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2 de Maio de 2024

Porque a descriminalização do aborto é necessária?

Publicado por Murilo Antunes Mata
há 6 anos

Por Murilo Antunes

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) - 54

Em junho de 2004 o Poder judiciário foi provocado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na saúde (CNTS) para que fosse questionado os artigos 126 e 128, I e II, do Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal). Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940. Tendo como relator o ministro Marco Aurélio, a ADPF 54 teve por seguinte resultado:

“O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli."

HARBEAS CORPUS 124.306

No dia 29 de novembro de 2016, por sua vez, em Harbes Corpus, a 1ª Turma do STF decide que Interromper gestação até 3º mês não é crime. Afirma pois:

(...) a proibição ao aborto é clara no Código Penal brasileiro, mas deve ser relativizada pelo contexto social e pelas nuances de cada caso. Por exemplo, a interrupção da gravidez é algo feito por muitas mulheres, mas apenas as mais pobres sofrem os efeitos dessa prática, pois se submetem a procedimentos duvidosos em locais sem a infraestrutura necessária, o que resulta em amputações e mortes.

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 442 DISTRITO FEDERAL

A audiência foi convocada como parte da preparação para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade para questionar os artigos 124 e 126 do Código Penal. Nos dois dias de audiência foram ouvidos 60 especialistas do Brasil e do exterior, entre eles pesquisadores de diversas áreas, profissionais da área de saúde, juristas, advogados e representantes de organizações da sociedade civil de defesa dos direitos humanos e entidades de natureza religiosa.

ARGUMENTOS GERAIS PRÓ-ABORTO

1 – A descriminalização do aborto é uma questão de saúde pública

Ninguém é a favor do aborto. Acontece que, existindo ou não leis que o proíbam, o aborto continua a ser praticado – segundo a Organização Mundial de Saúde, são 20 milhões de abortos clandestinos por ano no mundo – e continua a matar mulheres. Ainda segundo a OMS, uma mulher morre a cada nove minutos vítima de abortos clandestinos.

O que defendemos, portanto, é a descriminalização do aborto como questão de saúde pública, para que o Estado pare de violentar mulheres através de suas leis.

Necessário, aliás, neste ponto, que façamos um recorte: quem são as mulheres que morrem vítimas de abortos clandestinos? As pobres, negras e periféricas. As ricas, em geral, conseguem abortar seguramente em clínicas clandestinas por uma bagatela de três a cinco mil reais.

Importa, portanto, saber que a proibição do aborto não é eficaz em fazer com que as mulheres deixem de abortar, mas é muito eficaz em matar mulheres pobres, negras e periféricas.

2 – Motivações religiosas não interessam a questões coletivas

Como já dissemos, e não cansaremos de repetir, a Bíblia não é Constituição.

A bancada evangélica – um parêntese: o fato de existir uma bancada evangélica em um país laico é, por si só, vergonhoso – está a postos para barrar qualquer avanço que o Brasil ouse dar em direção à descriminalização do aborto (e dessa vez não será diferente), mas é de uma estupidez infinita valer-se de argumentos religiosos em uma discussão que diz respeito às mulheres de todas as religiões, inclusive às que não se identificam com religião alguma.

Aborto é uma questão social e política, jamais religiosa.

3 – A maternidade é compulsória, a paternidade não.

Apenas no Brasil, mais de cinco milhões de crianças não têm o nome do pai no registro de nascimento, sem falar nos “pais de papel”, que registram os filhos e seguem suas vidas como se nada tivesse acontecido, mas quando a questão da descriminalização é levantada, brotam homens em todos os cantos, opinando onde não foram chamados e nem os cabe.

Por que tantos homens abandonam seus filhos?

Porque eles podem fazer isso. Porque a sociedade não os julga moralmente e o Estado não os obriga com alguma eficiência a assistirem afetivamente sua prole. Uma mulher que abandona um filho é um monstro para a mídia, para o Estado e para a sociedade. Um homem que abandona um filho é apenas mais um homem.

Se a maternidade é compulsória e a paternidade não o é, cabe apenas às mulheres, discutirem sobre os caminhos da descriminalização do aborto no Brasil.

4 – O feto não sente dor

A informação é de um estudo realizado pelo The Guardian: o feto humano não sente dor durante as primeiras vinte e quatro semanas de gestação, porque suas terminações nervosas são formadas apenas após a vigésima quarta semana.

Do mesmo modo, a esta altura, o feto também não desenvolveu consciência – logo, não é exposto a nenhum tipo de sofrimento durante o procedimento abortivo.

Portanto, aqueles anti-aborto tão preocupados com as dores de um embrião fecundado, mas tão indiferente às vidas das mulheres vítimas de abortos clandestinos, pode dormir tranquilos.

5 – A descriminalização não gerará a banalização do aborto

Uma mulher não quer abortar como quem quer ir ao cinema. É estúpido, portanto, agir como se o aborto fosse, de alguma maneira, desejável para qualquer mulher.

Ainda segundo a Organização Mundial de Saúde, países com leis que proíbem o aborto não conseguiram evitar a prática e que contam atualmente com taxas maiores do que nos países em que o aborto é legalizado.

Isso porque a descriminalização é acompanhada de uma estratégia séria de planejamento familiar e acompanhamento psiquiátrico.

O aborto não se transformará no esporte favorito das mulheres brasileiras caso seja legalizado – muito pelo contrário, aliás.

6 – Métodos contraceptivos falham

Uma pesquisa realizada pela UnB (Universidade de Brasília) apontou que entre 70,8% e 90,5% das mulheres que praticam o aborto no Brasil já têm outros filhos e fazem uso de métodos contraceptivos regularmente – o que reforça a tese de que o aborto seria medida de planejamento reprodutivo – empregado em último caso, quando os outros métodos contraceptivos falharam.

Importa dizer, ainda, que, comprovadamente, não há nenhum método contraceptivo totalmente seguro. Isso significa que o aborto não é uma prática que busca meramente corrigir a negligência do mau uso dos métodos contraceptivos.

Por fim, é certo que defender o prosseguimento da gestação como punição pela negligência dos pais no que se refere a métodos contraceptivos pressupõe que filhos indesejados funcionam como “punições.”

Crianças não são punições.

7 – Ser contra o aborto não é ser pró-vida

O discurso pró-vida é o menos lógico e mais cansativo de todos os discursos anti-aborto.

Não há nada de moralmente admirável em defender o nascimento de uma criança indesejada, que provavelmente chegará ao mundo sem aparato material ou afetivo adequados e crescerá em condições adversas. Se esta criança, pelo seu histórico de privações, sucumbir ao crime, este mesmo conservador pró-vida dirá que “bandido bom é bandido morto”.

Querer que a criança nasça sem se importar com o tipo de vida que ela terá não é ser pró-vida, é ser pró-nascimento.

“Como você pode ser a favor do aborto?”

Não interessa se alguém pessoalmente é contra ou a favor do aborto. Não é uma questão de preferência, opinião, de achar feio ou bonito como quem olha para um vestido. É um debate a respeito de leis e políticas públicas. Nossa opinião pessoal e nossas crenças não deveriam nortear as leis. Porque eu sou contra babacas, mas nem por isso o governo está criando leis para impedir as pessoas de serem.

Não é por achar o aborto divertido e “uau, adoro abortar” que se defende a legalização do aborto. Isso não existe. Ser a favor da legalização do aborto é defender a vida das mulheres que fazem e morrem na ilegalidade e clandestinidade – especialmente as mais pobres. Que tipo de gente pode ser contra a vida de mulheres?

