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2 de Maio de 2024

Tabacarias e "Hookahs" estão excluídas da lei antifumo?

Não estão. Mas por que as autoridades públicas nada fazem contra esses espaços?

Publicado por Teamajormar Almeida
há 4 anos


1. Introdução

A questão da proibição ou regulação de consumo de substâncias pelo Estado é matéria deveras controversa.

Quem se define como "liberal", certamente irá dizer que o Estado proibir o consumo de qualquer tipo de substância é um ataque à liberdade do indivíduo. Já quem se vê como "estatista", defenderá que o Estado não só pode, como deve sim, interferir na vontade dos indivíduos para dizer o que é bom ou não.

Das chamadas drogas lícitas (bebidas alcoólicas, produtos derivado do fumo, remédios farmacêuticos) às drogas ilícitas (entorpecentes em geral), o tema da proibição total ou regulação do uso é uma discussão interminável, dada às inúmeras pesquisas e argumentos favoráveis ou contrários à tese que se queira defender.

Contudo, dentro dessa rinha ideológica, algo que se tornou quase unanimidade é a certeza de que fumar faz mal à saúde do fumante. Não se trata, portanto, de se discutir se faz "mais mal do que bem": ingerir ou inalar produtos derivados do fumo é prejudicial à saúde, não havendo um patamar seguro para consumo.

Diante dessa quase certeza científica é que o Brasil adotou, de forma pioneira (quando comparado a outras nações), legislações restritivas ao consumo, venda e publicidade de produtos oriundos do fumo.

2. A primeira versão da lei antifumo e sua exceção

A primeira legislação de âmbito nacional, visando a regulamentação do uso, produção, comércio e publicidade de produtos considerados prejudiciais à saúde, remonta ao ano de 1996: é a lei federal 9.294/96, que "dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal".

Na primeira versão dessa lei, o seu artigo 2º previa o seguinte:

Art. 2º É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

No trecho em negrito (acima), destacamos a exceção que a lei previa, na época, à proibição total de fumar em recintos coletivos. Foi nesse contexto que surgiram os chamados "fumódromos" e "tabacarias" - locais exclusivo para fumantes.

Desde então, começaram a surgir inúmeras legislações locais - estaduais ou municipais - ainda mais restritivas que a Lei Federal, tentando regular que tipo de ambientes se enquadravam na lacônica definição legal de "área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente".

Uma dessas leis acabaram sendo alvo de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, que ao julgar a ADI: 4306, assim manifestou-se:

