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6 de Maio de 2024

STF Fev23 - Aditamento Irregular da Denúncia - Nulidade

ano passado

Inteiro Teor

HABEAS CORPUS 219.207 PA RANÁ

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

Decisão: Trata-se de habeas corpus impetrado por XXXXXXXXX, em favor de XXXXXXXXXXXX, contra decisão monocrática proferida pelo vice-Presidente do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RHC 168.424/PR.

Colhe-se dos autos que o paciente foi denunciado como incurso nas sanções do art. 89, caput e parágrafo único, da Lei 8.666/93 (fato 01), art. 299, caput (fato 02), e art. 312, caput (fato 03), do Código Penal, em concurso material (art. 69 do Código Penal).

A denúncia foi recebida em 17 de junho de 2021. Em seguida, os réus foram citados pessoalmente e apresentaram resposta à acusação.

No dia 12 de março de 2022, o Juízo da 1a Vara Criminal de Umuarama, ao sanear os autos, exortou o Ministério Público a reavaliar a qualificação jurídica atribuída ao primeiro fato narrado na denúncia (fato 01), sinalizando que "a terceira figura típica prevista no art. 89, caput, da Lei 8.666/93 (conduta omissiva), justamente a atribuída aos denunciados XXXXXXXXXXX, na inicial, sofreu abolitio criminis com o advento da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos". (eDOC 07)

Afirma a defesa que, a partir dessa provocação, o Ministério Público aditou a peça acusatória, com alteração substancial da narrativa fática contida na denúncia originária, para imputar ao paciente a conduta de "dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei".

Informa que o aditamento foi recebido pela magistrada no dia 19.04.2022, momento em que se determinou a citação dos acusados, assim como a intimação de seus procuradores, para eventual complementação das respostas à acusação outrora apresentadas.

Pondera, no entanto, que o aditamento da denúncia é ilegal, tendo em vista que, "na forma como foi feito, trata-se de nítido propósito de corrigir o trabalho equivocado do Parquet e ‘salvar’ a pretensão acusatória, atingindo frontalmente a paridade de armas e o devido processo legal". Nesse sentido, defendem que, dada a redação do art. 384 do Código de Processo Penal, "o aditamento que culmina em mudança dos fatos denunciados só é possível quando se descobre - após a instrução - circunstância nova e desconhecida dos acusadores" , diversamente do que teria o ocorrido no presente caso.

Impetrado habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, denegou-se a ordem (eDOC 9). Em seguida, a defesa interpôs o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 168.424/PR. O Superior Tribunal de Justiça, em regime de plantão judiciário, indeferiu a liminar (eDOC 11).

Esta é a razão da presente impetração.

Nesta oportunidade, a defesa sustenta que, ao oferecer a petição de aditamento, o Ministério Público não se limitou a alterar a capitulação jurídica dos fatos imputados ao acusado, mas, a rigor, promoveu alteração substancial dos fatos criminosos narrados na denúncia.

Nesse sentido, requer, liminarmente, seja sobrestado o andamento da ação penal. No mérito, pugna pela concessão da ordem para que seja anulado o recebimento do aditamento da denúncia e, por conseguinte, determinar o trancamento parcial do processo penal 0006862- 97.2021.8.16.0173, quanto ao primeiro fato imputado.

A liminar foi por mim deferida em 29.8.2022.

Valdecir Miester requereu seu ingresso no feito. (eDOC 22)

Informações prestadas em 5.9.2022. (eDOC 25)

A PGR opina pela denegação da ordem. (eDOC 28)

É o relatório.

Decido.

Inicialmente, destaco que, no momento da concessão da medida liminar, o habeas corpus impugnava decisão denegatória de liminar no STJ, a atrair a súmula 691 desta Corte, por mim superada.

Neste momento processual, já houve pronunciamento de mérito,

mas com manutenção de óbice formal, porquanto a decisão atacada continua monocrática e o agravo regimental está pendente de julgamento.

