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26 de Maio de 2024
  • 2º Grau
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Supremo Tribunal Federal STF - SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA: STP 916 SP - Inteiro Teor

Supremo Tribunal Federal
ano passado

Detalhes

Processo

Partes

Publicação

Julgamento

Relator

PRESIDENTE

Documentos anexos

Inteiro TeorSTF_STP_916_52a3c.pdf
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Inteiro Teor

SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA 916 SÃO PAULO

REGISTRADO : MINISTRA PRESIDENTE

REQTE.(S) : MUNICIPIO DE BOTUCATU

ADV.(A/S) : PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE BOTUCATU

REQDO.(A/S) : RELATOR DO AI Nº XXXXX-88.2022.8.26.0000 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ADV.(A/S) : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

INTDO.(A/S) : DANILO FERREIRA BORTOLI

ADV.(A/S) : DANILO FERREIRA BORTOLI

SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA. EXPOSIÇÃO ACONTECEU EM 22, REALIZADA

NA PINACOTECA FÓRUM DAS ARTES DO

MUNICÍPIO DE BOTUCATU. PROIBIÇÃO DA

EXIBIÇÃO DA OBRA DEVILMAN DE AUTORIA DE JOVEM ARTISTA DA REDE DE ENSINO ESTADUAL. ATO DE CENSURA À LIBERDADE ARTÍSTICA E INTOLERÂNCIA ÀS OPINIÕES DIVERGENTES. PEDIDO FORMULADO PELO

MUNICÍPIO DE BOTUCATU VISANDO AO

RESTABELECIMENTO DA ORDEM DE RETIRADA DO QUADRO DA EXPOSIÇÃO, SUSTADA POR DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PEDIDO

IMPROCEDENTE. MANIFESTAMENTE

ENCERRAMENTO DA EXPOSIÇÃO. PERDA

SUPERVENIENTE DO OBJETO.

1. Insurge-se o Município de Botucatu contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que ordenou o fim da censura à obra Devilman , cuja exibição na Pinacoteca Fórum das Artes de Botucatu foi vedada pela Administração Pública municipal.

2. Assente nesta Corte que o Sistema de Classificação Indicativa brasileiro (Classind) não se presta a justificar a prática da censura estatal ou da submissão dos espetáculos e diversões públicas a autorização prévia (ADI 2.404, Rel. Min. Dias Toffoli). Trata-se de instrumento meramente informativo, destinado ao esclarecimento dos pais e responsáveis quanto ao conteúdo dos espetáculos públicos e a idade recomendada para a audiência, de modo a auxiliá-los na tomada de decisão consciente e informada em relação à educação dos menores.

3. A liberdade de expressão artística tutela não apenas conteúdos que - segundo o entendimento das autoridades públicas ou o pensamento majoritário - ajustam-se aos padrões morais vigentes e aos bons costumes. Sob a égide de um sistema constitucional plural e democrático , o respeito à diversidade e à pluralidade das ideias impõe às pessoas em geral - e em especial aos gestores públicos - o dever de tolerância com as opiniões divergentes, mesmo quando polêmicas, subversivas ou hostis aos senso comum. Precedentes.

4. A censura praticada contra a jovem artista, no caso, traduz manifestação da intolerância e do preconceito, além de constituir injusta agressão à sua esfera de liberdade de expressão artística ( CF, art. , IX), ao seu direito fundamental à manifestação da opinião e pensamento ( CF, art. , IV), ao exercício dos seus direitos culturais ( CF, art. 215) e educativos ( CF, art. 205), retratando situação de inadmissível opressão estatal e abuso institucional praticado contra a menor ( CF, art. 227, caput).

5. Diante do encerramento da exposição municipal e não subsistindo mais o quadro existente à época do ajuizamento, impõe-se reconhecer a perda superveniente do objeto da ação.

6. Suspensão de tutela provisória prejudicada.

Vistos etc.