  • R E L A T Ó R I O:
  • O Senhor Ministro Edson Fachin (Relator): Trata-se de ação direta interposta pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) a fim de que esta Corte declare a inconstitucionalidade da Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 5.517, de 17 de agosto de 2009, que proíbe o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco.
  • A norma tem o seguinte teor: “
  • Art. Esta lei estabelece normas de proteção à saúde e de responsabilidade por dano ao consumidor, nos termos do artigo 24, incisos V, VIII e XII, da Constituição Federal, para criação de ambientes de uso coletivo livres de produtos fumígenos.
  • Art. 2º Fica proibido no território do Estado do Rio de Janeiro, em ambientes de uso coletivo, públicos ou privados, o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco.
  • § 1º Aplica-se o disposto no caput deste artigo aos recintos de uso coletivo, total ou parcialmente fechados em qualquer dos seus lados por parede, divisória, teto ou telhado, ainda que provisórios, onde haja permanência ou circulação de pessoas.
  • § 2º Para os fins desta lei, a expressão “recintos de uso coletivo” compreende, dentre outros, os ambientes de trabalho, de estudo, de cultura, de culto religioso, de lazer, de esporte ou de entretenimento, áreas comuns de condomínios, casas de espetáculos, teatros, cinemas, bares, lanchonetes, boates, restaurantes, praças de alimentação, hotéis, pousadas, centros comerciais, bancos e similares, supermercados, açougues, padarias, farmácias, drogarias, repartições públicas, instituições de saúde, escolas, museus, bibliotecas, espaços de exposições, veículos públicos ou privados de transporte coletivo, inclusive veículos sobre trilhos, embarcações e aeronaves, quando em território fluminense, viaturas oficiais de qualquer espécie e táxis.
  • § 3º Nos locais previstos nos parágrafos 1º e 2º deste artigo, deverá ser afixado aviso da proibição, em pontos de ampla visibilidade, com indicação de telefone e endereço dos órgãos estaduais responsáveis pela vigilância sanitária e pela defesa do consumidor, bem como com a penalidade cabível em caso de descumprimento da presente lei.
  • Art. 3º Os proprietários ou responsáveis pelos estabelecimentos e veículos de transporte coletivo, mencionados no art. 2º e seus parágrafos, deverão fiscalizá-los e protegê-los, para que nos seus interiores não seja praticada infração ao disposto nesta lei.
  • Parágrafo único. Verificada inobservância à proibição de uso de produtos fumígenos por parte dos consumidores ou usuários, caberá, ao proprietário ou responsável pelo estabelecimento ou pelos veículos de transporte coletivo, adverti-los sobre a proibição nela contida, bem como sobre a obrigatoriedade, caso persista na conduta coibida, de imediata retirada do local, se necessário mediante o auxílio de força policial.
  • Art. 4º No caso de descumprimento ao disposto nessa lei, o proprietário ou responsáveis pelo estabelecimento ou pelo meio de transporte coletivo em que ocorrer a infração ficarão sujeitos à pena de multa, que deverá ser fixada em quantia entre 1.548,63 (mil, quinhentos e quarenta e oito unidades e sessenta e três centésimos de UFIRs) e 15.486,27 (quinze mil, quatrocentos e oitenta e seis unidades e vinte e sete centésimos de UFIRs) UFIRs-RJ, sem prejuízo das sanções previstas na legislação sanitária.
  • § 1º Na fixação do valor da multa, deverá ser levada em consideração, concomitantemente:
  • I - grau de relevância;
  • II - a capacidade econômica do infrator;
  • III - extensão do prejuízo causado à saúde pública.
  • § 2º No caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
  • § 3º Aplicada a multa de que trata este artigo, terá o infrator o prazo de 30 (trinta) dias para formular impugnação, observada a ampla defesa e o contraditório.
  • § 4º A impugnação será dirigida à autoridade imediatamente superior, que sobre ela decidirá no prazo de 05 (cinco) dias, ressalvada a necessidade de diligências complementares para instrução do processo administrativo, com possibilidade de recurso para o Secretário de Estado de Saúde e Defesa Civil no caso de indeferimento.
  • Art. 5º Qualquer pessoa poderá relatar, ao órgão de vigilância sanitária ou de defesa do consumidor da respectiva área de atuação, fato que tenha presenciado em desacordo com o disposto nesta lei.
  • § 1º O relato de que trata o caput deste artigo conterá, concomitantemente:
  • I - a exposição do fato e suas circunstâncias;
  • II -. a declaração, sob as penas da lei, de que o relato corresponde à verdade;
  • III - a identificação do autor, com nome, prenome, número da cédula de identidade, seu endereço e assinatura.