É que, ausente pronunciamento colegiado naquele Tribunal, não houve lá esgotamento da instância. Sem o esgotamento da instância, a análise por esta Corte resulta em sua supressão. Cito precedentes:

"Agravo regimental no habeas corpus. 2. Habeas corpus que impugna decisão monocrática de mérito proferida por Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância. Ausência de pronunciamento colegiado. Necessidade de interposição de agravo regimental. 3. Superação do óbice possível apenas nos casos de flagrante ilegalidade. Não ocorrência no caso concreto. 4. Agravo não provido". (AgR no HC 184.614, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 16.6.2020)

"Agravo regimental no habeas corpus. 2. Habeas corpus impetrado contra decisão monocrática proferida por Ministro de Tribunal Superior. Supressão de instância. Não há manifesta ilegalidade no caso concreto a autorizar a concessão da ordem. 3. Abrandamento de regime e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Impossibilidade. Reincidência inespecífica. Irrelevância ao caso concreto. 4. Fixação de regime mais gravoso e negativa de substituição da pena corporal devidamente fundamentadas. 5 Agravo improvido". (AgR no HC 180.489, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 14.4.2020)

É bem verdade que, em casos de manifesta e grave ilegalidade, tais entendimentos podem ser flexibilizados, inclusive por meio da concessão da ordem de ofício, o que é o caso dos autos.

Prevalece na doutrina que, dada a necessidade de se atingir um mínimo de congruência no processo penal, o acusado deve ser julgado, processado e, ao afinal, condenado ou absolvido de acordo com os fatos narrados pelo órgão acusatório. Trata-se da assim chamada regra da correlação entre a acusação e a sentença , segundo a qual são nulas as sentenças condenatórias que não guardem rígida correlação com a denúncia oferecida pelo Ministério Público.

A esse respeito, transcrevo as lições de Gustavo Henrique Badaró:

A regra da correlação entre a acusação e a sentença significa que deve haver identidade entre o objeto da imputação e o da sentença . Ou seja, o acusado deve ser julgado, sendo condenado ou absolvido, pelos fatos que constam da denúncia ou queixa.

O acusado não pode ser julgado por fato diverso. São nulas as sentenças extra petita (por exemplo, acusação por estelionato e condenação por apropriação indébita) ou ultra petita (por exemplo, denúncia por lesão corporal leve e condenação por lesão corporal grave).

(...)

Embora seja comum a assertiva de que a regra da correlação entre acusação e sentença tem por escopo preservar a ampla defesa, entendemos que seu objetivo é outro. Não se trata de regra que visa a tutelar apenas a posição do acusado no processo. Também as posições jurídicas do Ministério Público e do querelante são protegidas por tal regra. Em última análise, a regra da correlação entre acusação e sentença visa a preservar o contraditório, e não apenas a ampla defesa (Processo Penal, 5a edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2017, p. 552).

Ocorre que, pelas mais diversas razões, é possível que, ao final da demanda, o magistrado se convença quanto à inadequação da definição jurídica atribuída aos fatos pelo órgão acusador (emendatio libelli), hipótese em que poderá corrigir a capitulação para o tipo penal mais apropriado. Também é possível que, no curso da instrução processual , sejam identificadas provas de elementares ou circunstâncias não contidas na peça acusatória, caso em que o Ministério Público poderá aditar a denúncia (mutatio libelli).

Quanto à última possibilidade, dispõe o 384 do Código de Processo

Penal, encerrada a instrução probatória , se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação , o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias".

Muito embora esse dispositivo conceda uma autorização excepcional para alteração dos contornos iniciais da peça acusatória, é certo que, em homenagem ao princípio constitucional do contraditório, sua utilização deve ocorrer com parcimônia, evitando condutas processuais que possam dificultar o exercício do direito de defesa. Da mesma forma, há um certo consenso quanto à impossibilidade de invocação do dispositivo como forma de suprir equívocos eventualmente cometidos na peça acusatória, sobretudo em se tratando de falhas técnicas cometidas por desídia, engano ou descuido do representante do Ministério Público.

Postas essas premissas, passo à análise da suposta ofensa ao devido processo legal, materializada, no caso, pelo aditamento promovido por provocação da magistrada , fora das hipóteses previstas no art. 384 do Código de Processo Penal.

