org/wp-content/uploads/2015/07/SheGoesWithMeInMyBoat_ChildAdolescentMarriageBrazil_PT_web.pdf

[nota 3] Estupro de vulnerável, artigo 217-A, Código Penal.

[nota 4] Artigos 1517 e 1520 do Código Civil.

[nota 5] Artigo 218-B, § 1º, Código Penal.

Por Maíra Zapater

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23 Comentários

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A partir do momento que as relações sexuais com menores de 18 anos seja lícita (como é a partir dos 14 anos agora, o que é um absurdo), acredito ser dever do Estado reduzir também a maioridade penal, assim como não cobrar que os avós sustentem o neto, pois quem deve cuidar da criança, independente da situação são os legítimos pais, ai sim poderão praticar atos de adultos, ser responsáveis pelos seus atos.

Prazer todo mundo quer, mas na hora de cuidar do filho quer jogar no colo dos outros (do Estado, dos avós) mas não assume o B.O, brasileiro é lider em querer direitos e menos deveres, em jogar o problema e responsabilidade para o próximo. continuar lendo

Perfeito comentário!!! continuar lendo

Uma cultura em que se pode ter direitos sem deveres. Sem responsabilidade; assim é molezinha! continuar lendo

Como dizem os mais responsáveis áqueles que não o são: "Na hora do bem bom ali vc virou o zoinho, não foi ? Agora vc se vira com o que fez." continuar lendo

Mas se for muçulmano, está tudo certo! continuar lendo

Os muçulmanos logo cedo se preocupam com os dotes ($) pra garantir.
Mas as crianças perdem uma infancia melhor. continuar lendo

Não concordo com a matéria, se os adolescentes, podem ter relações sexuais, podem assumir as responsabilidades que que resultam do momento de prazer. Concordo com o colega David que citou a redução da maioridade penal, acrescento também que não é permitido ter CNH, entre outras proibições que no meu ponto de vista, só tenta colocar ordem e eu acho salutar. Pra mim, todas as proibições aos menores deveriam ter o limite minimo de 18 anos de idade. Se for para tirar alguns limites, que tirem todos e acompanhem a vida bárbara que viveremos, bem pior que esta agora. Concordo também que se uma menina gravida tem o direito de casar, ela tem o dever de sustentar com seu esposo, a vida do seu filho.
Não consigo imaginar que alguém de bem, corrobore para a menoridade sexual, 14 anos pra ter relações sexuais é um absurdo! Vão estudar, brincar, se preparar para ter responsabilidade futura. continuar lendo

Aldo, por favor leia meu comentário a respeito desse post copiado e colado aqui. continuar lendo

Parabéns pela matéria! Ela nos faz refletir a respeito desse tema tão importante e também perceber o qto muitos de nós estamos despreparados para opinar a respeito! Alguns comentários trás a sensação de q um adolescente torna-se adulto pelo simples fato de completar 18 anos, desconsiderando todo o processo de aprendizado e amadurecimento necessário para um mínimo de propriedade consciente da vida adulta! Não temos todas as respostas e precisamos parar de limitar a vida das pessoas com julgamentos baseados somente nas escolhas q tivemos oportunidade de fazer! O ECA como legislação específica deveria preocupar-se com os detalhes do desenvolvimento da criança e adolescente, e as legislações q tratam do tema diferenciar um estupro da relação entre dois adolescentes q estão descobrindo juntos sua sexualidade! Mas pra isso todos os outros direitos, principalmente a educação, desses adolescentes precisariam ser respeitados, só assim teriam noção dos riscos e responsabilidades de uma vida sexual ativa. continuar lendo

Por gentileza veja meu comentário. continuar lendo