  • § 2º A critério do interessado, o relato poderá ser apresentado por meio eletrônico, no sítio de rede mundial de computadores – internet - dos órgãos referidos no caput deste artigo.
  • Art. 6º Esta lei não se aplica:
  • I - aos cultos religiosos em que produtos fumígenos façam parte do ritual;
  • II - às vias públicas e aos espaços ao ar livre;
  • III - às residências;
  • IV - aos quartos ou suítes de hotéis, pousadas e afins;
  • V - às tabacarias;
  • VI - às produções teatrais;
  • VII - aos locais de filmagens cinematográficas e televisivas.
  • § 1º Para fins dessa lei, entende-se por tabacaria o estabelecimento que, segundo seu contrato social, seja destinado especificamente ao consumo no próprio local de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, e que tenham mais de 50% (cinquenta por cento) de sua receita advinda da venda desses produtos.
  • § 2º As tabacarias deverão anunciar, nas suas entradas e no seu interior, que naquele local há utilização de produto fumígeno.
  • § 3º Nos locais indicados no inciso V deste artigo deverão ser adotadas condições de isolamento, ventilação ou exaustão do ar que impeçam a contaminação de ambientes protegidos por esta lei.
  • Art. 7º As penalidades decorrentes de infrações às disposições desta lei serão impostas, nos respectivos âmbitos de atribuições, pelos órgãos estaduais ou municipais de vigilância sanitária ou de defesa do consumidor.
  • Parágrafo único. O início da aplicação das penalidades será precedido de ampla campanha educativa, realizada pelo Governo do Estado nos meios de comunicação, como jornais, revistas, rádio e televisão, nas escolas e universidade públicas e privadas, com a distribuição de panfletos educativos nos locais explicitados no artigo 2º e seus parágrafos, para esclarecimento sobre os deveres, proibições e sanções impostos por esta lei, além da nocividade do fumo à saúde.
  • Art. 8º Caberá ao Estado capacitar, monitorar e avaliar a implantação do Programa de Controle de Tabagismo nos Municípios.
  • Art. Esta lei entra em vigor no prazo de 90 (noventa) dias após a data de sua publicação.”
  • A requerente alega que a lei impugnada, “ao invés de suplementar, contrariou a lei federal, proibindo totalmente o consumo de produtos fumígenos em ambientes coletivos públicos ou privados de seu território” (eDOC 0, p. 8), razão pela qual haveria ofensa formal ao disposto no art. 24 da CRFB.
  • Aponta que a União já teria disciplinado a matéria por meio da Lei n. 9.294/96, regulamentada, por sua vez, pelo Decreto n. 2.018/99. A norma federal, segundo aduz a requerente, teria previsto locais destinados para os fumantes, os quais, em seu entender, não poderiam ter sido suprimidos pela lei estadual.
  • Sustenta, ainda, ofensa à liberdade individual, que seria demasiadamente afetada, porquanto “a proteção à saúde do indivíduo não pode se tornar uma justificativa para a interferência completa do Estado em sua esfera privada, quando se trate da opção pela utilização de produto lícito ou realização de atividades permitidas pelo ordenamento constitucional e legal” (eDOC 0, p. 13).
  • Defende, também, que a norma impugnada viola a livre iniciativa. Aduz, nessa dimensão, que a proibição total do consumo configura “intromissão indevida do poder público no direito que a livre iniciativa possui, numa economia de mercado, de comercializar plenamente um produto lícito que gera emprego, renda e paga tributos, traduzindo-se ainda numa ingerência desproporcional no funcionamento de estabelecimentos comerciais onde parte da clientela é fumante e deseja exercer o seu direito de consumir cigarros” (eDOC 0, p. 15).
  • Alega que o art. 3º do diploma impugnado acaba por delegar o poder de polícia do estado para o empresário, o que não poderia ser admitido. Adverte, porém, que “o poder de polícia, tratando-se de atividade revestida de potestade estatal, só pode ser exercido por pessoas jurídicas de direito público” (eDOC 0, p. 17).
  • Finalmente, entende também violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade.
  • Requereu, em sede de cautelar, a suspensão da normas e, no mérito, a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 1º ao 5º, 6º (por arrastamento) e 7º ao 8º da Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 5.517/2009.
  • O e. Min. Ricardo Lewandowski aplicou o rito do art. 12 da Lei 9.868/99.