Inicialmente, transcrevo a decisão da magistrada que, constatando que o Ministério Público ofereceu denúncia com suporte em dispositivo legal revogado pela Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), convidou as partes a debaterem a capitulação jurídica dos fatos imputados ao paciente:

"5. Qualificação Jurídica - Fato 01 - Art. 89, caput e parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 (Inobservância das Formalidades pertinentes a Dispensa de Licitação):

Chamo ao debate as partes sobre questão jurídica imprescindível para a continuidade da presente Ação Penal.

Pela análise dos autos, denota-se que a inicial acusatória atribui aos réus X, X, X E X a prática do crime previsto no art. 89, caput e parágrafo único, da Lei de Licitações (...).

O artigo 89, da Lei n. 8.666/1993 era assim previsto: Art.

89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público)".

Nota-se que mencionado dispositivo tem por intento resguardar que as contratações diretas pela Administração Pública ocorram somente nos estritos casos previstos em lei. Era punida a conduta quando ao autorizar a dispensa ou inexigibilidade de licitação, descumpria algum preceito normativo.

No caso, o Ministério Público indica que a inobservância de formalidade legal se deu pelo direcionamento dessa Dispensa de Licitação n. 13/2020 à empresa de X. Esse ponto é imprescindível de destaque para a qualificação jurídica e subsunção típica, pois direcionar um procedimento, perdendo a impessoalidade, tão buscada pelo ordenamento jurídico, amolda-se ao antigo artigo 90, da Lei n. 8.666/93, que assim previa:

Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

A divergência sobre a qualificação jurídica dos fatos poderia prosseguir até a sentença, pois se sabe que a ampla defesa e o contraditório recaem sobre essa premissa fática e toda a massa fática a ser construída na instrução processual.

Ocorre que temos um segundo ponto de argumento para análise: a revogação dos artigos 89 e 90, da Lei n. 8.666/93. Mantida a qualificação jurídica na forma como o Ministério

Público o fez na inicial acusatória - art. 89, caput, da Lei n. 8.666/93- estaríamos a tratar de um crime de ação múltipla, cujo terceiro núcleo típico não mais encontra guarida em nosso sistema penal, diante do advento da Lei n. 14.133/2021.

Na forma como atribuído na denúncia, os Réus teriam incorrido na figura típica de" deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade ".

O art. 193, inciso I, da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) revogou expressamente, na data da sua publicação, os arts. 89 a 108 da Lei 8.666/93. Ao mesmo tempo, mencionada Lei, criou os tipos penais do art. 337- E a 337-O, do Código Penal (Crimes em licitações e contratos administrativos).

Entre as duas primeiras figuras do art. 89 e o art. 337-E, houve o que se denomina de continuidade normativo-típica, mantendo-se a incriminação das condutas. Contudo, a terceira figura, justamente a atribuída na inicial, sofreu abolitio criminis, não mais subsistindo a pretensão acusatória sobre tanto, o que culminaria na extinção da punibilidade, questão de ordem pública.

Outrossim, o art. 90, da Lei n. 8.666/1993, encontrou também continuidade normativa, no crime de frustração do caráter competitivo de licitação, atualmente previsto no art. 337- F, do Código Penal.

Com efeito, efetivamente, a congruência se relativiza frente aos fundamentos normativos da demanda, vez que por dever o Juiz os aplica corretamente, interpretando o direito, ainda que de forma diversa da realizada pelas partes, por força do damihi factum, dabo tibi ius ou do iura novit cura.

Porém, o conhecimento prévio sobre os institutos jurídicos e dispositivos lhe inerentes que orientarão a decisão judicial garante a ausência de surpresas e possibilita o debate, ao fim e ao cabo para possibilitar influir na solução da causa.

Por isso, acrescenta Kochem (2021, p.154) que essa roupagem do direito ao contraditório reforça uma teoria da jurisdição que tenha aspecto reconstrutivo não apenas dos atos, mas principalmente do Direito, a partir do papel argumentativo das partes e da decisão com relação ao direito aplicável. Ao arremate, sustenta o autor que é somente a partir da norma reconstruída que se define, então, quais são os fatos relevantes para a causa.