“Em que casos o aborto é legal?”

No Brasil, o aborto é legal quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco de morte para a mãe ou se o feto é anencéfalo (não possui cérebro).

Muitas mulheres não sabem, mas elas já têm esse direito. No caso de ter sido estuprada, se a vítima quiser abortar não é preciso apresentar boletim de ocorrência. Se o feto for anencéfalo, não é preciso apresentar autorização judicial. Nestas condições, a mulher pode exigir os seus direitos e ser atendida pelo SUS.

“É simples assim conseguir um aborto nos casos previstos pela lei?"

Não mesmo. A lei determinar que a mulher tem direito ao aborto nesses casos não significa que seja fácil: mesmo amparada pela lei ela encontra dificuldades de ser atendida, sendo não poucas vezes maltratada pelos profissionais de saúde que têm a obrigação, pela legislação, de acolhê-la.

O maltrato nos hospitais também é experimentado por mulheres que sofrem aborto espontâneo. Mesmo nesses casos as mulheres são tratadas como criminosas, vistas com desconfiança e suas vidas são colocadas em risco. Por isso a legalização do aborto deve ser mais ampla, além de garantir medidas para que as mulheres sejam atendidas com dignidade, em todos os casos.

“Mas se legalizar, vai banalizar o aborto!”

O aborto já é crime (exceto nos casos citados acima) e isso não está sendo eficaz para reduzir o número de abortos. As mulheres abortam e isso é um fato.

Vamos aos números: no Brasil, são cerca de 1 milhão de abortos por ano. Uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto e a cada dois dias morre uma mulher vítima de aborto ilegal. A lei que criminaliza o aborto não é eficaz para evitar abortos, mas muito eficaz para matar mulheres.

No Uruguai, além de nenhuma mulher ter morrido após o aborto ter sido legalizado, 10 em cada mil mulheres realizam um aborto, o que é uma das taxas mais baixas do mundo. A legalização do aborto é eficiente para salvar mulheres e para diminuir o número de abortos.

O abortamento é considerado inseguro quando praticado em condições precárias e inadequadas, por pessoal com insuficiente habilitação, ou ambas as condições. Nesses casos, o abortamento relaciona-se com taxas elevadas de mortalidade, com cerca de 13% das mortes relacionadas maternas. (BRASIL, 2005b, p. 45).

Segundo relatório da IPPF, sigla em inglês para Relatório da federação internacional de Planejamento familiar, ocorrem no Brasil todos os anos cerca de um milhão de abortos clandestinos, abortos estes que são praticados em sua maioria por mulheres pobres que sem perspectivas próprias e sem condições de trazer ao mundo um novo indivíduo optam por interromper a gravidez.

Ao contrário do que o senso comum acredita, ainda segundo a mesma pesquisa acima citada, as mulheres que buscam o aborto em 88% dos casos são casadas, tem outros filhos e são católicas ou protestantes, essas mulheres ao procurarem uma clínica clandestina de aborto, acabam por tendo complicações hospitalares, e em muitos casos morrendo deixando marido e filhos, estima-se que todos os anos ocorram 250 mil internações SUS gerando um custo ao erário de 142 milhões de reais.

Portanto, o aborto não é uma questão filosófica, religiosa ou de qualquer outra vertente, mas uma questão de saúde pública onde todos os anos milhares de mulheres têm suas vidas ceifadas por um Estado negligente onde não se protegem as mulheres que escolhem por interromper uma gravidez indesejada. No Uruguai, desde a legalização do aborto em 2012, não houve nenhuma mulher morreu decorrente da interrupção da gravidez.

“Tem tanta mulher assim abortando?”

Muito provavelmente exista até mais, já que o aborto é feito na surdina, na clandestinidade, em segredo. Se uma em cada cinco mulheres já fez pelo menos um aborto, a probabilidade de você conhecer uma mulher que já abortou, inclusive na sua família, não é tão pequena assim.

Pesquisa feita pela Universidade de Brasília constatou que a maioria das mulheres que abortam no Brasil tem de 25 a 39 anos, é casada, tem filhos e é cristã.

Jovens abortam, solteiras abortam, casadas abortam, mães abortam, evangélicas abortam, desempregadas abortam, trabalhadoras abortam, ricas abortam, pobres abortam. Se for prender todas as mulheres que abortam (e sobrevivem), vai faltar cadeia.

Mulheres que abortam não são criminosas, assassinas, monstras. São suas amigas, colegas, mães, filhas, primas, tias, namoradas, esposas, professoras, chefes, vizinhas. São cidadãs, são pessoas como você.

“Por que elas abortam?”

Pelos mais variados motivos. Porque são muito pobres e não têm condições de arcar com uma gravidez, porque precisam trabalhar e o mercado de trabalho rejeita mulheres grávidas, porque sofrem violência doméstica e não querem expor mais um filho à violência ou porque a gravidez a prenderia em um relacionamento abusivo (e estudos mostram que mulheres que procuram por aborto tem sete vezes mais chances de ter experimentado violência doméstica) e, entre outros motivos, simplesmente porque não querem levar a gravidez adiante.

Imagine que são motivos sérios e extremos o suficiente para uma mulher estar disposta a burlar a lei e colocar a própria vida em risco.

O que se deve destacar é que o aborto no Brasil é traduzido pela expressão das desigualdades sociais que este apresenta, pois as mulheres que possuem condições financeiras abortam de maneira segura, enquanto que, as que não possuem o mesmo percentual econômico acabam sendo vítimas de uma injustiça social (IPAS, 2007). Esse problema que as mulheres menos de providas de recursos sofrem, não é divulgado pela Igreja Católica ou qualquer outra, elas simplesmente condenam o ato, mas não olha

os motivos que levam ao cometimento desses, e nem o modo como o Estado oferece subsídios para que as mulheres não pratiquem o aborto. Portanto, dizer que um ato é um crime, não ajuda a melhorar a situação que se encontra muitas mulheres.

“Com pílula e camisinha, só engravida quem quer.”

Métodos contraceptivos falham e isso também é fato. Ainda que usados corretamente, quanto mais tempo se passa usando esses métodos, maior é a probabilidade de resultar em uma gravidez indesejada. Se duvida, dá uma olhada nesse estudo. Mesmo que em alguns casos a probabilidade seja pequena, ela existe.

Há mulheres que também não têm acesso a anticoncepcionais, ou não são ensinadas a usar corretamente, ou se esquecem de tomar a pílula, ou ainda não sabem que antibióticos podem cortar o efeito da pílula. É possível também que se a mulher tiver alguma diarreia ou vômito, a pílula não seja devidamente absorvida pelo organismo e falhe. Há muitos fatores que expõem a mulher à gravidez, ainda que ela esteja fazendo tudo direitinho.

“Então aborto vai ser usado como método contraceptivo?"

O aborto não é defendido como método contraceptivo, até porque “contraceptivo” é o que se faz antes de engravidar. Mas ele deve ser garantido porque métodos contraceptivos falham e porque a mulher não vai carregar uma gravidez se ela não quiser, não importa qual seja o motivo.

“Engravidou, agora aguenta.”

Comovente como os chamados “pró-vida”, incansáveis defensores dos fetos, veem criança como um castigo. E castigo pra quê? Transar não é crime. Não está previsto no Código Penal.

E se gravidez pode ser considerada punição, nosso sistema penitenciário está todo errado; que obriguem então os presos a engravidarem e a terem filhos contra a vontade.