  • O Governador do Estado do Rio de Janeiro suscitou a preliminar de ilegitimidade ativa, ante a ausência de pertinência temática entre os fins sociais da entidade requerente e o objeto da ação. No mérito, defendeu a constitucionalidade da norma. Afirmou que “a existência de Lei Federal e de Convenção forma simplesmente o arcabouço que a legislação estadual não poderá deixar de detalhar, como uma consequência jurídica” (eDOC 2, p. 6). Alegou que “a prevalência do interesse coletivo se dá pela preservação da saúde de fumantes e não-fumantes, que tem peso superior, do ponto de vista da axiologia constitucional, do que a mera expressão de um suposto direito de fumar, que pode e deve ser alvo de cerceamento” (eDOC 2, p. 12).
  • A Assembleia Legislativa, por sua vez, suscitou as mesmas preliminares trazidas pelo Governador do Estado. Acrescentou, em relação ao mérito, que “a União já esperava que os demais entes federativos, em harmonia com o tratado internacional celebrado, adotassem, no âmbito de seus domínios legislativos, medidas que complementassem a regra federal” (eDOC 3, p. 10). Aduziu, ainda, que a lei fluminense “nada mais fez do que melhor exteriorizar os limites já impostos pela própria Constituição Federal à liberdade de utilizar produtos fumígenos” (eDOC 3, p. 17). Alegou que não há delegação de poder de polícia, mas colaboração com o particular no que tange ao cumprimento da norma.
  • A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela procedência da ação em parecer assim ementado (eDOC 6): “Lei n. 5.517, de 2009, do Estado do Rio de Janeiro, que proíbe, em ambientes de uso coletivo, públicos ou privados, o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco. Existência de lei geral sobre a matéria, editada pela União. Invasão da competência da União pelo Estado-membro. Contrariedade aos termos do art. 24, V e XII, §§ 1º a , da Constituição Federal. Diploma legal formalmente inconstitucional. Manifestação pela procedência do pedido.”
  • A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, defendeu a improcedência (eDOC 7): “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 5.517/2001, do Estado do Rio de Janeiro, que “proíbe o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não de tabaco, na forma que especifica, e cria ambientes de uso coletivo livres do tabaco”.
  • Legitimidade ativada da CNC. Impossibilidade de se descartar, de antemão, o interesse das categorias econômicas representadas pela requerente, por ser grande parte dos estabelecimentos comerciais alcançada pela norma. Ausência de vício formal.
  • A Convenção Quadro para Controle do Tabaco, ratificada em 3 de novembro de 2005 e promulgada pelo Decreto 5.658/2006, revogou a Lei 9.294/96 por ser-lhe posterior e de hierarquia superior, além de disciplinar de forma diversa o combate à exposição à fumaça do tabaco, ao não consentir que a reserva de áreas para fumantes, em ambientes coletivos, seja medida eficaz. Neste contexto, há plena sintonia entre a atual norma federal que rege a matéria e a lei estadual impugnada, cumprido, portanto, o comando do art. 24, XII, da Constituição. Em matéria de direitos humanos, é inconcebível o privilégio de lei nacional, em detrimento de diretrizes para o combate eficaz à exposição à fumaça do tabaco, previstas em tratados internacionais incorporados e com ela conflitantes. Conversão do Estado nacional soberano em Estado constitucional cooperativo. A Lei federal 9.294/96, ao permitir, em ambientes coletivos, o chamado fumódromo, não realiza o valor fundamental da saúde. Viola, assim, a um só tempo, o art. 196 da Constituição e o princípio da vedação à proteção deficiente de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, que representa uma das facetas do princípio da proporcionalidade. Possibilidade de leis estaduais estipularem condições mais restritivas em matéria de saúde pública, salvo quando ofensiva a outra norma constitucional, voltada à preservação de valor jurídico diverso. Precedentes. Inexistência de ofensa ao princípio da liberdade individual, uma vez que a lei fluminense não proíbe o fumo, condicionando-o, tão somente, ao respeito à saúde dos demais cidadãos. Insubsistência da tese de violação aos princípios da livre iniciativa, do livre comércio e da livre concorrência. Qualquer atividade econômica encontra restrições e limitações quando se depara com o direito à saúde, ao meio ambiente, do consumidor e do trabalhador. A colaboração do particular no cumprimento de norma de interesse de toda a sociedade não se traduz em exercício de poder de polícia. Parecer pela improcedência da ação.” A Associação de Controle do Tabagismo, Promoção da Saúde e dos Direitos Humanos, a Fundação Ary Frauzino para Pesquisa e Controle do Câncer e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Turismo e Hospitabilidade – CONTRATUH foram admitidas como amici curiae. É, em síntese, o Relatório.
(STF - ADI: 4306 DF - DISTRITO FEDERAL, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 06/05/2019, Data de Publicação: DJe-098 13/05/2019)