1. Trata-se de suspensão de liminar ajuizada pelo Município de Botucatu/SP visando a sustar os efeitos da decisão proferida pelo Desembargador Relator do Agravo de Instrumento nº 2198094- 88.2022.8.26.0000, em curso perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pela qual ordenado o fim da censura à obra Devilman , cuja exibição na Pinacoteca Fórum das Artes de Botucatu foi vedada por ato da Administração Pública municipal.

2. Consta dos autos que a Pinacoteca Fórum das Artes, do Município de Botucatu, realizou a exposição Aconteceu em 22 , em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. O evento apresentou os trabalhos artísticos de estudantes das escolas da rede estadual de educação.

3. Antes mesmo da inauguração, no entanto, a Administração Pública municipal, por ato do Ouvidor-Geral, acolhendo reclamação popular, ordenou aos organizadores da Exposição a retirada da obra Devilman , da autoria de aluna do ensino médio, a qual retrata a representação da figura de um demônio, inspirado na história em quadrinhos e na série televisiva conhecidas internacionalmente (Devilman CryBaby).

4. As razões subjacentes à ordem de retirada, veiculada por e-mail oficial, foram manifestadas pelo Ouvidor-Geral nos seguintes termos:

"[...] não é adequado para esse momento que vivemos de muito stress psicológico que inclusive possa atingir a mente de crianças com imagem forte simbolizando um diabo podendo trazer alguns transtornos aos mesmo de perturbação de seus sonos com pesadelos."

5. Afirma o Município de Botucatu, em sua inicial, não se tratar de censura moral ou religiosa, mas de "limitação de acesso" fundada na classificação indicativa, pois "O desenho intitulado de ‘Devilman’ faz alusão a um anime (desenho animado) conhecido no mundo todo por ‘Devilman CryBaby’ cujo conteúdo trabalha com a erotização adulta, sexo e terror, o qual remete a cenas quanto ao uso de drogas, de carnificina, chacinas, decapitações, tripas, e outros membros expostos".

6. Sustenta, nessa linha, que a classificação indicativa é um instrumento fundamental para a proteção da criança e do adolescente e que o art. 74 do ECA incumbe os Poder Públicos da tarefa de regular as diversões e espaços públicos, informando a natureza deles e as faixas etárias a que não se recomendem, e os locais e horários em que sua apresentação se mostra inadequada.

7. Postula-se, desse modo, a suspensão dos efeitos da liminar concedida nos autos do Agravo de Instrumento nº 2198094- 88.2022.8.26.0000, restabelecendo-se, em consequência, a proibição

imposta pelo Ouvidor-Geral à exibição da obra Devilmen.

8. Ao manifestar-se nos autos, na condição de interessado, o Advogado Danilo Ferreira Bortoli, autor da ação popular ajuizada contra o ato proibitivo, formulou as seguintes considerações:

EMENTA DA MANIFESTAÇÃO

1. Pedido de suspensão de tutela provisória veiculado por Municipalidade que objetiva cassar os efeitos de liminar, de lavra do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que barrou censura prévia determinada pelo Ouvidor-Geral de Botucatu, interior de São Paulo.

2. Obra "Devilman", de autoria de uma aluna do Ensino Médio, retirada da exposição Aconteceu em 22, designada para ocorrer na Pinacoteca Fórum das Artes, em Botucatu, entre 05 de agosto e 27 de novembro de 2022, sob os argumentos de que a pintura "causaria stress" em que a visse e que o quadro é inspirado numa série televisiva com classificação indicativa para maiores de dezoito anos.

3. Aforada ação popular requerendo o levantamento da censura, o Juízo de primeira instância entendeu não haver urgência e determinou, antes, a instauração do contraditório. Interposto agravo de instrumento, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foram antecipados os efeitos da tutela recursal para reintegrar a obra censurada ao acervo da exposição artística.

4. Pedido de suspensão da liminar ajuizado pelo Município de Botucatu em que argui violação ao dever de proteção integral a crianças e adolescentes, previsto no art. 227 da Constituição Federal.