Parece absurdo, mas é justamente o que acontece quando mantemos o aborto criminalizado: impomos a mulheres que não cometeram nenhum crime a ficarem presas a uma gravidez e a terem filhos contra a sua vontade (e, caso tentem abortar, são muitas vezes condenadas à “morte”).

A responsabilidade de ter filhos é tão séria que não deve, em nenhuma circunstância, ser imposta. Maternidade deve ser escolha, não obrigação.

“Mas e os homens? Não têm direito de decidir manter a gravidez?”

Se a gravidez acontecesse no corpo deles, aí sim. Mas é no corpo da mulher, é a vida da mulher, homem nenhum tem o direito de decidir por ela, impor a ela uma gravidez que ela não quer.

Aliás, porque não se pergunta “e os homens” quando o assunto é contracepção? Porque a responsabilidade de evitar a gravidez é só da mulher e ela que arque sozinha com as consequências se algo der errado?

O homem não precisa ser responsabilizado pelo “descuido” com relações sexuais e métodos contraceptivos, ainda pode abortar sem o risco de morrer (quando some e deixa a mulher grávida desamparada) e acha tranquilo exigir o poder de decidir sobre o corpo da mulher?

Segundo o Dr. Dráuzio Varella: “Se os homens parissem, o aborto seria legalizado a muito tempo, e no mundo todo.

“Não quer ter o filho, dá pra adoção.”

É de se espantar que tenha gente achando que não há crianças abandonadas o suficiente no mundo. Como se orfanatos fossem lugares encantados e mágicos como nos filmes ou na novela Chiquititas. Como se uma criança não passasse anos esperando por uma família para ser adotada.

Além disso, vale lembrar que abandonar crianças é crime. Não é mais nobre quem sugere a uma mulher se livrar de uma criança depois que ela nascer. É cruel, por considerar que a mulher é apenas uma incubadora que serve para expelir bebês. É cruel, por considerar que uma criança deve nascer independente das circunstâncias e de condições adequadas para criá-la.

Todo esse sofrimento pode ser evitado se for garantido à mulher o direito de abortar de forma segura no início da gravidez, quando ainda não existe uma criança. Sim, porque feto não é bebê.

“Mas a vida começa na concepção!"

Apesar de isso não ter nenhum embasamento científico, vamos supor que a vida começa na concepção: ainda assim não é motivo para manter o aborto criminalizado.

Vimos que as mulheres abortam (mesmo aquelas cujas crenças são contra o aborto). Com o aborto ilegal, elas recorrem, desesperadas, a métodos arriscados. O aborto ilegal mata uma mulher, uma mãe, uma esposa… e ainda não salva o feto!

“Então qual é a solução para preservar a vida?"

Não há coisa mais a favor da vida do que lutar pela legalização do aborto.

Pense bem: se é impossível obrigar uma mulher a continuar com uma gravidez, a verdadeira opção a favor da vida é, pelo menos, evitar que essa mulher morra. Tente ver por essa perspectiva: a legalização do aborto é a opção que salva mais vidas.

É de uma incoerência gigantesca acreditar que a vida começa na concepção e não se importar com a vida depois que ela nasce. É como se o feto perdesse todos seus sagrados direitos quando nasce. Não faz sentido.

“E os bebês sendo mutilados, sendo arrancados da barriga? É uma carnificina!”

O aborto legal e seguro está a um abismo de distância desse filme de terror que querem fazer com que se pareça. Não tem bebê sendo mutilado, não tem bebê agarrando a mão do médico pedindo para não ser abortado.

Uma americana resolveu divulgar fotos de seu aborto, feito de forma legal e segura na 6ª semana de gestação: apenas um recipiente com sangue, nem sinal de feto, muito menos um bebê. Outra americana filmou o seu aborto, e no vídeo é possível vê-la bastante tranquila. Ela conta:"Um aborto realizado no primeiro trimestre de uma gravidez leva de três a cinco minutos. É mais seguro que um parto”.

Não há nada de assustador em um aborto feito de forma legal. O assustador é que um procedimento que pode ser rápido e seguro possa levar tantas mulheres à morte simplesmente por ser mantido na ilegalidade.

“Legalizar o aborto significa o quê?”

Significa, em primeiro lugar, o Estado reconhecer que somos pessoas, e não porta-fetos. Significa que caberá somente à mulher decidir se deseja levar adiante uma gravidez e que, caso opte pelo aborto, possa ser atendida com segurança e dignidade nos hospitais, inclusive do SUS, sem receber qualquer tipo de punição.

“E como ficaria a legislação?”

Em 56 países (não por acaso os mais desenvolvidos), o aborto é permitido sem nenhuma restrição. No Uruguai, a mulher que não deseja levar a gravidez adiante pode abortar até a 12ª semana, enquanto no caso de ter sido vítima de estupro tem o direito de abortar até a 14ª semana.

Na Suécia, esse direito se estende até a 18º semana, enquanto na Noruega é permitido em todos os casos até a 12ª semana e precisa de autorização judicial depois disso; mas, em geral, os países onde o aborto é legalizado permitem que a gravidez seja interrompida no primeiro trimestre.

O que importa é que a lei desses países garantiu a autonomia das mulheres e reduziu drasticamente (até zerou) a morte de mulheres por aborto. O Brasil poderia seguir por esse caminho. De nada adianta o Brasil almejar o IDH da Finlândia, Suécia e Noruega e ter leis do Paquistão.

“E quem é contra o aborto, como fica?”

É contra o aborto? Não faça um. Legalizar o aborto não o tornará obrigatório. Quem acha que é pecado, vai poder continuar achando. A diferença é que quem precisar de um aborto vai poder fazer de forma segura.

“Onde posso saber mais sobre o aborto legal?”

Tem muitas outras informações reunidas no site 28 dias pela vida das mulheres e vários links para outros textos sobre o assunto no tumblr #AbortoLegal. Se procura a posição de um especialista, pode saber o que pensa o Dr. Drauzio Varella aqui e aqui. Você também pode ouvir histórias de mulheres clandestinas neste documentário.

A sua opinião sobre isso vai continuar não importando, porque as mulheres vão abortar independente de você ser contra ou a favor. Aborto não é questão de opinião, como já escreveu a Clara aqui.

Mas que essa opinião, pelo menos, não esteja baseada em desinformação e preconceito. Porque um assunto tão sério não pode ser debatido no nível quinta série “é fácil ser a favor do aborto depois que já nasceu”.

Ter um pouco de empatia e bom senso, além de não custar nada, mostra que fomos além de um embrião mal desenvolvido e que evoluímos como pessoa. E só com empatia e bom senso seremos capazes de construir uma sociedade mais humana – e que também reconheça mulheres como tal.

“O que diz a biologia?”

Para a biologia a vida é única e continua desde a separação feita após o big bang entre os seres BIOTICOS (vivos) e ABIOTICOS (não vivos). Nessa visão uma bactéria é vida igualmente ao ser humano o que leva nossa discussão a questionar quando um ser vivo é dotado dos direitos especiais que a nossa sociedade da aos humanos.

“O que diz a Filosofia?”

Para a filosofia, uma vida se torna um individuo a partir do momento que o mesmo possui mente e interesses, ou seja, uma mente ativa e capaz de fazer proposições, interpretações e registros no meio que a cerca.

“O que diz a embriologia?”

O habitat de uma consciência/mente com todas essas capacidades só pode ser um sistema nervoso complexo e saudável como é visto nos seres humanos, únicos animais que possuem essas capacidades, diferentemente dos outros que apenas respondem a padrões ou instintos.

