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15 de Junho de 2024
  • 2º Grau
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Detalhes

Processo

Órgão Julgador

3ª TURMA CRIMINAL

Publicação

Julgamento

Relator

WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR

Documentos anexos

Inteiro TeorTJ-DF__20180710019530_0a11d.pdf
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Inteiro Teor

Poder Judiciário da União Fls. _____

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS




Órgão

:

3ª TURMA CRIMINAL

Classe

:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO

N. Processo

:

20180710019530RSE
(XXXXX-95.2018.8.07.0007)

Recorrente(s)

:

BLENDO WELLINGTON DOS SANTOS
OLIVEIRA E OUTROS

Recorrido(s)

:

MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO
FEDERAL E TERRITÓRIOS

Relator

:

Desembargador WALDIR LEÔNCIO LOPES
JÚNIOR

Acórdão N.

:

1184804

E M E N T A

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. FEMINICÍDIO TENTADO. VÍTIMA MULHER TRANSGÊNERO. MENOSPREZO OU DISCRIMINAÇÃO À CONDIÇÃO DE MULHER.

MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PRESENTES. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. IMPROCEDENTE. TESES A SEREM APRECIADAS PELOS JURADOS. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA. IMPROCEDENTE. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.

1. A decisão de pronúncia dispensa a certeza jurídica necessária para uma condenação, bastando o convencimento do Juiz acerca da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria, prevalecendo, nessa fase, o in dubio pro societate.

2. No âmbito do Tribunal do Júri, as possibilidades de desclassificação, absolvição sumária e impronúncia são limitadas, sendo admitidas apenas quando a prova for inequívoca e convincente, no sentido de demonstrar que o réu não praticou crime doloso contra a vida, pois mínima que seja a hesitação, impõe-se a pronúncia, para que a questão seja

Código de Verificação :2019ACOI43H6S4PY9ZUXYQ3KRQ5

GABINETE DO DESEMBARGADOR WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR 1

Fls. _____

Recurso em Sentido Estrito XXXXXRSE

submetida ao júri, ex vi do art. , inciso XXXVIII, da Constituição Federal c/c art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal.

3. Somente as qualificadoras manifestamente improcedentes e sem qualquer apoio na prova dos autos podem ser afastadas. 4. Recursos conhecidos e desprovidos.

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Recurso em Sentido Estrito XXXXXRSE

A C Ó R D Ã O

Acordam os Senhores Desembargadores da 3ª TURMA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR - Relator, SEBASTIÃO COELHO - 1º Vogal, DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI - 2º Vogal, sob a presidência da Senhora Desembargadora NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, em proferir a seguinte decisão: COM ESSAS CONSIDERAÇÕES, CONHEÇO DOS RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO E A ELES NEGO PROVIMENTO. UNÂNIME. , de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.

Brasilia (DF), 4 de Julho de 2019.

Documento Assinado Eletronicamente

WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR

Relator

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Recurso em Sentido Estrito XXXXXRSE

R E L A T Ó R I O

Cuida-se de recursos em sentido estrito interpostos por BLENDO WELLINGTON DOS SANTOS OLIVEIRA e JOHNATAN VINÍCIUS SANTANA DE BRITO contra a decisão proferida pelo MM. Juiz de Direito do Tribunal do Júri de Taguatinga/DF que, nos autos da Ação Penal n. 2018.07.1.001953-0, pronunciouos ao julgamento perante o Tribunal do Júri pela suposta prática dos crimes previstos no art. 121, § 2º, inciso VI c/c § 2ºA, inciso II, do CP, na modalidade tentada (art. 14, II, CP) e no art. 244-B, da Lei n. 8069/90, em concurso material (art. 69, CP) (fls. 318-323).

Nas razões recursais apresentadas por BLENDO (fls. 345-350), a defesa requer o decote da qualificadora referente ao feminicídio, uma vez que, biologicamente, a vítima não é do sexo feminino.

Argumenta que a qualificadora disposta no inciso VI, § 2º, art. 121 c/c inciso II, § 2ºA, do CP, é de natureza objetiva e exige que o sujeito passivo do homicídio seja mulher, no sentido estrito da designação biológica, além de as agressões decorrerem da sua condição feminina, associada ao vínculo pretérito entre vítima e agressor.

Sustenta ser hipótese de analogia in malam partem a aplicação da mencionada qualificadora para crimes praticados contra transgêneros.

Nas razões recursais do acusado JOHNATAN (fls. 353-356), a defesa pretende a desclassificação para o crime de lesão corporal leve, ao sustentar a ausência do dolo de matar do réu, uma vez que as agressões foram cessadas voluntariamente e apenas atingiram braços e pernas da vítima, sem causar-lhe perigo de vida.

O Ministério Público apresentou as contrarrazões de fls. 358-361v, pugnando pelo desprovimento dos apelos. Argumenta serem as provas dos autos suficientes para demonstrar o animus necandi dos réus e que “o crime foi praticado contra mulher por razões da condição de sexo feminino, em menosprezo e discriminação à condição de mulher” (fl. 360v).

Em juízo de retratação, o ilustre Magistrado a quo manteve a decisão proferida (fls. 363-363v).

A Procuradoria de Justiça oficiou pelo conhecimento e pelo desprovimento dos recursos (fls. 371-372).

É o relatório.

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V O T O S

O Senhor Desembargador WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR - Relator

Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos.

O MPDFT ofereceu denúncia contra BLENDO WELLINGTON DOS SANTOS OLIVEIRA e JOHNATAN VINÍCIUS SANTANA DE BRITO, devidamente qualificados nos autos, dando-os como incursos nas sanções descritas no art. 121, § 2º, inciso VI c/c § 2 ºA, inciso II, c/c art. 14, inciso II, todos do Código Penal e no art. 244-B do ECA, ambos na forma do art. 69 do CP.