Dessa forma, para que a decisão não recaia sob os vícios de nulidade, imprescindível que a decisão se atenha a necessidade de contraditório, em cujo diálogo se insere também o magistrado, como expressamente passou a determinar nosso Código de Processo Civil, no art. 10 e 9º.

Portanto, reputo imprescindível a manifestação das partes sobre a qualificação jurídica, pois até o momento nem as Defesas, nem o Ministério Público levantaram essas questões. Não se quer imiscuir no mérito, mas essas questões podem nortear toda a instrução processual e curso da Ação Penal, não sendo eficiente ou de boa-fé aguardar-se a sentença para que seja solvida a divergência".

Ocorre que, intimado quanto ao teor desta decisão, o representante do Ministério Público não se limitou a reavaliar a qualificação jurídica dos fatos imputados ao paciente. Como se observa dos documentos do processo, naquela oportunidade os Promotores de Justiça pugnaram pelo adiamento da audiência de instrução e julgamento designada para os dias 29.03, 30.03 e 06.04, ao mesmo tempo que promoveram o aditamento da denúncia, com alterações substanciais no conteúdo da pretensão acusatória originária.

Uma cuidadosa comparação entre a denúncia original e a petição de aditamento permite concluir que houve, de fato, profundas mudanças no substrato fático da peça acusatória. Afinal, enquanto o documento original aludia a uma mera omissão no que diz respeito ao atendimento das formalidades legais inerentes à dispensa de licitação (eDOC 2), a petição subsequente passou a imputar uma conduta comissiva, qual seja, a dispensa de licitação fora das hipóteses previstas em lei (eDOC 06).

Esse entendimento é corroborado pela decisão proferida no dia 19.04.2022 pela Juíza de Direito Substituta da 1a Vara Criminal de

Umuarama (eDOC 07), que, ao admitir as mudanças pretendidas pelo órgão de acusação, assim afirmou:

Veja-se que, na forma como atribuído originariamente na denúncia (mov. 1.1), os réus teriam incorrido na figura típica de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade", que não é mais considerada criminosa, de acordo com a legislação atual.

Entre as duas primeiras figuras do art. 89 e o art. 337-E, houve o que se denomina de continuidade normativo-típica, mantendo-se a incriminação das condutas. Contudo, repita-se, a terceira figura, justamente a atribuída originariamente na inicial, sofreu abolitio criminis.

Por esta razão, após as considerações tecidas por este Juízo no item 5 da decisão proferida ao mov. 527.1, é que o Ministério Público promoveu o aditamento da denúncia, para o fim de alterar a descrição fática especificamente do Fato 01 , de modo que, apesar de manter a qualificação jurídica outrora indicada (art. 89, caput e parágrafo único, da Lei 8.666/93), passou a atribuir aos denunciados a conduta comissiva prevista no referido dispositivo legal (dispensar licitação fora das hipóteses previstas em lei), a qual continua sendo considerada infração penal, ante a incidência do princípio da continuidade normativa ( CP, art. 337-E). (eDOC 7, p. 5)

Também são bastante esclarecedoras as considerações trazidas no voto proferido pela eminente Desembargadora Priscilla Placha Sá, no julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Ao divergir do voto apresentado pelo Desembargador Relator, a magistrada assim se manifestou:

Com a vênia devida ao posicionamento adotado no voto originário, a partir do cotejo entre a denúncia originária e sua versão aditada, entendo que o Parquet não se restringiu à readequação típica da conduta delitiva descrita no "Fato 01", mas apresentou uma nova narrativa fática ao aditar a denúncia.

Em outros termos, parece-me que o caso dos autos não se trata de mera emendatio libelli (art. 383, CPP), mas de uma hipótese de mutatio libelli (art. 384, CPP), que produz efeitos significativos no processo.

Registra-se que o próprio órgão ministerial, ao acolher as considerações do d. Juízo a quo, indicou a necessidade de alteração fática e consequente adoção do procedimento previsto para a mutatio libelli, aduzindo que: "em razão das ponderadas colocações tecidas no item 5 da decisão do evento 527.1, haverá necessidade de aditamento da denúncia, com eventual readequação fática-jurídica dos fatos, do que redundará a necessidade de reabertura do contraditório ( CPP, art. 384, § 2º), a inviabilizar o início da instrução nas datas aprazadas" (mov. 1.5).