“Embriões e individualidade”

Vários estudos nos mostram que em media o sistema nervoso e cérebro de embriões apenas são ativados em períodos acima dos quatro meses de gestação, e o primeiro meio de contato do embrião com o mundo exterior seria o tato, surgindo apenas após o terceiro mês o que nos leva a concluir que embriões abaixo de terceiro mês não são seres conscientes, ou possuidores de interesses, portanto, não são indivíduos que devam receber os mesmo direitos dos outros.

O que diz a ciência em geral?”

A ciência não diz com certeza quando começa a consciência’

É de se concordar, até porque esse não é o trabalho da mesma, ela apenas testa hipóteses e nos apresenta evidencias, deixando a cargo de outras áreas como a sociologia e a filosofia para que possamos interpretar e aplicar os conhecimentos de forma satisfatória na sociedade.

“O aborto é contra a dignidade da pessoa humana?”

Como mostrado pela argumentação, tratar essa primeira fase da vida humana como igual às outras fases é um erro, pois não há característica fundamental da individualidade que é a mente, logo não existe o que se discutir em dignidade humana já que não é um individuo humano.

Não é lógico tratar o zigoto como humano complexo já que o mesmo não possui a característica principal que é a consciência.

“Então eu posso matar alguém que esteja embriagado ou inconsciente sob efeito de drogas?”

Obvio que não, comparar alguém que tem ou já teve uma mente completa e em pleno funcionamento a algo que nunca teve é um absurdo da falácia da falsa analogia.

“O embrião vai se tornar humano, logo já deve ter direitos”

O espermatozóide também poderá se tornar humano, o ovulo poderá, até o sexo resulta em seres humanos, vamos proibir o sexo e a masturbação também?

“O Estado laico e o aborto”

Um dos maiores argumentos contra a legalização do aborto é o direito à vida. Entretanto, esse direito divide-se em duas facetas: o direito à vida constitucional, garantido na nossa Constituição Federal vigente, e o direito à vida de cunho religioso.

Nesta parte do trabalho, não falaremos sobre o direito à vida constitucional e como o aborto não infringiria tal garantia fundamental. Todavia, neste momento falaremos sobre o direito à vida de cunho religioso, e demais argumentos relacionados à dogmas religiosos, uma vez que essa questão é um dos maiores empecilhos à descriminalização do aborto.

A Bancada Evangélica por exemplo, por meio do Estatuto do Nascituro, busca fazer da prática do aborto um crime hediondo em sua totalidade, inclusive abominando as exceções já legalizadas. O Estatuto do Nascituro é um projeto de lei datado de 2005 que visa garantir proteção integral ao nascituro, tendo sido proposto pelos Deputados Osmânio Pereira e Elimar Máximo Damasceno. O projeto também visa proibir a pesquisa com células tronco embrionárias no país.

Apesar de o projeto original ter sido arquivado em 31 de janeiro de 2007, está tramitando outro projeto de lei semelhante datado também de 2007.

Tais projetos de lei têm sido alvo de muitas discussões e críticas, principalmente por resultar na proibição do aborto, em qualquer situação, pois considera que a vida humana existiria desde a concepção, adotando, pois, a Teoria da Concepção.

Ora, antes de analisar qualquer argumento religioso a respeito do tema, cumpre salientar o que vem a ser o Estado laico.

Primeiramente, Estado laico não é um estado ateu. O Estado brasileiro, inclusive, é um Estado teísta, pois admite a existência de uma ou mais divindades. Todavia, ainda que mencione "a proteção de Deus" no preâmbulo da Constituição Federal, o Estado brasileiro não adota nenhuma religião como sendo a religião oficial. Ou seja, ser um Estado teísta é diferente de ser um Estado laico.

Estado laico, também conhecido como Estado secular, tem como princípio a imparcialidade em assuntos religiosos, não apoiando ou discriminando nenhuma

religião. O Estado laico garante a liberdade de culto religioso, ao mesmo tempo que garante a não interferência de nenhum culto religioso em matérias sociopolíticas, econômicas e culturais.

Ou seja, ao mesmo tempo que o Estado laico garante a liberdade religiosa a qualquer cidadão, também garante que nenhuma religião influenciará as decisões tomadas pelo Estado. Se todos os cidadãos possuem liberdade religiosa, isso também significa que não se pode impor uma religião sobre a outra, bem como não pode-se impor dogmas de religiões majoritárias sobre as religiões minoritárias dentro de um Estado laico. Exatamente por essa razão é que o Estado, em suas decisões, deve ser completamente neutro no campo religioso.

Isso também significa que as leis de um Estado laico não podem sofrer influência de nenhuma religião. As leis se aplicam a todos os cidadãos, e como se poderia impor uma lei fundamentada em dogmas de uma religião a todos os cidadãos se esse mesmo Estado deve garantir a liberdade religiosa?

O Brasil é oficialmente um Estado laico, pois a Constituição Federal e outras legislações preveem a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas. No artigo da Constituição Brasileira (1988) está anotado: “VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."

Todavia, é no mínimo curioso que o Brasil possua tanta influência religiosa em suas decisões estatais, sendo, pois, majoritariamente influenciado pelos dogmas cristãos, estes divididos principalmente em duas vertentes: o catolicismo e o protestantismo.

Ora, uma vez que o Brasil é oficialmente um Estado laico, não se faz plausível que nenhum argumento religioso, seja de qual religião for, tenha qualquer influência sobre uma questão que será imposta a todos os cidadãos.

Por esse ponto de vista, não há que se falar em vontade de Deus, em presente de Deus, ou mesmo em planos de alguma divindade. Qualquer argumento de cunho religioso deve servir, única e exclusivamente, para fundamentar decisões pessoais, a título de convicção íntima, mas sem o poder de imposição a outras pessoas.

Não obstante, cumpre salientar que a religião não influencia em absoluto a decisão sobre a prática do aborto, apesar de abominá-la, de forma geral. De acordo com Pesquisa realizada pela Agência Ibope Inteligência, e veiculada pela Universidade de Brasília (UnB), 65% das mulheres que abortam seriam católicas e 25% seriam protestantes, conforme desmonta pesquisa da Universidade de Brasília.

Obviamente, o vultoso número de mulheres religiosas que praticaram aborto se dá em razão da proporção de mulheres religiosas no país. Todavia, os dados servem para demonstrar que, apesar de suas religiões abominarem a prática do aborto, essas mulheres recorrem a uma prática ilícita, correndo o risco de serem responsabilizadas penalmente ou, ainda pior, de perderem suas vidas em abortos clandestinos, além da óbvia reprovação de suas religiões. Ou seja, os dados demonstram que a religião não influencia a decisão sobre a prática do aborto.

Cumpre salientar, ainda, a dificuldade em se estabelecer estatísticas quanto aos números de abortos realizados no país, bem como ao número de mortes em decorrência de abortos clandestinos. Também encontra-se enorme dificuldade em traçar um perfil das mulheres que abortam no Brasil, em razão de que muitos abortos são praticados à surdina, em clínicas clandestinas, ou mesmo no âmbito residencial, de forma que os casos de que se tomam ciência são poucos. Logo, os dados são subestimados. Isto é, o número real de abortos realizados com certeza é muito superior ao demonstrado em estudos, o que é preocupante, e será melhor abordado no capítulo sobre a Saúde Pública.