Narrou a denúncia (fls. 2-2D), recebida em 25/4/2018 (fls.124-125v), devidamente aditada para incluir a causa de diminuição geral de pena referente à forma tentada do crime contra a vida imputado aos réus (fl. 2E e fl. 151v), o seguinte:

(...) DO CRIME DE HOMICÍDIO

Na madrugada do dia 1º de abril de 2018, por volta de 04:00h, no interior e junto à porta de saída da lanchonete Subway, que fica na Av. Hélio Prates, Setor QI 15, nesta cidade de Taguatinga, os denunciados , juntamente com o adolescente G.H.M ., todos previamente combinados e munidos de inequívoca intenção de matar, livres para agir de modo diverso e cônscios de seus atos, mediante chute, paulada, pedrada e cadeirada agrediram a pessoa de Jéssica Oliveira da Silva , causando-lhe lesões que serão demonstradas em laudo a ser juntado.

De fato, os denunciados uniram forças com o adolescente G.H.M . e concorreram, cada um na sua medida, nas agressões objetivando alcançar a morte da vítima Jéssica , conforme a seguir narrado.

Segundo apurado, a vítima fazia ponto de prostituição nas proximidades, oportunidade em que os denunciados e o adolescente, por ódio à condição de transexual de Jéssica e gritando que "era para virar homem", foram atrás dela e passaram a agredi-la covardemente no interior da lanchonete, onde ela teria tentado se homiziar.

Não bastasse, a vítima tentou sair daquele local onde se encontrava encurralada, contudo, já fora da lanchonete, continuou a ser espancada pelo trio.

O pretendido resultado morte não adveio em decorrência de circunstâncias

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alheias às vontades dos denunciados e do adolescente, uma vez que não conseguiram atingi-la de forma letal.

Por outro lado, o crime foi praticado por razões da condição do sexo feminino , em menosprezo e discriminação à condição de mulher.

DO CRIME DE CORRUPÇÃO DE MENORES

Não é só. Ainda nesta cidade de Taguatinga, naquele dia, hora e local, os denunciados corromperam pessoa menor de 18 anos - G.H.M.¹, nascido a 24.03.1978 - com ele praticando os fatos narrados acima.

De fato, os denunciados , para a empreitada criminosa, agrediram a vitima juntamente com o inimputável G.H.M . e dele fizeram uso para o plano homicida, inclusive, tendo o menor participado ativamente das agressões. (...)

De acordo com a qualificação do adolescente referida pela acusação (fl. 36 do IP), na verdade, o adolescente GULHERME HENRIQUE MACHADO nasceu em 6/12/2000 e contava com 17 (dezessete) anos, na data do crime.

Após regular instrução, os réus foram pronunciados como incursos nas penas do art. 121, § 2º, inciso VI c/c § 2ºA, inciso II, do CP, na modalidade tentada (art. 14, II, CP) e no art. 244-B, da Lei 8069/90, em concurso material (art. 69, CP).

É o breve resumo dos fatos.

1. DA DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE LESÃO CORPORAL

A Defesa de JOHNATAN pugna pela desclassificação do crime de homicídio qualificado para o crime de lesão corporal leve, sob o argumento de o recorrente não possuir animus necandi.

Razão não lhe assiste.

De início, antes de analisar as provas acostadas aos autos e a matéria suscitada pela defesa, faz-se necessário salientar que o princípio in dubio pro reo não se aplica à primeira fase do Tribunal do Júri. Assim, se houver prova da materialidade e dos indícios de autoria, cabe a pronúncia dos acusados.

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Nesse sentido, confira-se julgado de minha relatoria:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO POR MOTIVO FÚTIL. PEDIDO DE IMPRONÚNCIA FORMULADO PELO PARQUET EM MEMORIAIS. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. AUSÊNCIA DE VINCULAÇÃO JUDICIAL AO PLEITO DO ÓRGÃO ACUSATÓRIO. ART. 385 DO CPP. PRESENÇA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE MOTIVO FÚTIL. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.

1. A decisão de pronúncia dispensa a certeza jurídica necessária para uma condenação, bastando o convencimento do Juiz acerca da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, prevalecendo, nessa fase, o in dubio pro societate . 2. Somente a qualificadora manifestamente improcedente e sem qualquer apoio na prova dos autos pode ser afastada.

3. Existindo indícios de que a motivação do homicídio foi fútil, a qualificadora deve ser incluída na decisão de pronúncia, cabendo aos Jurados examinar e decidir sobre a autoria delitiva e as circunstâncias em que o crime foi praticado, em razão de sua competência constitucional.

4. Recursos conhecidos e desprovidos.

(Acórdão n. XXXXX, 20120410003327RSE, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 27/04/2017, Publicado no DJE: 05/05/2017. Pág.: 273/288) - grifos nossos.

A materialidade dos fatos descritos na denúncia está comprovada pelos seguintes documentos: portaria de instauração do IP (fls. 2G-3), Comunicação de Ocorrência Policial n. 4.126/2018-6 e n. 4.126/2018-5 (fls. 4-12v), autos de reconhecimento de pessoa (fls. 15-18), Auto de Apresentação e Apreensão n. 23/2018 (fls. 45-46) e n. 24/2018 (fl. 49), Relatório Policial n. 118/2018-DECRIN (fls. 50-86), relatório policial final (fls. 114-116), requerimento de prisão preventiva (fls. 121-122), Laudo de Exame de Corpo de Delito n. 12602/18 (fls. 174-175), Laudo de Perícia Criminal n. 14285/2018 (fls. 227-229), bem como pelas declarações nas

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fases inquisitorial e judicial.