5. Argumentação do Município que resvala mais na criação de verdadeiro pânico moral do que em critérios técnico- jurídicos. Isso porque a pintura censurada exibe, em seu conteúdo, simplesmente um personagem de série televisiva, não se reportando ao conteúdo da série verdadeiramente. Não há conteúdo pornográfico ou discurso de ódio veiculado na obra, ou qualquer outro elemento, que possa causar danos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.

6. Defesa do não conhecimento do pedido de suspensão diante da defendida inconvencionalidade da utilização de mecanismos, tais como a suspensão de segurança, suspensão de tutela provisória e suspensão de liminar, formulados com base nos conceitos de ordem pública, social, ou moral pública, como maneira de impor restrição à liberdade de expressão, dada a interpretação da Corte IDH ao artigo 13, da Convenção Americana.

7. Pedido de indeferimento da suspensão veiculada diante da ausência de violação à ordem pública, social e moral pública, conceitos esses demasiadamente abertos, na exibição de quadro que tão somente retrata um personagem bíblico.

9. O Procurador-Geral da República pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de contracautela, consoante ementa do parecer:

SUSPENSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA. CONSTITUCIONAL. REMOÇÃO DE OBRA ARTÍSTICA DA PINACOTECA FÓRUM DAS ARTES DE BOTUCATU/SP. DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA. TENSÃO COM OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS. RISCO DE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. INEXISTÊNCIA. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE CONTRACAUTELA.

1. É competente o Supremo Tribunal Federal para examinar o pedido de suspensão de decisão mediante a qual foi determinada a reinclusão de obra de arte ao acervo de exposição artística em pinacoteca municipal, uma vez que ostenta natureza constitucional, envolvendo o exame do preceito constitucional relacionado à liberdade de expressão (arts. , IX, e 220 da CF) em confronto com a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente (art. 227 da CF).

2. A liberdade de expressão goza de uma posição preferente em razão da função estratégica que desenvolve no ordenamento democrático, mas sua restrição pode ser excepcionalmente necessária para o amparo de outros direitos fundamentais.

3. A restrição à liberdade de expressão há de ser exercida com ponderação, de forma equilibrada e prudente, sendo a censura prévia o mais severo meio de cerceá-la.

4. O deferimento dos pedidos de suspensão de segurança, de liminar e de tutela provisória tem caráter notoriamente excepcional, sendo imprescindível perquirir a potencialidade de a decisão concessiva ocasionar lesão à ordem, à segurança, à saúde e à economia públicas.

5. Revela risco de dano inverso à ordem pública o deferimento de contracautela para a retirada de obra artística, de aluna do ensino médio, de evento específico, sem elementos que fundamentem essa decisão, a afrontar o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 58) e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU (art. 31).

- Parecer pelo indeferimento da medida de contracautela.

10. Logo após, a municipalidade comunicou o encerramento da Exposição Aconteceu em 22 e pleiteia, em consequência, a extinção do feito, por perda superveniente do objeto.

É o relatório.

Aprecio a admissibilidade da ação.

Questões preliminares

11. A via eleita - suspensão de liminar - consubstancia meio processual autônomo à disposição exclusiva das pessoas jurídicas de

direito público e do Ministério Público, destinada à sustação de decisões judiciais que potencialmente provoquem grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Destina-se o incidente de contracautela apenas a obstar a execução imediata de decisões judiciais proferidas contra a Fazenda Pública e seus agentes. Reveste-se, por isso mesmo, de absoluta excepcionalidade, motivo pelo qual comporta exegese estrita, a nortear e balizar o conteúdo e o alcance das respectivas normas de regência (SL 933-AgR-Segundo/PA, Red. p/ acórdão Min. Marco Aurélio , Tribunal Pleno, DJe 17.8.2017; SL 1.214-AgR/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli , Tribunal Pleno, DJe 26.11.2019; SS 5.026-AgR/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski , Tribunal Pleno, DJe 29.10.2015, v.g.), tendo em vista a própria singularidade dos requisitos que dão ensejo a pedido dessa natureza (ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo : tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 80).