A ilegalidade do aborto por questões religiosas compromete a laicidade do Estado, bem como os direitos inerentes à democracia. É sabido que os argumentos religiosos não são os únicos argumentos contra a descriminalização do aborto (razão pela qual se há de fazer mais dois capítulos sobre o tema), mas o que não se admite é que um Estado que se diz laico se mantenha alienado ao reconhecimento do direito legal à interrupção da gravidez acuado por grupos religiosos, recusando a analisar e aprovar mudanças na legislação sobre o aborto que atende aos interesses públicos.

Desta forma, resta claro que o Estatuto do Nascituro é uma aberração jurídica, totalmente contrária à democracia e à liberdade que tanto se preza em nossa Constituição Pátria. Observa-se, notoriamente, que o Estado brasileiro tem disseminado referências, valores e dogmas religiosos, sobretudo os dogmas cristãos, o que representa um retrocesso ao Estado Democrático de Direito. Garantir a liberdade de culto religioso exige a neutralidade do Estado com relação aos valores das diferentes religiões. Privilegiar os valores de uma é impor estes aos valores das demais, bem como a quem não possui nenhuma religião. É, inclusive, um desfavor às minorias, haja vista que acaba por se impor valores das religiões majoritárias aos demais.

A religião é um direito de todo cidadão! Praticar sua religião, reunir-se em culto religioso, bem como expressar suas crenças é um direito de todos! Ao mesmo tempo, a religião deve se submeter ao pacto democrático, e justamente em razão da liberdade religiosa é que nenhuma religião deve se misturar ao Poder do Estado, seja ele Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Dessa forma, torna-se totalmente inválido o argumento religioso, seja oriunda de qualquer religião, a respeito da descriminalização do aborto. E não se deve admitir, no Estado laico brasileiro, que qualquer direito ou decisões estatais sejam tolhidos por grupos religiosos, sejam eles maiorias ou minorias.

“A prática do aborto sempre existiu?”

A prática do aborto sempre existiu, em todos os tempos, em todas as sociedades, com métodos e técnicas que variaram, desde os mais rudimentares e folclóricos (uso de ervas consideradas “abortivas”, auto-aplicação de meios para destruir o feto, etc) até os científicos. (WEREBE, 1998, p.52).

A questão do aborto vem sendo debatida ao longos das eras, no entanto, é sempre atual polêmica, complexa e envolve aspectos da mais alta indagação, já que, a discussão engloba campos distintos, tais como: a ética, a moral, a medicina, o direito, a religião, os costumes e a filosofia.

Giza-se, que os mais remotos apontamentos de que se tem notícias da prática de métodos abortivos foram descobertos na China, ainda no século XXVIII antes de Cristo.

No desenrolar da história da humanidade inúmeros povos estudaram e discutiram a problemática do aborto. Dentre eles estavam Israelitas (no século XVI antes de Cristo), Mesopotâmicos, Gregos e Romanos, mas limitavam-se a compor considerações e críticas de cunho inteiramente moral (MATIELO, 1996, pg. 11).

Afirma Matielo, 1996, pg. 11, que no período da Antigüidade, “Hipócrates, o grande gênio da incipiente medicina, estudou todo o quadro clínico do aborto, estendendo ainda suas preocupações ao tratamento e aos métodos para induzi-lo”. No entanto, sua atitude, choca-se com o clássico juramento do estudioso desta área, os quais são até hoje, orgulhosamente repetido pelos formandos das Faculdades de medicina em todo o Mundo1.

A verdade é que os povos primitivos não previam o aborto como um ato criminoso, no entanto, posteriormente, quando o faziam atribuíam a ele severas punições. A aceitação do aborto como exceção à regra geral da proibição esta revestida de norma oral ou legal - surgindo com extrema raridade em algumas legislações antigas, mas impreterivelmente vinculadas ao preenchimento de rigorosos requisitos, já previamente determinados (Matielo, 1996, pg. 12).

Contudo, constatou-se que o aborto sempre foram praticadas em todo o mundo, e embora “reprovadas pela grande maioria das civilizações, em determinadas épocas foi aceita sob o pretexto de que servir para controlar o crescimento populacional”2 - situação esta que naquela época preocupava diversos estudiosos.

Seus primeiros defensores pretendiam proteger não somente o ser em formação, mas também a gestante e a própria sociedade3.

“O Talmud4, não fez qualquer referência ao aborto, posição esta também adotada por outro respeitável documento da época, denominado Pentateuco” (Matielo, 1996, pg. 12).

Porém, a Bíblia em suas sagradas escrituras, elenca punições a quem praticar ou for complacente com a prática de manobras abortivas. Conforme traz o livro do Êxodo (no capítulo XXI, versículos 22 e 25):

“Se alguns homens renhirem, e um deles ferir mulher grávida, e for causa de que aborte, mas ficando ela com vida, será obrigado a ressarcir o dano segundo o que pedir o marido da mulher, e os árbitros julgarem. Mas, se o desfecho desta situação for à morte dela, dará vida por vida. Olho por olho, dente por dente, pé por pé. Queimadura por queimadura, ferida por ferida, pisadura por pisadura”. Alguns doutrinadores afirmam que as palavras acima transcritas – encontradas nos textos da Bíblia, constituem reflexo estatuído no Código de Hamurabi, pois este, considerado um dos mais antigos diplomas jurídicos, já previa indenizações em casos de aborto provocado, cujo valor variava conforme as conseqüências geradas por este. Pesava-se também se a mulher era livre ou escrava, nesta o valor a indenizar era menor limitando-se a uma quantia paga a seu senhor, já em relação àquela o valor de ressarcimento era bem maior, onde a reparação do dano poderia até mesmo dar-se com a morte de uma filha do provocador do abortamento (Matielo, 1996, pg. 12 e 13).

Assim sendo há um ponto de ligação entre ambas as legislações, eis que, tanto na Bíblia como no Código de Hamurabi, já na Antigüidade preocupavam-se bem menos com o aborto propriamente dito e muito mais com o ressarcimento ou compensação do dano por este causado.

O Egito antigo também buscava uma solução pertinente em relação ao aborto. Contudo, posteriormente, no Código de Manu, aplicado também na Índia, foi cogitada a prática do aborto como sendo um ato de cunho ilícito. Sendo que,

(...) se dele resultasse a morte de gestante pertencente à casta dos padres, o responsável sofreria castigos como se houvesse ceifado a vida de um “Brahmane”, sendo este submetido a penas corporais que, em grau máximo, levariam à morte (Matielo, 1996, pg. 13).

Os Assírios puniam severamente a prática do aborto, aplicando pena de morte a quem o praticasse em mulher que ainda não tivesse filhos. Puniam também as mulheres que se submetessem as manobras abortivas, sem o consentimento de seus maridos, consistindo a referida punição na empalação5, a qual resultava sempre em morte (Matielo, 1996, pg. 13).

Na Pérsia o código de conduta6 da população encarava a questão do aborto do seguinte modo: se a jovem, por vergonha do mundo, destrói seu gérmen, pai e mãe são culpados; ambos partilharam do delito e serão punidos com morte infamante (Matielo, 1996, pg. 13). Assim, se percebe a substancial distinção entre o dispositivo citado e as demais previsões da época, nas quais predominavam somente castigos as mulheres que praticassem manobras abortivas, a fim de ceifar a vida do nascituro, ou a quem se auxilia. Já os persas adotavam um sistema de repressão familiar, onde não só a jovem era punida, mas também seus pais eram igualmente responsabilizados. Aqui pai, mãe e filha eram submetidos à execração pública e, por fim, eram executados (Matielo, 1996, pg. 13).