Em relação à autoria, há indícios suficientes para formar o juízo de admissibilidade.

A vítima JÉSSICA OLIVEIRA DA SILVA, ao ser ouvida, na Delegacia de Polícia (fls. 13-14), narrou como se deram as agressões físicas pelos acusados e o contexto em que foram desferidas:

(...) na madrugada do dia 1º de abril, estava na avenida Hélio Prates, onde normalmente faz programas, quando já estava retornando para casa e ao passar caminhando nas proximidades da lanchonete da subway foi abordada por um indivíduo em uma bicicleta, aparentando ser menor, pele clara, que lhe pediu a bolsa , tendo a Declarante dito que não iria passar a bolsa, pegando a sua chave que estava dentro da sua bolsa, tendo o indivíduo dito que iria matar a Declarante, passando a xingá-la de desgraçada, viado, travesti e dizendo que a Declarante não poderia ficar ali ; QUE o indivíduo passou a chamar outros indivíduos, retornando cerca de cinco ou seis pessoas, dentre eles uma mulher , percebendo que alguns deles a Declarante já conhecia de vista das redondezas, inclusive, já tendo recusado fazer programa com um deles; QUE entrou na lanchonete, apavorada e com muito medo; QUE a Declarante foi logo pedindo para os funcionários chamarem a polícia; QUE os indivíduos entraram na lanchonete logo atrás da Declarante e passaram a agredi-la, fisicamente, mandando que a Declarante saísse da lanchonete; QUE a Declarante foi agredida no interior da lanchonete e em dado momento os agressores saem e retornam, agredindo a Declarante com uma cadeira, forçando a Declarante a sair da lanchonete; QUE ao sair da lanchonete a Declarante foi agredida mais ainda ; QUE os indivíduos chegaram a pegar sua bolsa, mas a devolveram; QUE passadas as agressões um dos agressores ainda disse para a Declarante virar homem ; QUE acha que a mulher que estava com o grupo de agressores faz programas naquela área; QUE esclarece que da sua parte não houve nenhuma provocação para que aquelas pessoas a agredissem; QUE após as agressões a Declarante foi até a 12ªDP onde registrou boletim de ocorrência e foi encaminhada ao IML; QUE esclarece que nunca usou faca ou qualquer instrumento semelhante em sua bolsa;

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QUE acredita que a motivação das agressões físicas seja por ódio da sua condição de transexual (...).

Em juízo (mídia audiovisual de fl. 263), JÉSSICA informou que, inicialmente, suspeitou que o adolescente a abordaria para roubar sua bolsa. Na sequência, cerca de 4 (quatro) a 5 (cinco) pessoas vieram na direção da vítima, o que fez com que se abrigasse no interior da lanchonete Subway, onde as agressões físicas foram iniciadas.

Consoante degravado na decisão de pronúncia (fls. 320v-321), a ofendida assim respondeu aos questionamentos do MPDFT:

Extrai-se de sua oitiva (2'33-2'51) (5'45-6'42):

(...) - Promotor de Justiça: - Naquele dia você chegou a tirar faca pra algum deles?

- Testemunha: - Jamais, eu não ando armada.

- Promotor de Justiça: - Sim. Algum deles quis fazer algum programa com você?

- Testemunha: - Não.

- Promotor de Justiça: - Não. Tinha uma moça no meio deles?

- Testemunha: - Tinha.

- Promotor de Justiça: - Essa moça por algum acaso saiu pra fazer xixi e foi abordada por você?

- Testemunha: - Não.

(...)

- Promotor de Justiça: - O que que o maior fez com você, você se lembra? - Testemunha: - Os maiores

- Promotor de Justiça: - Qual foi a conduta do maior? - Testemunha: O maior que eu falo aquele aquele senhor, aquele senhor mais branco ali? - Testemunha: - O de menor eu sei que não tá aqui.

- Promotor de Justiça: - Sim.

- Testemunha: - Eu sei que um tá até já respondendo até por outras coisas... ahn esse aqui ele tava com um pau e ele falou que ia me matar e ele assumiu que.

- Promotor de Justiça: - Essa, essa resposta é muito importante. Ele falou

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que ia te matar?

- Testemunha: - Falou que ia me matar e quando foi , eu gravei até os dentes dele, ele assumia, falou que queria me matar e tava com um pedaço de pau na mão .

- Promotor de Justiça: - Sim.

- Testemunha: - E ele assumiu que queria me matar, e ele tentou atingir a minha cabeça, assim como os outros

- Promotor de Justiça: - Ele tentou bater na sua cabeça?

- Testemunha: - Tentou .

- Promotor de Justiça: - Tá e o outro? O que que o outro usou algum objeto? - Testemunha: - Esse aqui eu não, era tanta pancada... eu não lembro. Eu lembro que no final ele falou várias coisas, que eu tenho que virar, querer me dar lição de moral de que eu tenho que é, você tem que usar uma roupa de homem, você tem que ser homem e você tem que, como se eu tivesse, como se fosse a coisa mais suprema do planeta terra. (...)

JÉSSICA disse ter ficado evidenciado que as agressões eram motivadas por questões de gênero, uma vez que recebia xingamentos de "viado" e "travesti" , enquanto alguns dos agressores diziam que a mataria.

A testemunha TÂNIA, atendente da lanchonete Subway, ratificando o declarado extrajudicialmente (fls. 111-112), em juízo (mídia audiovisual de fl. 263), disse que os autores, a todo tempo, xingavam a vítima de "desgraçada" e "peste", falando: "vamos matar ela logo".