(...)

Conforme se extrai do transcrito acima, o Ministério Público, originariamente, imputou ao paciente a conduta omissiva de não observar as normas que regulamentam o procedimento de contratação direta (art. 89, parte final, Lei n.º 8.666/93). Ou seja, segundo esta narrativa, a hipótese até poderia ser de dispensa de licitação, mas os acusados teriam deixado de observar as formalidades exigíveis para tanto. Por outro lado, após o aditamento, os denunciados passaram a ser acusados de realizar contratação direta em cujas circunstâncias seria incabível a dispensa de licitação, pois não haveria cenário de emergência e /ou situação inesperada que impedisse a realização de oportuno procedimento licitatório de contratação.

Agindo desse modo, o Parquet alterou a descrição das condutas imputadas no primeiro fato descrito na denúncia para que se amoldassem ao art. 337-E do CP (introduzido pela Lei n.º 14.133/2021), na parte em que constitui continuidade normativo-típica do crime previsto no art. 89 da Lei n.º 8.666/93 (revogado).

Como se viu, o aditamento promovido pelos Promotores de Justiça decorreu de iniciativa da magistrada, que, ao identificar a ocorrência de abolitio criminis em relação à conduta imputada no primeiro capítulo da denúncia (fato 01), exortou o órgão de acusação a reavaliar parcialmente o substrato fático da causa, com o claro intuito de corrigir equívocos cometidos na propositura da demanda. Parece-me que, dessa forma, tanto a magistrada quanto o órgão acusador desbordaram dos limites estabelecidos pelo art. 384 do Código de Processo Penal, com implementação de grave afronta aos princípios constitucionais da paridade de armas e do próprio sistema acusatório.

Se o Ministério Público oferta denúncia por um fato atípico, não cabe ao juiz advertir seu representante sobre a revogação do tipo penal e, na essência, pedir que avalie a oferta de um aditamento da denúncia por um tipo penal ainda vigente.

Essa postura importa mudança abrupta no objeto da ação penal, com evidentes prejuízos para o exercício da ampla defesa. Cuida-se de situação incompatível com o princípio da não surpresa , um dos pilares do processo penal democrático. É o que adverte Alexandre Morais da Rosa:

A acusação é composta pela descrição da conduta e da imputação (o tipo penal incriminado), porque não faz sentido, no processo penal democrático, que o juiz "conserte" ou seja o "curador" da acusação, salvo se pressupormos o acusador como incompetente ou incapaz (historicamente ate poderia se justificar a postura, já que se nomeava MP"ad hoc", sequer formado em Direito, situação incompatível com o desenho constitucional atual") (...) Do contrário, o efeito surpresa manipula os limites do Caso penal (passam a ser incontroláveis) Na hipótese de admissão, a emendatio ou a mutatio devem ser de iniciativa exclusiva da acusação, nos limites do devido processo legal. Levar a sério a acusação, guardando congruência, sem surpresas, nem manipulações retóricas, é o pressuposto da análise sobre a compatibilidade democrática dos arts. 383 e 384 do CPP (Guia do Processo Penal Estratégico , 1a edição, Editora Emais, Florianópolis, 2021,. 697).

Sobre as consequências da violação da regra da correlação entre acusação e sentença, Guilherme de Souza Nucci esclarece que" é caso de nulidade absoluta , pois ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, consequentemente, o devido processo legal "( Código de Processo Penal Comentado, 11a edição, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2012, p. 730).

Pelo exposto, concedo a ordem para declarar nulo o aditamento à denúncia ofertado em 24.3.2022 (eDOC 5), nos autos da ação penal nº 0006862-97.2021.8.16.0173, determinando o prosseguimento do processo penal à luz da denúncia originalmente oferecida.

Após o trânsito em julgado, comunique-se ao Juízo da 1a Vara Criminal da Comarca de Umuarama/PR.

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(STF - HC: 219207 PR, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 24/02/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-035 DIVULG 27/02/2023 PUBLIC 28/02/2023)

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