Doutrinadores desta época chegaram ao extremo de aconselhar, a prática ilimitada do aborto. Esta orientação logo foi reprimida através da intervenção do Poder Legislativo, que atuou no âmbito de criar leis que salvaguardassem os interesses do pai (que na maioria das vezes desconhecia o fato a gravidez) e da sociedade como um todo. No entanto, ressalta-se que quando a gestação acorresse fora do matrimônio ambos os povos mencionados continuaram a aconselhar a gestante a realizar o aborto (Matielo, 1996, pg. 14).

Matielo, 1996, pg. 14 afirma que:

Renomados estudiosos Antigos, como Aristóteles e Platão, pregavam a utilidade do aborto como meio conter o aumento populacional. Destarte, Aristóteles sugeria que fosse praticado o aborto antes que o feto tivesse recebido sentidos e vida, sem, especificar, contudo, quando se daria este momento. Sócrates, também admitia aborto, sem outra justificativa que não a própria liberdade de opção pela interrupção da gravidez.

Giza-se, que o início da civilização romana, a punição em relação ao aborto assumiu caráter privado, já que o poder familiar, ou “pater familiae, - expressão que designava o pai, como o chefe da família -, atribuía a este o poder absoluto sobre os filhos, inclusive daqueles que ainda estavam por nascer. Aqui, caso a esposa procurasse abortar sem o consentimento do esposo, este poderia puni-la severamente, até mesmo com a morte (Matielo, 1996, pg. 14).

Já no período da República Romana, o aborto foi considerado um ato imoral, todavia teve larga utilização entre as mulheres, principalmente entre aquelas que se preocupavam com a aparência física, o que neste período histórico possuía uma grande importância no meio social (herança do tempo do Império). Assim sendo, cresceu monstruosamente o número de abortos a ponto dos legisladores passarem a considerá-lo um ato criminoso. Como conseqüência a Lei Cornélia punia a mulher com pena de morte se esta consentisse com a prática abortiva. Já em relação a quem praticasse o ato, aplicava-se a mesma sanção, com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse em decorrência das manobras abortivas nela praticadas (Matielo, 1996, pg. 14).

Posteriormente, surgiu o cristianismo que modificou vertiginosamente a visão que existia até então a respeito do aborto. Pois, juntamente com o nascimento do cristianismo vieram à tona diversos prismas na conceituação do aborto e a crença de que o homem possuía uma alma, e que esta era imortal. Narra Matielo, 1996, pg. 15 que “além do mais, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, não deveria então, ter o poder de vida e morte sobre os demais, atributo este exclusivamente do Criador”.

O Cristianismo de um modo geral sempre foi contra a pratica de manobras abortivas. Contudo, esta infindável discussão estabeleceu-se entre os filósofos cristãos, os quais estavam mais preocupados a reforçar seus pontos de vista pessoais do que com a própria substância das divergências.

De qualquer sorte, estas residiam fundamentalmente na questão de possuir ou não o feto uma alma dada por Deus. A questão passou a versa sob duas correntes distintas, a primeira afirmava que o feto só adquiria alma no momento em que se separasse completamente do corpo materno, isto é, após findo o parto. A essa exigência acrescia-se que o nascente respirasse, pois a alma entraria em seu corpo, no exato momento. A Segunda corrente por sua vez, afirmavam que o nascituro recebia proteção divina desde o momento da concepção, sendo assim, contrárias as leis permissivas de abortamento. Um renomado pensador desta época, Tertuliano, sustentava que o ser em formação tinha absoluto direito ao batismo, sem o qual não poderia salvar-se para a eternidade nem ingressar no (Matielo, 1996, pg. 15).

No período da civilização romana pré-Cristianismo7, o existir, destarte, a satisfações materiais, o que instigava o egoísmo e suas nefastas conseqüências. Valoravam-se os homens segundo a aparência física, a qualidade intelectual e o status social.

O Cristianismo procurou alterar radicalmente esta triste realidade, condenando a divisão em classes sociais de toda ordem. Dentro desta mesma pretensão se enquadrou o combate radical ao aborto e a insolúvel interrogação a cerca da alma humana.

Embebidos na ânsia de achar resposta para esta difícil indagação, houve quem deu asas a uma teoria, cuja pregação enveredava-se para a conveniência de se diferenciar, para fins de aborto, os fetos em: animados - eram aqueles que possuíam o corpo praticamente formado - e inanimados - eram aqueles cujas partes do corpo ainda não estavam formadas, não se podendo distingui-las. Este não possuiria alma, e, portanto, não gozava de ardorosa defesa como àquele, que por sua vez, possuía alma e, portanto, não deveria sofrer nenhuma agressão, embora fosse veementemente desaconselhada à prática de agressões ao feto inanimado (Matielo, 1996, pg. 15).

Ultrapassada a fase das severas discussões, chegou-se a conclusão de que o feto merecia proteção desde a sua concepção, existindo a obrigatoriedade de se resguardar o nascituro e seu direito a vida, pois sua alma já existiria desde o instante da união do masculino com o feminino.

No fim da idade média, consoante os ensinamentos de Barchifontaine, 1999, pg. 16: “Santo Tomás de Aquino, baseado em conceitos biológicos da época, defendeu a tese de que a animação se dava para o homem em apenas quarenta dias após a concepção, e para a mulher em oitenta dias”. E, fundamentado nesta teoria o aborto passou a ser permitido, nestas condições, visto que o feto ainda não seria um ser humano. Ainda assim, a Igreja Católica não o aprovava por destruir o elo entre a procriação e o sexo8.

O conceito acima citado predominou até meados do século XIX, quando foi aceita a teoria do homúnculo9 e a partir de então o aborto foi terminantemente proibido. De modo que, mesmo quando a vida da gestante corria perigo vital dava-se preferência ao feto, pois se baseavam no argumento de que a mãe já havia recebido o sacramento do batismo, e assim, tinha a possibilidade de alcançar o Reino dos Céus10 (Barchifontaine, 1999, pg. 16)

Barchifontaine, 1999, pg. 17 denota que:

No final do século XIX e no início do século XX, surgiu na Europa, com mais força na Inglaterra e França, movimentos feministas, preconizando a anticoncepção e defendendo o direito da mulher ao aborto. Entretanto, a partir da década de 20, nos países escandinavos e socialistas, houve flexibilidade maior na legislação. Na Rússia, com a Revolução de 1917, o aborto deixou de ser considerado crime, legislação que influenciou os demais países socialistas nos anos de 50.

A Suécia e a Dinamarca, países predominantemente protestantes, por volta de 1930, conquistaram com menor dificuldade que os países católicos uma lei a cerca do aborto, embora esta apresentasse restrições.

Nos demais países do Ocidente, explica Maria Carneiro da Cunha, “as leis mais liberais datam do final da década de 60 como a lei inglesa de 1967, e a década de 70, quando o aborto se uma questão política, popularizando as opiniões, com partidos conservadores e democratas-cristãos se opondo nos parlamentos e partidos socialistas, social-democratas e comunistas, a favor”. As manifestações foram tão significativas, que conseguiram a mudar a legislação da Itália sobre o aborto, lugar onde a Igreja Católica tem sua sede e seu representante máximo. E, essa luta política é conseqüência da evolução dos costumes sexuais e do novo papel que as mulheres vieram adquirindo a partir dos anos 60 na sociedade, Na qual passaram a ter uma participação mais ampla e a brigar por seus direitos, dentre eles o de controle sobre seu próprio corpo. (Barchifontaine, 1999, pg. 17).

Nos dias atuais há poucos países onde o aborto é terminantemente proibido. O número de legislações mais brandas vem crescendo com rapidez, principalmente nas duas últimas décadas.