Como se vê, as chamadas "tabacarias" pareciam ser a solução perfeita para os limites que a lei impunha: quem quisesse fumar em local fechado, bastaria ir a uma dessas "casas de fumo"; "e quem não fumasse, oras, que não fosse lá!", diriam os defensores de tal exceção à lei.

Porém, com o tempo tal argumento demonstrou-se falho. Uma, porque os empregados de tais estabelecimentos não detinham o mesmo grau de liberdade de seus frequentadores (afinal, entre ficar desempregado e aceitar trabalhar em um ambiente insalubre, a escolha pela última é bastante óbvia). Outra, porque tais lugares passaram a deixar de ser, cada vez menos "tabacarias", convertendo-se em verdadeiras "casas noturnas", com apresentações musicais, venda de bebidas alcoólicas e porções, além de ser frequentadas por menores de idade.

3. A atual versão da lei antifumo (e o fim das exceções?)

Se as tabacarias pareciam ser um "oásis" no meio desse deserto que a lei antifumo impôs aos tabagistas, por outro lado, mais e mais estudos apontavam que não havia percentuais mínimos ou seguros para consumo de tabaco, em qualquer modalidade de ingestão (cigarros, cigarretes, charutos, narguilé, etc).

Atento a isso, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.546/2011 que alterou diversos dispositivos em leis esparsas. Mas a principal alteração, sem dúvidas, foi do artigo da Lei 9.294/96 - que ganhou nova redação, conforme se lê, a seguir:

“ Art. 2º É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público ............................................................................................................................§ 3º Considera-se recinto coletivo o local fechado, de acesso público, destinado a permanente utilização simultânea por várias pessoas.” (NR)

Como se vê, a nova redação eliminou a famigerada exceção que existia - a tal "área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente" que a lei antiga permitia.

Logo, não resta mais dúvida alguma: a nova lei antifumo RETIROU AS TABACARIAS do rol de exceções à proibição de fumar-se em ambientes coletivos e fechados.

Alguns defensores do "tabagismo social" (o ato de fumar em grupo) dirão: "mas lemos, em algum lugar, que tabacarias e templos religiosos estão excluídos de tal proibição".

De fato, algumas reportagens contemporâneas à promulgação da nova lei, traziam essa informação - como é o caso de ÉPOCA:

Onde pode fumar?
As tabacarias, ambientes fechados criados para quem fuma, estão liberadas. Tirando isso, só pode fumar em ambientes fechados na sua própria casa - ou na casa de amigos, se eles concordarem, claro. Mas isso apenas no lado de dentro da porta. Corredores de prédios ou áreas comuns de condomínio estão vetados. Em ambientes públicos, o fumo está liberado em vias públicas, parques e praças. Em bares, apenas se as mesas e cadeiras estiverem do lado de fora e se houver uma parede ou janela impedindo que a fumaça entre no bar.
A lei também tem algumas exceções. Pode-se fumar em local coletivo fechado em cerimônias religiosas, mas apenas se o ato de fumar fizer parte do culto; na gravação de filmes ou novelas, se isso for necessário à produção da obra; ou em caso de pesquisas e estudos científicos sobre o cigarro.

A revista VEJA SÃO PAULO também trouxe informação semelhante:

As tabacarias estão liberadas da lei antifumo
Desde quarta (13), é proibido fumar charuto, cigarrilha e cachimbo em bares e restaurantes paulistanos que não disponham de um espaço fechado e com sistema de exaustão. Se alguém for flagrado dando suas baforadas fora desses fumódromos, pode pagar multa de 872 reais (a punição vale para o estabelecimento e para o cliente). Mas as tabacarias e casas especializadas estão liberadas da regra. De acordo com a Secretaria das Subprefeituras, nesses locais o fumo está livre de restrições.