Inadmissível, desse modo, o uso do instrumento de contracautela como mero sucedâneo das vias recursais, achando-se condicionado o seu manejo, exclusivamente, à prevenção contra o risco de grave lesão ao interesse público primário (SL 56-AgR/DF, Rel. Min. Ellen Gracie , Tribunal Pleno, DJ 23.6.2006; SL 1.234-AgR/PI, Rel. Min. Dias Toffoli , Tribunal Pleno, DJe 26.11.2019; SS 3.450-AgR/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes , Tribunal Pleno, DJe 12.3.2010; STA 512-AgR/PI, Rel. Min. Cezar Peluso , Tribunal Pleno, DJe 08.11.2011, v.g.).

Nessa linha, imprescindível a causa de pedir das ações suspensivas estar vinculada à potencialidade de violação da ordem, da saúde, da segurança ou da economia públicas, sendo, ainda, indispensável, para o cabimento de tal medida, perante o Supremo Tribunal Federal, que o processo subjacente esteja fundado em matéria de natureza constitucional direta ( SS 3.075-AgR/AM, Rel. Min. Ellen Gracie , Tribunal Pleno, DJ 29.6.2007; SS 5.353-AgR/BA, Rel. Min. Luiz Fux , Tribunal Pleno, DJe 17.12.2020; STA 782-AgR/SP, Rel. Min. Dias Toffoli , Tribunal Pleno, DJe 18.12.2019, v.g.).

Registro, por fim, que a análise do pedido de contracautela cinge-se à presença dos requisitos previstos em lei, não havendo, portanto, falar em apreciação do mérito do processo subjacente. De todo indispensável, contudo, que a tese sustentada tenha um mínimo de plausibilidade (CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 657-8), num juízo sumário de cognição ( SL 1.165-AgR/CE, Rel. Min. Dias Toffoli , Tribunal Pleno, DJe 13.02.2020; SS 1.918-AgR/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa , Tribunal Pleno, DJ 30.4.2004; SS 3.023-AgR/AM, Rel. Min. Ellen Gracie , Tribunal Pleno DJ 25.4.2008; SS 3.717-AgR/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski , Tribunal Pleno, DJe 18.11.2014, v.g.).

12. Assentadas tais premissas, constato que o encerramento da exposição "Aconteceu em 22", realizada no período de 05.8.2022 a 27.9.2022 (conforme informações do site oficial do evento) torna prejudicada a análise do mérito desta ação.

13. Antes de apreciar esse aspecto processual, no entanto, compreendo ser necessário fazer algumas considerações quanto à controvérsia constitucional em apreço.

Classificação indicativa

14. Como dito, a Administração Pública municipal de Botucatu valeu-se de dois argumentos para justificar a chamada "limitação do acesso" à obra retirada da exposição: de um lado , a advertência do Ouvidor-Geral no sentido de que a imagem retratada ostentava caráter "perturbador" e inapropriado e, de outro , a motivação constante do Ofício da Administração Municipal fundada em suposto dever de observância da classificação Indicativa dos espetáculos públicos.

15. Já tive o ensejo de assinalar, ao exame da ADI 5.418, Rel. Min. Dias Toffoli, que, nos termos do art. 220, caput, da Constituição, nenhuma outra restrição , além daquelas previstas no próprio texto constitucional , poderá ser imposta à liberdade de manifestação do pensamento (CF, art.

5º, IV) e ao direito de expressão artística ( CF, art. , IX), vedada toda e qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística ( CF, art. 220, § 2º).

No Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão é a regra , admitida a sua restrição somente em situações excepcionais e nos termos da lei que, em qualquer caso, deverá observar os limites materiais emanados da Constituição.

16. Por isso mesmo, diante da necessidade de garantir a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, tutelar as crianças e os adolescentes em face de sua condição especial de pessoas em desenvolvimento, a Constituição Federal outorgou à União Federal, com absoluta privatividade , a atribuição de dispor, mediante lei federal, sobre a classificação indicativa das diversos e espetáculos públicos e programações de rádio e televisão ( CF, art. 220, § 3º, I):

"Art. 220. (...)