Acrescenta-se que seja ou não, o aborto, permitido pelo ordenamento jurídico (o qual é variável através dos tempos), ele encontra-se no seio de todas as civilizações, desde os primórdios até os dias atuais. Devendo-se ter em mente, que esta é uma temática que acompanhou todos os passos trilhados pela história da humanidade, e certamente acompanhará para sempre sua evolução. Pois, o aborto fere intimamente todos os indivíduos por possuir como escopo a discussão sobre a própria vida do Homem.

ARGUMENTOS JURÍDICOS - PRÓ-ABORTO

INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ E O CÓDIGO CIVIL

LIVRO I Das Pessoas TÍTULO I Das Pessoas Naturais

Capítulo I

Da Personalidade e da Capacidade

Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

O direito positivo brasileiro protege o direito do nascituro desde a concepção. O que significa essa proteção? Quais as implicações advindas dessa determinação legal? Em primeiro lugar é importante que tenhamos definido o termo “concepção”. Se consultarmos um dicionário da língua portuguesa vai encontrar a definição do substantivo concepção como o ato de conceber, de gerar, e ainda, seu sentido biológico como o conjunto de fenômenos que levam à formação do ovo. E é essa segunda definição, a definição da biologia, que nos importa para que saibamos a partir de que momento o legislador considera a existência do sujeito de direitos.

Biologicamente, o momento da concepção é o momento em que o gameta masculino encontra e fecunda o gameta feminino. Para a lei civil, neste momento começa a existência do sujeito de direito e se nascer com vida adquirirá personalidade jurídica material. Não importa aqui se a fertilização é natural ou assistida. Trataremos então da lógica jurídica para a criminalização do aborto em nosso ordenamento.

INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ E O DIREITO CONSTITUCIONAL

Não há como discutir a questão da legalização do aborto sem debater o problema da proteção jurídica da vida humana intra-uterina. De fato, se a interrupção voluntária da gravidez implica em eliminação desta vida, é preciso verificar se, e até que ponto, ela recebe proteção da ordem constitucional brasileira . Neste particular, a fundamentação não pode ser construída a partir de pré compreensões religiosas ou metafísicas particulares, como assentado acima. Nosso tema deve ser examinado com recurso a argumentos jurídicos, científicos e de moralidade laica, e não a partir de dogmas de fé. Portanto, não faz nenhum sentido buscar o equacionamento da questão do aborto levando em consideração, por exemplo, o suposto momento de implantação da “alma” no feto . A tese que aqui se defenderá é a de que a vida humana intra-uterina também é protegida pela Constituição, mas com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já nascido. Sustentar-se-á, por outro lado, que a proteção conferida à vida do nascituro não é uniforme durante toda a gestação. Pelo contrário, esta tutela vai aumentando progressivamente na medida em que o embrião se desenvolve, tornando-se um feto e depois adquirindo viabilidade extra-uterina. O tempo de gestação é, portanto, um fator de extrema relevância na mensuração do nível de proteção constitucional atribuído à vida pré-natal. Aliás, a idéia de que a proteção à vida do nascituro não é equivalente àquela proporcionada após o nascimento já está presente, com absoluta clareza, no ordenamento brasileiro. É o que se constata, por exemplo, quando se compara a pena atribuída à gestante pela prática do aborto - 1 a 3 anos de detenção (art. 124 do Código Penal)-, com a sanção prevista para o crime de homicídio simples, que deve ser fixada entre 6 e 20 anos de reclusão (art. 121 do mesmo Código). Trata-se, por outro lado, de noção fortemente arraigada no sentimento social – mesmo para os segmentos que reprovam a liberalização do aborto. Tomese o exemplo do aborto espontâneo: por mais que se trate de um fato extremamente doloroso para a maioria das famílias, o evento não costuma representar sofrimento comparável à perda de um filho já nascido, pois a percepção geral é a de que a vida vale muito mais depois do nascimento. E esta crença também encontra fundamentos científicos, diante da constatação de que, pelo menos até a formação do córtex cerebral - que só acontece no segundo trimestre de gestação -, não há nenhuma dúvida sobre a absoluta impossibilidade de que o feto apresente capacidade mínima para a racionalidade. Antes disso, o nascituro não é capaz de qualquer tipo de sentimento ou pensamento, pois, como ressaltou Maurizio Mori, “o córtex constitui o substrato biologicamente necessário do qual emerge a novidade do nível cultural-racional”, sem a qual, nas palavras do autor italiano, não existe senão a “naturalidade do mundo orgânico” . Por todas estas razões, afirma-se que o nascituro, embora já possua vida, não é ainda pessoa. Isto, frise-se bem, decorre não apenas da lei. Recorde-se, no particular, que o Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer, logo no seu art. , que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direito do nascituro”. Mas é claro que se a legislação ordinária negasse personalidade a quem é pessoa – como no passado se fazia com os escravos – ela seria inválida, por manifesta inconstitucionalidade. Isto porque, o primeiro direito humano é o que cada indivíduo tem de ser tratado e considerado como pessoa; um verdadeiro “direito a ter direitos”, se quisermos tomar emprestado a célebre fórmula arendtiana . Neste ponto, cumpre esclarecer que falar em vida humana e em pessoa humana não é a mesma coisa. Indiscutivelmente, o embrião pertence à espécie homo sapiens, sendo, portanto, humano. Por outro lado, embora habite o corpo da mãe, ele, obviamente, não se confunde com as vísceras maternas, ao contrário do que afirmavam os antigos romanos. Possui o embrião identidade própria, caracterizada pelo fato de que constitui um novo sistema em relação à mãe, e é dotado de um código genético único – ressalvado o caso dos gêmeos homozigóticos – que já contém as instruções para o seu desenvolvimento biológico. Trata-se, portanto, de autêntica vida humana. Não obstante, não é o feto ainda pessoa. É pessoa in fieri, pessoa potencial, mais ainda não é pessoa, da mesma forma que uma semente pode ser qualificada como árvore em potência, mas nunca como árvore. Como vida humana, e como projeto de pessoa, merece já o nascituro a proteção do ordenamento e da Constituição. Não, porém, o mesmo grau de proteção que se confere à pessoa.

ABORTO E O DIREITO PENAL - Crimes contra a vida

Homicídio- Doloso (simples, privilegiado, qualificado, circunstanciado) Culposo (simples, circunstanciado, perdão judicial)

Conceito de homicídio: É a supressão da vida extrauterina praticada por uma pessoa contra a outra. (conceito dominante: Nucci, Masson, Greco)

Logo, verifica-se, nesse breve conceito, que a supressão da vida por si só não ensejará como crime de homicídio. Ou seja, suprimir a vida intrauterina não se rotula como o delito de homicídio, mas sim outras capitulações.

Quando se inicia a vida extrauterina?

Com o trabalho de parto (dilatação do útero ou a incisão das camadas abdominais).

Conceito de Aborto: interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. (Mirabete – doutrinador direito penal).

Quando se inicia a gravidez?

Se inicia com a Nidação (implantação do óvulo fecundado no útero). A nidação ocorre após 12 dias. Por isso que a pílula do dia seguinte não é abortiva, por não ter ocorrido a nidação.

Espécies de aborto:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de um a três anos.

(Vide ADPF 54) (Vide ADPF 442)

Ø Autoaborto

Aborto provocado por terceiro

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. (Vide ADPF 54) (Vide ADPF 442)

Ø A gestante pratica aborto em si mesma ou consente: detenção 1-3 anos.