Conforme narrado na sentença (fls. 321-322), aos questionamentos, TÂNIA respondeu o seguinte:

(...)- Promotor de Justiça: - E nesse dia do fato, a senhora tava lá?

- Testemunha: - Uhum.

- Promotor de Justiça: - A senhora viu a Jéssica entrando correndo?

- Testemunha: - Vi.

- Promotor de Justiça: - A Jéssica trazia na sua mão algum objeto faca, revólver, canhão?

- Testemunha: - Não.

- Promotor de Justiça: - Nada?

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- Testemunha: - Não.

- Promotor de Justiça: - Ela não tinha nada na mão?

- Testemunha: - Não.

- Promotor de Justiça: - Nada.

- Testemunha: - Em nenhum momento.

- Promotor de Justiça: - E logo depois eles entraram?

- Testemunha: - Entrou, duma vez.

- Promotor de Justiça: - Quando a Jéssica entrou qual era o estado de ânimo dela, ela tava tranquila?

- Testemunha: - Ela tava chorando desesperada e pedindo socorro.

- Promotor de Justiça: - Pedindo socorro. E ela falou porque que ela precisava de socorro?

- Testemunha: - Ela falou ai, falou assim ah porque eu to sendo agredida, por favor chama a polícia né, aí ficou chamando, eu até liguei pra polícia ...

- Promotor de Justiça: - A senhora ligou?

- Testemunha: - Uhum.

- Promotor de Justiça: - E eles viram a senhora ligando pra polícia?

- Testemunha: - Não.

(...)

- Promotor de Justiça: - E eles agrediram muito?

- Testemunha: - Muito. Bastante, com a cadeira de ferro .

- Promotor de Justiça: - Cadeira de ferro. Em algum momento a Jéssica tirou alguma faca?

- Testemunha: - Não.

- Promotor de Justiça: - Essa faca foi encontrada com a Jéssica?

- Testemunha: - Não. Não vi.

- Promotor de Justiça: - Tá certo. E ela chegou a sair da lanchonete em determinado momento?

- Testemunha: - Assim na hora que eles entraram agredindo ela, eles bateram nela lá dentro e ela saiu de volta, só que como lá é transparente o vidro eu vi eles batendo nela lá na rua, no meio da rua . - Promotor de Justiça: - Bateram também?

- Testemunha: - Uhum.

(...) - grifos no original.

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A Delegada Chefe da DECRIN, GLÁUCIA CRISTINA DA SILVA, em juízo (mídia audiovisual de fl. 263), declarou recordar-se de que os réus falavam que a vítima havia mostrado uma faca e que eles diziam para JÉSSICA "virar homem". Durante a investigação policial, disse ter sido apontado que os acusados não aceitavam o fato de a vítima utilizar vestuário feminino.

GLÁUCIA relatou que as agressões apenas cessaram depois da intervenção de um terceiro e que a tipificação do crime se deveu aos instrumentos utilizados para provocar lesões: pedra e cadeira.

O Delegado de Polícia responsável pela oitiva extrajudicial dos recorrentes, ALEXANDRE NICOLAU LINHARES, em juízo (mídia audiovisual de fl. 263), relatou o consignado na decisão de pronúncia (fl. 321v):

(...) que não foi encontrada nenhuma faca com a vítima. Relatou que a vítima já era conhecida na região onde ocorreu o fato por fazer programas e que os autores tinham conhecimento disso. Acrescentou que nesse crime havia a questão da discriminação bem evidenciada e ressaltou que os acusados deixaram bem claro que a raiva deles estava voltada diretamente para essa condição de gênero . Aduziu que a vítima reconheceu na delegacia os acusados pela filmagem. Asseverou que para a prática do crime foram usados segmentos de metal, uma cadeira da própria lanchonete e uma pedra de concreto . (grifos no original).

O agente de polícia, GUTEMBERG BEZERRA DE CORREIA, também foi ouvido pela autoridade judicial (mídia audiovisual de fl. 263), disse não ter sido localizada faca com a ofendida, além de prestar as seguintes declarações descritas na decisão de pronúncia:

(...) que as imagens mostram que as agressões continuaram do lado de fora da lanchonete. Narrou que o acusado Johnatan estava ao lado de fora com uma barra de ferro e que partiu para cima da vítima e que o

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acusado Blendo saiu logo em seguida. Acrescentou que foi identificada uma testemunha chamada Felipe que ajudou a vítima e a levou para fazer a ocorrência. Essa testemunha teria relatado que chegou de madrugada ao Subway, viu as agressões ao lado de fora e gritou para que os acusados parassem as agressões, momento em que a vítima conseguiu se desvencilhar dos acusados e fugir de novo para o Subway. Asseverou que os autores só pararam de agredir porque o Felipe interveio. Relatou, ainda, que a testemunha Flávio, frentista do posto, disse que os acusados falavam para a vítima que ela tinha que "virar homem" e que as agressões decorreram pela condição de gênero da vítima .

Os acusados reconheceram a agressão física praticada contra JÉSSICA, negando, contudo, que tinham a intenção de matá-la ou que os fatos descritos na denúncia tivessem motivação de gênero.

Conforme descrito na decisão de pronúncia (fl. 319v), o acusado BLENDO (mídia audiovisual de fl. 263), assim declarou:

(...) - MM Juiz: - E essa acusação que tá sendo feita aqui de ter agredido Jéssica Oliveira, isso é verdade?

- Acusado: - Isso é verdade, porque eu eu tava presente.

- MM Juiz: - O senhor tava presente?

- Acusado: - Tava.