....................................................................................................... § 3º Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem , locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

17. Com base nessas premissas, o Plenário desta Corte assentou que o Sistema de Classificação Indicativa brasileiro (Classind) é o modelo adotado pela Constituição para oferecer aos telespectadores das diversões públicas e de programas de rádio e televisão as indicações, as informações e as recomendações necessárias acerca do conteúdo veiculado ( CF, art. 220, § 3º, I e II, c/c o art. 221, I a V). Confira-se a ementa do acórdão da lavra do eminente Min. Dias Toffoli:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO"EM

HORÁRIO DIVERSO DO AUTORIZADO", CONTIDA NO ART. 254 DA LEI Nº 8.069/90 ( ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE).

CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA. EXPRESSÃO QUE TIPIFICA COMO

INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA A TRANSMISSÃO, VIA RÁDIO OU TELEVISÃO, DE PROGRAMAÇÃO EM HORÁRIO DIVERSO DO AUTORIZADO, COM PENA DE MULTA E SUSPENSÃO DA PROGRAMAÇÃO DA EMISSORA POR ATÉ DOIS DIAS, NO CASO DE REINCIDÊNCIA. OFENSA AOS ARTS. 5º, INCISO IX; 21, INCISO XVI; E

220, CAPUT E PARÁGRAFOS, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE.

1. A própria Constituição da Republica delineou as regras de sopesamento entre os valores da liberdade de expressão dos meios de comunicação e da proteção da criança e do adolescente. Apesar da garantia constitucional da liberdade de expressão, livre de censura ou licença, a própria Carta de 1988 conferiu à União, com exclusividade, no art. 21, inciso XVI, o desempenho da atividade material de" exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão ". A Constituição Federal estabeleceu mecanismo apto a oferecer aos telespectadores das diversões públicas e de programas de rádio e televisão as indicações, as informações e as recomendações necessárias acerca do conteúdo veiculado. É o sistema de classificação indicativa esse ponto de equilíbrio tênue, e ao mesmo tempo tenso, adotado pela Carta da Republica para compatibilizar esses dois axiomas, velando pela integridade das crianças e dos adolescentes sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão.

2. A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia. A submissão ao Ministério da Justiça ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do art. 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização. Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à

União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação. Não há horário autorizado, mas horário recomendado. Esse caráter autorizativo, vinculativo e compulsório conferido pela norma questionada ao sistema de classificação, data venia, não se harmoniza com os arts. 5º, IX; 21, inciso XVI; e 220, § 3º, I, da Constituição da Republica.

3. Permanece o dever das emissoras de rádio e de televisão de exibir ao público o aviso de classificação etária, antes e no decorrer da veiculação do conteúdo, regra essa prevista no parágrafo único do art. 76 do ECA, sendo seu descumprimento tipificado como infração administrativa pelo art. 254, ora questionado (não sendo essa parte objeto de impugnação). Essa, sim, é uma importante área de atuação do Estado. É importante que se faça, portanto, um apelo aos órgãos competentes para que reforcem a necessidade de exibição destacada da informação sobre a faixa etária especificada, no início e durante a exibição da programação, e em intervalos de tempo não muito distantes (a cada quinze minutos, por exemplo), inclusive, quanto às chamadas da programação, de forma que as crianças e os adolescentes não sejam estimulados a assistir programas inadequados para sua faixa etária. Deve o Estado, ainda, conferir maior publicidade aos avisos de classificação, bem como desenvolver programas educativos acerca do sistema de classificação indicativa, divulgando, para toda a sociedade, a importância de se fazer uma escolha refletida acerca da programação ofertada ao público infanto-juvenil.