Por fim, citamos também o G1/Bem Estar, (para nós, foi a melhor matéria sobre o tema feita à época, justamente por também informar no corpo da reportagem, os malefícios do consumo do fumo), que assim noticiou o fato:

Conforme a lei, fica proibido o fumo em locais coletivos fechados em todo o país, com exceção das tabacarias e dos cultos religiosos. As regras preveem que as pessoas não poderão fumar em lugares públicos ou privados (acessíveis ao público) que possuam cobertura, teto, parede, divisórias ou toldos. Em varandas de restaurante com toldo, por exemplo, não será permitido o fumo, bem como na área coberta de pontos de ônibus. As normas também valem para narguilés ou qualquer tipo de fumígeno.

Afinal de contas, de onde os jornalistas tiraram essa informação de que a lei permite consumo em tabacarias? A resposta é: tiraram do DECRETO 2018/96, com alterações introduzidas pelo DECRETO nº 8.262/2014.

Ou seja: todas as informações estão EQUIVOCADAS. Não foi a lei quem abriu as exceções; foi um Decreto Presidencial que o fez. Senão, vejamos o que diz tal Regulamento:

Art. 3º É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos, narguilé ou outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado.
§ 1º A vedação prevista no caput estende-se a aeronaves e veículos de transporte coletivo.
§ 2º Excluem-se da proibição definida no caput:
I - locais de cultos religiosos de cujos rituais o uso do produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, faça parte;
II - estabelecimentos destinados especificamente à comercialização de produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco, desde que essa condição esteja anunciada, de forma clara, na entrada, e desde que em local reservado para a experimentação de produtos dotados de condições de isolamento, ventilação ou exaustão do ar que impeçam a contaminação dos demais ambientes;
III - estúdios e locais de filmagem ou gravação de produções audiovisuais, quando necessário à produção da obra;
IV - locais destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco;
V - instituições de tratamento da saúde que tenham pacientes autorizados a fumar pelo médico que os assista.

Como se vê, estamos diante de uma questão jurídica: a lei, em si, proibiu o fumo em TODOS OS LOCAIS COLETIVOS, sejam eles privados ou particulares; mas um decreto é quem criou EXCEÇÕES À LEI!

4. Inconstitucionalidade

No Brasil vigora o princípio da legalidade estrita - na prática, significa que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de LEI.

Essa regra é tão importante que foi inserida no rol do artigo da Constituição Federal de 1988 - as chamadas garantias fundamentais.

Isso tem um motivo, uma razão: num país como o Brasil, com farto histórico de ditaduras e regimes de exceção (como foi o governo Deodoro da Fonseca, Getúlio Vargas I e o Regime Militar), a nova Constituição quis proibir que o mandatário do Poder Executivo governasse "por decreto", excluindo o Parlamento das discussões e decisões sensíveis, que impactam a sociedade e os indivíduos.

E a mesma Constituição Federal, em seu artigo 59, adotou a teoria de Hans Kelsen (positivismo jurídico) como sistema legislativo, para conferir proteção constitucional aos cidadãos, contra atos despóticos do Presidente em exercício:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:
I - emendas à Constituição;
II - leis complementares;
III - leis ordinárias;
IV - leis delegadas;
V - medidas provisórias;
VI - decretos legislativos;
VII - resoluções.
Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das lei

Em que categoria se enquadrariam os chamados "decretos presidenciais"? A esse respeito, DI PIETRO é suficientemente clara, quando ensina:

O regulamento será analisado de forma mais detida no Capítulo 3, item 3.4.1. Abrange duas modalidades: o executivo e o independente ouautônomo. O primeiro complementa a lei, ou, nos termos do artigo 84, IV,da Constituição, contém normas “para fiel execução da lei”. Ele não pode estabelecer normas contra legem ou ultra legem. Ele não pode inovar na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senãoem virtude de lei (art. , II, da Constituição); ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração. (...) O regulamento autônomo ou independente inova na ordem jurídica, porque estabelece normas sobre matérias não disciplinadas em lei; ele não completa nem desenvolve nenhuma lei prévia. Tem aplicação muito limitada no direito brasileiro, conforme se verá no item 3.4.1 deste livro (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanello. DIREITO ADMINISTRATIVO, 32ª ed, 2019).