- MM Juiz: - O senhor chegou a agredir ela?

- Acusado: - Eu cheguei dar dois chutes nela.

- MM Juiz:- O senhor deu chutes nela?

- Acusado: - ...Dei, dei.

- MM Juiz: - Porque que o senhor deu dois chutes nela?

- Acusado: Porque a princípio falaram que ela tava com uma faca, quando ela se movimentou dentro do Subway já, foi minha reação foi essa. Eu dei dois chutes pra ela sair de perto de mim.

- MM Juiz:- Porque ela tava perto do senhor?

- Acusado: - Isso. E, quando ela se movimentou e pegou na bolsa, eu pensei que ela ia arrastar essa faca. (...)

O acusado prosseguiu afirmando que havia saído de uma festa e que a

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moça que estava com ele, de nome Andressa, saiu para urinar atrás de um trailer e que quando retornou disse que a vítima havia mostrado uma faca para ela. Relatou que a Andressa correu para perto deles e que eles foram atrás da vítima, que já estava dentro do Subway. Acrescentou que perguntou para a vítima onde estava a faca, a vítima não respondeu e se movimentou com a bolsa e que, então, ele deu os dois chutes. Aduziu que o acusado Johnatan deu umas pauladas na vítima. Asseverou que depois que saíram do Subway também agrediram a vítima.

O réu JOHNATAN, respondendo aos questionamentos do MM. Juiz de 1ª Instância (mídia audiovisual de fl. 263), apresentou as seguintes informações transcritas à fls. 320-320v da decisão de pronúncia, in verbis:

(...) - MM Juiz: - Essa acusação dessa agressão contra a Jéssica é verdade?

- Acusado: - É verdade sim senhor, mas eu em nenhum momento tive intenção de matá-la.

- MM Juiz: - Não?

- Acusado: - Não.

- MM Juiz: - O senhor viu ela dizendo que que os senhores diziam que queria matá-la? Viu ela dizendo isso?

- Acusado: - Em nenhum momento eu disse isso senhor.

- MM Juiz:- O senhor agrediu ela?

- Acusado: - Agredi sim senhor.

- MM Juiz: - Com o que?

- Acusado: Foi uma paulada no braço.

- MM Juiz:- Uma paulada?

- Acusado: - Foi sim senhor, aí quando eu estava saindo da lanchonete que o Guilherme começou a agredir ela dentro da lanchonete, eu já estava saindo quando ela veio ao meu rumo, aí eu me assustei e

- MM Juiz: - A Jéssica?

- Acusado: - Foi.

- MM Juiz:- Pra que?

- Acusado: - Ela veio, ela veio no meu rumo pra sair da lanchonete, porque

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o, o Guilherme tava agredindo ela, aí ela veio, aí ela veio saindo da lanchonete e eu desferi outro golpe nela no braço também. (...)

O acusado prosseguiu afirmando que não tinha intenção de matar a vítima e que eles foram atrás dela dentro do Subway porque o adolescente G.H.M havia dito que tinha uma mulher com uma faca ameaçando a Andressa. Disse que o acusado Blendo e o adolescente foram tentar conversar com a vítima e ela teria corrido para dentro da lanchonete. Relatou que foi acolher a Andressa e que achou um pedaço de alumínio, pegou e foi para a lanchonete. Aduziu que quando entrou na lanchonete o acusado Blendo já havia agredido ela. Asseverou que perguntou para a vítima da faca e ela não respondeu nada e que agrediu a vítima porque quis defender seus amigos.

O laudo de exame de corpo de delito n. 12602/18 apresentou resposta negativa à existência de perigo de vida. Por outro lado, atestou haver ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima, provocadas por instrumento contundente e que causaram as lesões descritas à fl. 175, inverbis:

Equimose avermelhada de 01 cm em região de clavícula esquerda; 03 escoriações puntiformes em região proximal de polegar direito, região dorsal; Equimose esverdeada em região anterior de antebraço direito de 02 cm, terço proximal; escoriação de 02 cm em região anterolateral de antebraço direito, terço médio; Escoriação de 05 cm em região antero lateral de ombro direito; Escoriação avermelhada em região posterior de ombro direito; Escoriação, avermelhada, de 04 cm em região lateral de coxa direita, terço médio; 02 feridas contusas de 0,5 cm em região dorsal de pé esquerdo.

Diante do exposto, o acervo probatório fornece indícios suficientes da autoria delitiva imputada a BLENDO WELLINGTON DOS SANTOS OLIVEIRA e a JOHNATAN VINÍCIUS SANTANA DE BRITO, tendo em vista a informação de que os acusados, em represália à vítima, motivados pelo fato de JÉSSICA ser transgênero e assumir identidade e vestuários femininos, pretendiam matá-la.

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Desse modo, havendo indícios de autoria contra os réus em crime doloso contra a vida, fundamental preservar a competência do órgão constitucionalmente competente para a apreciação dos fatos e o seu julgamento.

Os elementos de prova produzidos são suficientes para amparar o juízo de pronúncia ora combatido, não sendo o caso de desclassificação para o crime de lesão corporal leve.

A desclassificação para crime diverso do doloso contra a vida somente seria possível caso fosse constatada, de plano e sem quaisquer digressões ou conjecturas , a ausência da intenção de matar ou ao menos da assunção do risco de matar. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci leciona:

O juiz somente desclassificará a infração penal, cuja denúncia foi recebida como delito doloso contra a vida, em caso de cristalina certeza quanto à ocorrência de crime diverso daqueles previstos no art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal (homicídio doloso, simples ou qualificado; induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; infanticídio ou aborto). Outra solução não pode haver, sob pena de se ferir dois princípios constitucionais: a soberania dos veredictos e a competência do júri para apreciar os delitos dolosos contra a vida . (Manual de Processo Penal e Execução Penal, 3ª edição, Editora Revista dos Tribunais, p. 695). (grifou-se)

Na espécie, de pronto, não é possível descartar o animus necandi, pois há relatos de que, durante as agressões físicas, os acusados verbalizavam a intenção de matar JÉSSICA e utilizaram instrumentos hábeis para assim fazê-lo .