4. Sempre será possível a responsabilização judicial das emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças e dos adolescentes, levando-se em conta, inclusive, a recomendação do Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se mostre inadequada. Afinal, a Constituição Federal também atribuiu à lei federal a competência para"estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221"(art. 220, § 3º, II, CF/88).

5. Ação direta julgada procedente, com a declaração de inconstitucionalidade da expressão"em horário diverso do autorizado"contida no art. 254 da Lei nº 8.069/90.

(ADI 2404, Relator (a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-168 DIVULG XXXXX-07-2017 PUBLIC XXXXX-08-2017)

18. Trata-se, como se vê, de atribuição meramente indicativa, revestida de caráter estritamente informativo , destinada ao esclarecimento dos pais e responsáveis quanto ao conteúdo dos espetáculos públicos e a idade recomendada para a audiência, de modo a auxiliá-los na tomada de decisão consciente e informada em relação à educação dos menores.

19. Incumbe aos pais e responsáveis , portanto, no contexto da nossa sociedade democrática e pluralista," o dever de assistir, criar e educar os filhos menores "( CF, art. 229, caput). É no seio da família, base da sociedade ( CF, art. 226, caput) e no contexto das relações familiares, fundadas nos vínculos de confiança e de afeto, que os pais exercem, em conformidade com os preceitos da paternidade responsável ( CF, 226, § 7º), a educação moral, cultural, religiosa e sentimental da criança e do adolescente, sem prejuízo do dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente o acesso prioritário a seus direitos fundamentais, além de colocá-los a salvo de toda forma de opressão ( CF, art. 227, caput).

20. Nada justifica , desse modo, a inadequada invocação pelo Município de Botucatu das normas regentes do Sistema de Classificação Indicativa brasileiro (Classind) para autorizar a pratica da censura em relação a obra artística que, segundo a visão de mundo individual e particular do Ouvidor-Geral do município, não se mostra adequada à exibição pública.

21. Não cabe aos Poderes Públicos sub-rogarem-se no papel reservado aos pais e à família na educação moral, cultural e religiosa da criança e do adolescente.

22. De modo algum, como já decidido por esta Corte (ADIs 2.404,

Rel. Min. Dias Toffoli), a Classificação Indicativa poder ser utilizada pela Administração Pública como pretexto para a submissão da liberdade intelectual, artística ou científica ao controle prévio por meio de censura ou licença estatal ( CF, art. , IX).

23. Somente se autoriza a retirada de circulação de veículos de manifestação do pensamento quando, excepcionalmente, a ponderação entre a liberdade de expressão e outros valores constitucionais evidenciar o abuso de direito e a prática ilícita de incitação à violência ou à discriminação, bem como de propagação de discurso de ódio:

Reclamação. 2. Liberdade de expressão. 3. Decisões reclamadas que restringem difusão de conteúdo audiovisual em que formuladas sátiras a elementos religiosos inerentes ao Cristianismo. 4. Ofensa à autoridade de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos julgamentos da ADPF 130 e da ADI 2.404. 5. Limites da liberdade artística. 6. Importância da livre circulação de ideias em um Estado democrático. Proibição de divulgação de determinado conteúdo deve-se dar apenas em casos excepcionalíssimos, como na hipótese de configurar ocorrência de prática ilícita, de incitação à violência ou à discriminação, bem como de propagação de discurso de ódio. 7. Distinção entre intolerância religiosa e crítica religiosa. Obra que não incita violência contra grupos religiosos, mas constitui mera crítica, realizada por meio de sátira, a elementos caros ao Cristianismo. 8. Reclamação julgada procedente.

( Rcl 38782, Relator (a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 03/11/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe- 034 DIVULG XXXXX-02-2021 PUBLIC XXXXX-02-2021)

24. Ausente, no caso, situação de discriminação ou incitação à violência, inadmissível o acolhimento da pretensão manifestada pelo Município de Botucatu no sentido de restabelecer o ato de censura praticado pelo Ouvidor-Geral municipal.