E numa leitura bastante atenta da Lei 9.294/96 (já incorporando todas as alterações introduzidas por leis posteriores), identificamos apenas três hipóteses em que o legislador delegou ao Presidente da República, o poder de regulamentar o conteúdo da referida lei:

  • Art. 3º-B: Somente será permitida a comercialização de produtos fumígenos que ostentem em sua embalagem a identificação junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, na forma do regulamento.(Incluído pela Lei nº 10.167, de 2000)
  • Art. 3º-C § 2ºº A cada intervalo de quinze minutos será veiculada, sobreposta à respectiva transmissão, mensagem de advertência escrita e falada sobre os malefícios do fumo com duração não inferior a quinze segundos em cada inserção, por intermédio das seguintes frases e de outras a serem definidas na regulamentação, usadas seqüencialmente, todas precedidas da afirmação "O Ministério da Saúde adverte": (Incluído pela Lei nº 10.702, de 14.7.2003)
  • Art. 100. O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo máximo de sessenta dias de sua publicação.

Além do Poder Executivo extrapolar o prazo máximo de 60 (sessenta) dias para regulamentar a execução da lei (o Decreto 8.262 só foi promulgado em 2014, enquanto a Lei é de 2011!!!), parece ter exorbitado do poder regulamentar, indo além do que a lei lhe permitiu.

Com efeito, ao analisarmos as hipóteses de exceção da proibição de fumar em ambientes fechados, que o Decreto nº 2.018/14 estabeleceu, algumas delas estão em total consonância com a própria constituição:

  1. locais de cultos religiosos: tanto nas religiões de matriz africana, quanto nos ritos de algumas igrejas cristãs, o uso do fumo (seja na forma de charuto ou de incenso) faz parte da liturgia. Oras, a própria Constituição Federal, em seu art. inciso VI que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Logo, ao permitir que se fume em locais de culto religioso, o decreto "choveu no molhado", tão somente;
  2. "estúdios e local de filmagens ou gravação de produçoes audiovisuais, quando necessário à produção da obra": por mais que o "politicamente correto" tenha restringido, e muito, as cenas de personagens fumando em cena, pode ser que o roteiro do filme, série ou novela preveja que alguém fume. Se permitissemos a proibição de fumar em estúdio, seria espécie de censura - o que a Constituição já proíbe, de forma expressa, também no artigo , inciso IX: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença";
  3. "locais destinados à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco": aqui, mais uma vez, também não haveria necessidade de se falar o óbvio; isso porque, a Constituição Federal, ao regular a autonomia científica do Ensino ("Art. 206: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios" ) já previu, expressamente, a liberdade de pesquisa (inciso II: "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber" ;
  4. "instituições de tratamento da saúde que tenham pacientes autorizados a fumar pelo médico que os assista": esta talvez seja a hipótese mais acertada, por envolver um tema complexo (o uso terapêutico do fumo). Há diversos métodos para se tratar a adicção em nicotina, sendo que em alguns deles, o fumo controlado em ambiente terapêutico. Logo, essa hipótese está calcada no princípio da dignidade da pessoa humana, por tratar-se do uso de cigarro com propósitos médicos.

Portanto, distoa das demais hipóteses acima mencionadas, a exceção à proibição de fumar-se em "estabelecimentos destinados especificamente à comercialização de produtos fumígenos", ainda que "essa condição esteja anunciada, de forma clara, na entrada, e desde que em local reservado para a experimentação de produtos dotados de condições de isolamento, ventilação ou exaustão do ar que impeçam a contaminação dos demais ambientes".