A propósito, o laudo de perícia criminal n. 14285/2018 concluiu que o fragmento de concreto arremessado contra a vítima é "eficiente para produzir lesões contusas" (fls. 227-229).

No presente caso, os elementos que compõem o acervo probatório não afastam, de modo inequívoco, a vontade homicida dos recorrentes, motivo pelo qual a tese deve ser submetida ao juízo natural da causa - Conselho de Sentença .

Ressalto, ainda, que eventuais discrepâncias existentes na prova oral colhida ao longo da tramitação do feito devem ser examinadas pelo Conselho de

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Sentença, pois vedada, nesta fase processual, a análise aprofundada do acervo probatório.

Colho precedentes deste e. TJDFT:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. MATERIALIDADE COMPROVADA. INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. DESCLASSIFICAÇÃO. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA. INVIABILIDADE. DECISÃO MANTIDA.

(...) 2. Para que o crime de homicídio tentado seja desclassificado para outro da competência do juiz singular, na fase de pronúncia, exige-se comprovação inequívoca da alegada ausência de animus necandi. Inexistindo prova cabal nesse sentido, não se pode subtrair do juízo natural a análise e julgamento do fato .

(...) 4. Recursos conhecidos e desprovidos. (Acórdão n. XXXXX, 20110510059046RSE, Relator: JESUINO RISSATO 3ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 27/10/2016, Publicado no DJE: 08/11/2016. Pág.: 89/94) - grifo no original.

PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO SIMPLES TENTADO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. MATERIALIDADE DEVIDAMENTE PROVADA. TENTATIVA BRANCA OU INCRUENTA. PROVA TESTEMUNHAL RELEVANTE. INDÍCIOS DE AUTORIA. IN DUBIO PRO SOCIETATE. TRIBUNAL DO JÚRI. COMPETÊNCIA. Na hipótese de a vítima de homicídio tentado não ter sido atingida por disparos de arma de fogo, classificando-se os fatos como tentativa branca ou incruenta, a materialidade delitiva, a fim de dar suporte à sentença de pronúncia, pode ser demonstrada pelos depoimentos da vítima e das testemunhas. Precedentes. Nos termos do artigo 413, § 1º, do Código de Processo Penal, comprovada a materialidade dos fatos e convencido o magistrado da existência de indícios suficientes de autoria, deve pronunciar o acusado e encaminhar o caso a julgamento pelo Tribunal

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do Júri , sendo defeso nessa fase discutir acerca da credibilidade da prova oral, por referir-se ao mérito da causa, que deve ser dirimido pelo Tribunal Popular, pois frente a eventuais dúvidas na fase de formação da culpa, decide-se em prol da sociedade, tendo em vista o princípio do in dubio pro societate . Recurso conhecido e improvido.

(Acórdão n. XXXXX, 20120310161373RSE, Relator: ESDRAS NEVES, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 05/05/2016, Publicado no DJE: 12/05/2016. Pág.: 147) - grifo no original.

Assim, não merece prosperar a tese defensiva de desclassificação , mostrando-se correta a decisão do Juízo a quo, uma vez que, como visto, há prova da materialidade e indícios suficientes da autoria dos recorrentes e, por outro lado, não há provas cabais da ausência do animus necandi dos réus, o que é bastante para a confirmação da pronúncia e remessa a julgamento pelo Tribunal do Júri.

Cumpre enfatizar que a decisão de pronúncia não encerra juízo condenatório , mas simples admissibilidade da acusação, fundada na probabilidade da ocorrência de delito doloso contra a vida, sob a regência do princípio in dubio pro societate, competindo ao Conselho de Sentença o exame aprofundado das provas coligidas aos autos.

Dessa forma, ainda que fossem insuficientes as provas coligidas antes da prolação da decisão de pronúncia, tal circunstância não constitui causa hábil para anulá-la, uma vez que, nos crimes de competência do Tribunal do Júri, a fase instrutória não se exaure com a decisão de pronúncia, sendo possível a dilação probatória até o julgamento do recorrente pelo Conselho de Sentença.

Nesse sentido, colaciono os julgados deste e. Tribunal de Justiça:

Como é cediço, para a decisão de pronúncia, bastantes a certeza a respeito da existência do crime e a presença de indícios suficientes da autoria imputada ao acusado (art. 413 do Código de Processo Penal). Relembre-se que a decisão de pronúncia constitui juízo fundado de suspeita, significando que a acusação é admissível, ao contrário do juízo de certeza, que se exige para a condenação . Para a pronúncia, prevalece a regra in dubio pro societate, não se aplicando o provérbio in

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dubio pro reo. Eventuais dúvidas quanto à prova são resolvidas em favor da sociedade, vale dizer, cabe ao Tribunal do Júri decidir a respeito.

Qualificadoras que encontram amparo, em tese, no conjunto probatório.

Recurso desprovido. (Acórdão n. XXXXX, 20150310092735RSE, Relator: MARIO MACHADO, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 19/05/2016, Publicado no DJE: 27/05/2016, Pág.: 234) - grifos no original.