25. Afirma-se, de outro lado - não é demasiado repetir -, que o conteúdo da obra censurada" [...] não é adequado para esse momento que vivemos de muito stress psicológico que inclusive possa atingir a mente de crianças com imagem forte simbolizando um diabo podendo trazer alguns transtornos aos mesmo de perturbação de seus sonos com pesadelos ".

26. Como se vê, o juízo de censura praticado pelo Ouvidor-Geral não encontra suporte em nenhuma referência técnica ou científica. Cinge- se apenas à expressão de sua própria opinião pessoal e preconceituosa quanto ao valor e ao significado da obra de autoria da jovem artista do ensino médio que a criou.

27. Arrogando para si o papel (há muito extinto) de censor público, o Ouvidor-Geral do Município valeu-se de seus poderes institucionais para, com base em suas próprias crenças, privar a jovem artista da oportunidade de expor sua obra e subtrair dos pais e cidadãos em geral a prerrogativa de decidirem, por si mesmos, o valor artístico e cultural da tela pintada pela menor.

28. Vale enfatizar, a liberdade de expressão artística tutela não apenas aqueles conteúdos que - segundo o entendimento das autoridades públicas ou o pensamento majoritário - ajustam-se aos padrões morais vigentes e aos bons costumes. Sob a égide de um sistema constitucional plural e democrático , o respeito à diversidade e à pluralidade das ideias impõe às pessoas em geral - e em especial aos gestores públicos - a tolerância com as opiniões divergentes, mesmo quando polêmicas, subversivas ou hostis ao senso comum:

" (...) TOLERÂNCIA COMO EXPRESSÃO DA "HARMONIA NA DIFERENÇA" E O RESPEITO PELA DIVERSIDADE DAS PESSOAS E PELA MULTICULTURALIDADE DOS POVOS. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, POR REVESTIR-SE DE CARÁTER ABRANGENTE, ESTENDE-SE, TAMBÉM, ÀS IDEIAS QUE CAUSEM PROFUNDA DISCORDÂNCIA OU QUE SUSCITEM INTENSO CLAMOR PÚBLICO OU QUE PROVOQUEM GRAVE REJEIÇÃO POR PARTE DE CORRENTES MAJORITÁRIAS OU HEGEMÔNICAS EM UMA DADA COLETIVIDADE

- As ideias, nestas compreendidas as mensagens, inclusive as pregações de cunho religioso, podem ser fecundas, libertadoras, transformadoras ou, até mesmo, revolucionárias e subversivas, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais. O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. O caso "United States v. Schwimmer" (279 U.S. 644, 1929): o célebre voto vencido ("dissenting opinion") do Justice OLIVER WENDELL HOLMES JR.. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento - e, particularmente, o pensamento religioso - não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância. - O discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações e manifestações que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, não encontra amparo na liberdade constitucional de expressão nem na Convenção Americana de Direitos Humanos (Artigo 13, § 5º), que expressamente o repele.

....................................................................................................... (ADO 26, Relator (a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG XXXXX-10-2020 PUBLIC XXXXX-10-2020)

29. A censura praticada contra a jovem artista, no caso, traduz manifestação da intolerância e do preconceito, além de constituir injusta agressão à sua esfera de liberdade de expressão artística ( CF, art. , IX), ao seu direito fundamental à manifestação da opinião e pensamento ( CF, art. , IV), ao exercício dos seus direitos culturais ( CF, art. 215) e educativos ( CF, art. 205), retratando situação de inadmissível opressão estatal e abuso institucional praticado contra a menor ( CF, art. 227, caput).

28. Diante desse quadro, tenderia a julgar manifestamente improcedente a pretensão do Município de Botucatu de restabelecer o ato de censura praticado contra a jovem artista do ensino médio.

29. Considerado, no entanto, o encerramento da Exposição "Aconteceu em 22" , já não subsiste mais, como dito, a situação motivadora do ajuizamento desta ação.

30. Ante o exposto, assento o prejuízo do pedido. Publique-se.

Brasília, 28 de abril de 2023.

Ministra ROSA WEBER

Presidente

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