Isso porque, parece haver uma certa contradição no texto do próprio decreto: afinal, o dispositivo fala em estabelecimentos que COMERCIALIZAM PRODUTOS FUMÍGENOS - e isso poderia abarcar, desde a padaria ou conveniência, até mesmo, as tais "tabacarias" e "hookas", pois bastaria "vender fumígenos" e cumprir o requisito de haver um "local reservado para experimentação de produtos".

Com efeito, não é o que verifica ao se fazer a inspeção in loco da maioria das "tabacarias" ora existentes.

Tais estabelecimentos, mais das vezes, permitem que as pessoas levem seus próprios "fumígenos", lucrando, portanto, não com a venda de tais produtos, mas sim com a locação de aparelhos de "narguilé" ou "biqueiras".

Algumas dessas tabacarias (ou mesmo suas variantes, sob as denominações de "Hookah" ou "Lounge") chegam a vender ingressos ou cobrar pela estada em suas dependências (couvert), por promoverem apresentações artísticas ou disponibilizarem ambientes com sonorização (danceterias).

Dessa forma, verifica-se que tais estabelecimentos acabaram por se revelar verdadeira "burla" à proibição da lei antifumo. E mais das vezes, concentram inúmeras outras irregularidades - como falta de ventilação adequada, isolamento acústico, rota de fugas em caso de incêndio, frequência por menores de idade, etc.

O que impressiona é a aparente apatia ou desinteresse por entidades como Conselhos Tutelares, Delegacias de Proteção à Criança e Adolescente, Ministério Público ou Defensorias Públicas em enfrentar essas irregularidades.

Nas pesquisas que realizamos para escrever este artigo, não encontramos nenhuma Ação ajuizada no STF, para se discutir a inconstitucionalidade do referido decreto presidencial - confirmando, por ora, o desinterese acima mencionado.

5. Conclusão

Conforme demonstramos, entendemos que o funcionamento das chamadas "tabacarias" está em flagrante descumprimento à proibição trazida pela Lei 12.546/11. Ademais, entendemos que tais estabelecimentos igualmente não se enquadram nas hipóteses excepcionantes, reguladas pelo Decreto nº 2.018/14.

Isso porque, o inciso IIdo parágrafo 2º do art. 3º do Decreto 2.018/14, é suficientemente claro, quando diz que apenas "estabelecimentos destinados especificamente à comercialização de produtos fumígenos, derivados ou não do tabaco", colocando como requisitos, "que essa condição esteja anunciada, de forma clara, na entrada" e que haja "local reservado para a experimentação de produtos", desde que "dotados de condições de isolamento, ventilação ou exaustão do ar que impeçam a contaminação dos demais ambientes".

O decreto fala em EXPERIMENTAÇÃO dos produtos, e não, da CONSUMAÇÃO dos mesmos. E isso faz total sentido, pois, o consumidor tem garantido o "direito de provar" o que vai comprar. Por isso é que o decreto previu que essa prova se desse em "local reservado" e "dotado de condições de isolamento/ventilação/exaustão do ar".

É tudo que NÃO se verifica nas "tabacarias" em funcionamento.

Nossa opinião é que há flagrante inconstitucionalidade no Decreto, que inovou nas hipóteses de excepcionação, indo além daquilo que a lei permite.

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3 Comentários

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Mesmo com todas as condições de isolamento/ventilação/exaustão do ar/aviso na entrada e etc. A cidade tem o direito de proibir tal estabelecimento?

Aguardo.
Obrigada! continuar lendo

Vejam esta situação. Um bar onde se fuma narguile, coloca mesas no pilotis do prédio. Área aberta, sem paredes, mas com uma laje posta sobre o segundo andar do edifício. De toda forma, as mesas onde se fuma estão em um local de passagem de pedestres e próximos à entrada dos moradores do prédio. Para os moradores do primeiro andar, que tem as mesas postas logo abaixo de suas janelas, o odor do fumo penetra no apartamento.

Estão em afronta à legislação? continuar lendo

Compreendo, então é só alterar o texto do decreto, substituindo a palavra "experimentação" para "consumo." uhu! rs continuar lendo