2. DA EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA RELATIVA AO FEMINICÍDIO

A Defesa de BLENDO pugna pela exclusão da qualificadora relativa ao feminicídio, por ausência da circunstância objetiva de ser vítima mulher, uma vez que JÉSSICA foi designada homem, ao nascer.

De início, ressalto que, no juízo de pronúncia, as qualificadoras somente podem ser excluídas quando totalmente dissociadas do contexto probatório, ou seja, se comprovada a sua inexistência de plano, com provas contundentes e coesas, uma vez que a análise dos motivos e dos meios utilizados na prática do crime é de competência do Tribunal do Júri.

Dessa maneira, adianto reputar acertado o salientado pelo nobre Juiz de 1ª Instância, ao decidir pronunciar os réus pela prática do feminicídio tentado, uma vez que não há falar em improcedência explícita da qualificadora, in verbis (fl. 322):

A qualificadora de ter sido o crime cometido por razões da condição de sexo feminino não é manifestamente improcedente, uma vez que os depoimentos acima transcritos revelam indícios de que os acusados teriam tentado matar a vítima por discriminação a sua condição do sexo feminino .

Por tal motivo, a qualificadora de ter sido o crime cometido por razões da condição de sexo feminino deve ser submetida à apreciação do egrégio

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Conselho de Sentença, sendo que, para tanto, basta a existência de indícios suficiente de sua ocorrência, o que se verifica no presente caso. (grifos no original)

O crime de feminicídio foi incluído no Código Penal pela Lei 13.104, de 2015, responsável, dentre outras, por criar nova forma qualificada do homicídio cometido "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino".

O § 2º-A do art. 121 do CP esclarece as hipóteses em que se considera a especial razão qualificada do tipo:

§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve :

I - violência doméstica e familiar ;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher .

Ao comentar a inovação legislativa, Guilherme de Souza Nucci leciona que a opção normativa da Lei n. 13.104, de 2015 está fundamentada na maior proteção da mulher, normalmente inferiorizada por questões físicas, culturais e econômicas, em evidente continuidade da proteção conferida pela Lei Maria da Penha, apesar de não se restringir ao âmbito doméstico e familiar:

Imagine-se que o agente mate a mulher, porque é misógino. O motivo pode ser considerado torpe (ódio às mulheres) e ainda é aplicável a qualificadora de eliminar a vida da mulher, porque ela é do sexo frágil, física e culturalmente frágil. Aliás, esse foi um dos focos de debate da Lei 11.340/2006: seria ela inconstitucional, pois confere maior proteção à mulher que ao homem? Chegou-se, majoritariamente, à conclusão que não, pois se está tutelando desigualmente os desiguais 1 .

1 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 17 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. pág. 770.

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No caso, há elementos indicativos de que o homicídio tentado teria sido praticado por repúdio ao gênero da ofendida.

Colhe-se dos autos que a vítima JÉSSICA OLIVEIRA DA SILVA, apesar de ostentar o sexo biológico masculino, adota a identidade de gênero feminina, com a correspondente alteração do registro civil (fl. 87), sendo, portanto, uma mulher transgênero .

A abrangência da conceituação histórico-social do gênero é superior a do sexo biológico, pois trata de características psicológicas e comportamentais do indivíduo, a depender de seu fenótipo, se masculino ou feminino.

Na perspectiva de gênero, essas características são produto de uma situação histórico-cultural e política; as diferenças são produto de uma construção social. Portanto, não existe naturalmente o gênero masculino e feminino. Ou seja, a definição de gênero reclama o padrão histórico e cultural de opressão machista e de objetar a mulher . [2]

A respeito da questão de gênero tratada, mutatis mutandis, este Tribunal de Justiça 2 , já admitiu proteção extensiva da Lei Maria da Penha à transexual feminina, ainda que não submetida à cirurgia de transgenitalização e sem a alteração definitiva do registro civil, com fundamento nos seguintes argumentos:

(...) O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa . A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher.

2 Acórdão n. XXXXX, 20171610076127RSE, Relator: GEORGE LOPES 1ª TURMA CRIMINAL, Data de Julgamento: 05/04/2018, Publicado no DJE: 20/04/2018. Pág.: 119/125

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3 Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese .

A propósito, a Comissão de Comissão e Justiça do Senado Federal, em 22 de maio de 2019, aprovou, em caráter terminativo, o Projeto de Lei do Senado 191, de 2017 3 , que inclui as mulheres transgêneras e as transexuais sob a proteção da Lei Maria da Penha.

De acordo com a ementa da proposição legislativa, a alteração da Lei 11.340/2006 visa "assegurar à mulher as oportunidades e facilidades para viver sem violência, independentemente da sua identidade de gênero ."

O autor do projeto de lei, Senador Jorge Viana, ao justificar a iniciativa legislativa, destacou que:

Embora o foco inicial tenha sido a proteção da mulher, é cediço que o ordenamento jurídico deve acompanhar as transformações sociais. Nesse contexto, entendemos que a Lei Maria da Penha deve ter o seu alcance ampliado, de modo a proteger não apenas as mulheres nascidas com o sexo feminino, mas também as pessoas que se identificam como sendo do gênero feminino, como é o caso de transexuais e transgêneros .

Estamos falando, portanto, de conferir a proteção especial da Lei Maria da Penha a pessoas que se enxergam, se comportam e vivem como mulheres, e que, da mesma forma que as que nascem com o sexo feminino, sofrem violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral por parte de

3 Projeto de Lei do Senado 191, de 2017. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/

atividade/materias/-/materia/129598. Acesso em 23/5/2019, às 12:00.

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parentes, companheiros ou conviventes. Com esse propósito, a presente proposição acrescenta ao art. da Lei Maria da Penha a expressão "identidade de gênero", a fim de permitir a sua aplicação a transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres .(grifos no original).

Este Relator não desconhece a polêmica que envolve a questão. Também é sabido que há posição doutrinária no sentido de admitir a figura do feminicídio apenas contra vítimas do sexo biológico e registral feminino, bem como que, para parte da corrente doutrinária menos conservadora, somente as transexuais femininas submetidas à cirurgia de redesignação sexual e com alteração no registro civil poderiam ser vítimas da mencionada forma qualificada do homicídio.

Por outro lado, não se pode deixar de considerar a situação de dupla vulnerabilidade a que as pessoas transgêneros femininas, grupo ao qual pertence a ofendida, são expostas "por um lado, em virtude da discriminação existente em relação ao gênero feminino, e de outro, pelo preconceito de parte da sociedade ao buscarem o reconhecimento de sua identidade de gênero" 4 .

A questão é complexa e a jurisprudência, sobre a figura do feminicídio, ainda está em construção, notadamente quando se trata de crime cometido por razões de característica do sexo feminino, envolvendo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, fora do contexto da violência doméstica e familiar.

Para os Tribunais pátrios, a amplitude que se deve dar ao sujeito passivo do tipo penal do feminicídio é tema ainda mais recente, revelando o ineditismo da matéria.

Na espécie, a inclusão da qualificadora do feminicídio decorreu do fato de o crime ter sido praticado (fl. 2B), "por ódio à condição de transexual de Jéssica" , uma vez que, enquanto os acusados agrediam fisicamente a vítima, também diziam a ela que "era para virar homem".

Assim, malgrado os fatos descritos na denúncia não se tratarem de violência praticada no âmbito doméstico e familiar, a imputação do feminicídio se

4 TANNURI, Cláudia Aoun; HUDLER, Daniel Jacomeli. A aplicação da Lei Maria da Penha como forma de proteção às transexuais femininas: uma questão de gênero e dignidade. In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões. v. 12 (nov./dez.). Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 96.

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deveu ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher trans da ofendida (inciso II do § 2º-A do art. 121 do CP), extraídos da conduta delitiva preconceituosa atribuída aos réus.

Diante disso, os indícios da presença da qualificadora estão, em tese, fundamentados no acervo probatório.

Com base na argumentação exposta, no caso específico, há indícios da caracterização da qualificadora, não sendo o momento processual adequado para sua exclusão, pois não está demonstrada a evidente improcedência. Certo é que somente as qualificadoras manifestamente improcedentes e sem qualquer apoio na prova dos autos podem ser afastadas.

Acerca do tema, a lição de Guilherme de Souza Nucci (in Código de processo penal comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 801):

(...) As circunstâncias legais, vinculadas ao tipo penal incriminador, denominadas qualificadoras e causas de aumento são componentes da tipicidade derivada . Logo, constituem a materialidade do delito, envolvendo o fato básico e todas as suas circunstâncias. Quando presentes, devem ser mantidas na pronúncia para a devida apreciação pelo Tribunal do Júri . Entretanto, se as provas não a sustentarem, devem ser afastadas pelo magistrado. Na dúvida, o juiz mantém as referidas circunstâncias legais para a apreciação dos jurados ; possuindo certeza de que não há amparo algum para ampará-las, torna-se fundamental o seu afastamento. (...) (g.n)

Nesse sentido, colaciono julgado deste e. Tribunal de Justiça:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. REJEITADA. MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA. QUALIFICADORAS.(...)

Como é cediço, para a decisão de pronúncia, bastantes a certeza a respeito da existência do crime e a presença de indícios suficientes da autoria imputada ao acusado (art. 413 do Código de Processo Penal). Relembre-se

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que a decisão de pronúncia constitui juízo fundado de suspeita, significando que a acusação é admissível, ao contrário do juízo de certeza, que se exige para a condenação. Para a pronúncia, prevalece a regra in dubio pro societate, não se aplicando o provérbio in dubio pro reo. Eventuais dúvidas quanto à prova são resolvidas em favor da sociedade, vale dizer, cabe ao Tribunal do Júri decidir a respeito.

Qualificadoras que encontram amparo, em tese, no conjunto probatório .

Recurso desprovido. (Acórdão n. XXXXX, 20150310092735RSE, Relator: MARIO MACHADO, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 19/05/2016, Publicado no DJE: 27/05/2016, Pág.: 234) (grifo nosso)

Desse modo, somente ao Conselho de Sentença competirá decidir se os recorrentes cometeram o crime de feminicídio tentado, pela prática de pretender matar mulher, por razões da condição do sexo feminino, consistentes no menosprezo ou discriminação à condição de mulher transgênero da vítima.

O interesse da sociedade prepondera, cabendo ao Júri decidir sobre a presença da qualificadora do ato praticado, com profundidade de mérito pelos jurados no momento processual adequado.

Mantenho a qualificadora, nos termos da pronúncia.

Diante do exposto, presentes a materialidade e os indícios de autoria, compete ao Conselho de Sentença a solução da matéria, motivo pelo qual julgo improcedente os pleitos defensivos.

Com essas considerações, conheço dos recursos em sentido estrito e a eles NEGO PROVIMENTO .

É como voto.

O Senhor Desembargador SEBASTIÃO COELHO - Vogal

Com o relator

O Senhor Desembargador DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI - Vogal

Com o relator

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D E C I S Ã O

Com essas considerações, conheço dos recursos em sentido estrito

e a eles NEGO PROVIMENTO. Unânime.

Código de Verificação :2019ACOI43H6S4PY9ZUXYQ3KRQ5

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