Ø Quem pratica o aborto nesta gestante com consentimento: reclusão 1-4.

Ø Sem o consentimento: Reclusão 3-10. (art. 124, 126 e 125 respec.)

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos.

Ø Sem consentimento.

Vítimas que não prestam consentimento válido: (sem consentimento)

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Forma qualificada do aborto

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Ø Aplica-se o 125 ou 126 aumentado 1/3 quando houver lesão grave.

Ø E duplica qundo houver morte. (crime preterdoloso: dolo em abortar e culpa na lesão/morte)

ABORTO INIMPUTÁVEL

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Entendimento STF:

Aborto do cérebro anencéfalo

Ø ADPF 54 - Inconstitucionalidade Art. 124, 126 e 128, 00I e 0II. (interrupção da gravidez de feto anencéfalo)

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) - 54

Origem:

DISTRITO FEDERAL

Entrada no STF:

17/06/2004

Relator:

MINISTRO MARCO AURÉLIO

Distribuído:

17/06/2004

Partes:

Requerente: CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE - CNTS (CF 103, 0IX) Requerido :

Dispositivo Legal Questionado

Art. 124, 126 e 128, 00I e 0II, do Decreto-Lei nº 2848, de 07 de

dezembro de 1940 (Código Penal).

Resultado da Liminar: Decisão Monocrática - Deferida

Resultado Final: Procedente

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli.

- Plenário, 12.04.2012.

- Acórdão, DJ 30.04.2013.

Data de Julgamento Final

Plenário, 12.04.2012

Data de Publicação da Decisão Final

Acórdão, DJ 30.04.2013

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF) 442, AJUIZADA PELO PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL)

Alega haver controvérsia relevante referente aos artigos 124 e 126 CP.

O pedido é de Declaração da não recepção da CF/88 dos dispositivos citados acima que datam de 1940.

Ministério da Saúde (Doutora Maria de Fátima)

Mortalidade materna:

Causas: hipertensão, hemorragia, infecção e abortamento.

1 a cada 5 mulheres até os 40 anos já abortaram.

Independentemente da classe social. O que depende de classe social é a gravidade e a morte. Quem mais morre por aborto são as mulheres negras, as que possuem a escolaridade até o fundamental, isto é, atinge as mais vulneráveis.

O procedimento inseguro do aborto leva a mais de 200 mil hospitalizações no SUS por ano. Isso gera 15 mil complicações e 5 mil complicações extremamente graves (a quase morte). E 203 mortes.

Isso gera uma superlotação, sobrecarrega a OMS, além dos altos custos.

CASO EXEMPLO

Mulher de 26 anos, reside no Espírito Santo, foi encontrada em casa com febre, trêmula, por uma prima. Ninguém sabia que ela estava grávida e ela também não contou. Esse é o problema. Assim ela chega na maternidade com a idade de gestação de 17 semanas e 3 dias com quadro clínico de aborto infectado. Essa paciente é internada e submetida a saída de restos placentários. No ultimo dia do ano de 2015 ela necessitou de homosfusão, porque havia perdido muito sangue. Ela evolui para uma quadro complicado, ela entra em cuidados intensivos e mesmo assim ela mantém um quadro de piora com uma disfunção de múltiplos órgãos. Isso faz com que a paciente nesse exato momento, nos cuidados intensivos, ela confessa que havia passado por uma clínica clandestina de aborto. E vai a óbito 10 dias após internação.

O problema é que elas se sentem culpadas pelo ato, que escondem e por isso demora o socorro, e por isso complica, e por isso vai a óbito.

SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Art. 196 que assim dispõe: a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

No Brasil a CF acolhe a saúde como direito fundamental, o que atribui deveres ao Estado e a profissionais do campo para a garantia desse direito. Assim a FBGAGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) entende que os embates morais e religiosos sobre o aborto não podem desobrigar o Estado de garantir o direito fundamental a saúde das mulheres. Menos ainda leva-lo a criminalizar o cuidado médico no exercício desse dever constitucional.

Não é coerente criminalizar uma conduta daquele que, por dever funcional de conhecimento, salvar e proteger mulheres da automutilação, lesões graves ou permanentes, até óbitos.

Tirando as 03 hipóteses legais de interrupção voluntária da gravidez, os médicos (preparados para tal) são impedidos de exercer o dever de respeitar o direito a saúde, a dignidade e a cidadania de todas as mulheres quando solicitadas para orientação.

Por outro lado, há uma decisão proferida pela 1ª turma do STF no Harbeas Corpus nº 124.126, RJ, a inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção do aborto no setembro de 2016 que no caso específico afastou a prisão preventiva de acusados pela prática de aborto.

Pacto de São José da Costa Rica

HARBEAS CORPUS 124.306

Interromper gestação até 3º mês não é crime, decide 1ª Turma do STF em HC

29 de novembro de 2016

A proibição ao aborto é clara no Código Penal brasileiro, mas deve ser relativizada pelo contexto social e pelas nuances de cada caso. Por exemplo, a interrupção da gravidez é algo feito por muitas mulheres, mas apenas as mais pobres sofrem os efeitos dessa prática, pois se submetem a procedimentos duvidosos em locais sem a infraestrutura necessária, o que resulta em amputações e mortes.

Essa é a síntese do voto-vista proferido pelo ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, nesta terça-feira (29/11), no julgamento do Habeas Corpus 124.306. Com o voto de Barroso, a 1ª Turma da corte, por maioria, entendeu que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto. No caso, duas pessoas foram presas acusadas de atuar em uma clínica de aborto. A decisão não é vinculante.

Sobre as prisões — que foram anuladas de ofício porque o HC foi visto como substitutivo do recurso ordinário constitucional —, Barroso destacou não haver razão para mantê-los detidos, pois todos têm endereço fixo, são réus primários e não apresentam riscos à ordem pública ou à instrução criminal. O ministro também ressaltou que os acusados têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto se forem condenados.

Os réus foram presos preventivamente em 2013, mas soltos pelo juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias (RJ). Um ano depois, foram detidos novamente após recurso do Ministério Público estadual à 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RJ. A reforma na decisão motivou questionamento ao Superior Tribunal de Justiça, que não conheceu do pedido de liberdade dos acusados.

Criminalização desproporcional

Já sobre o aborto, Barroso disse que a criminalização de atos como o julgado ferem diversos direitos fundamentais, entre eles, os sexuais e reprodutivos da mulher. “Que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada.”

O ministro também ressaltou a autonomia da mulher, o direito de escolha de cada um e a paridade entre os sexos. Mencionou ainda a questão da integridade física e psíquica da gestante. “Que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez.”

Especificamente sobre a condição social da mulher que decide abortar, Barroso criticou o impacto da criminalização do ato sobre as classes mais pobres. “É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos.”

A criminalização, continuou Barroso, viola o princípio da proporcionalidade por não proteger devidamente a vida do feto ou impactar o número de abortos praticados no país. “Apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro”, disse. “A medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.”

Para impedir gestações indesejadas, em vez da criminalização, Barroso destacou que existem inúmeros outros meios, como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas não têm como sustentá-lo. “Praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.”

LETRA DO HARBEAS CORPUS

INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO EFETIVADA NO PRIMEIRO TRIMESTRE

Em segundo lugar, é preciso examinar a própria constitucionalidade do tipo penal imputado aos pacientes e corréus, já que a existência do crime é pressuposto para a decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do art. 312 do CPP. Para ser compatível com a Constituição, a criminalização de determinada conduta exige que esteja em jogo a proteção de um bem jurídico relevante, que o comportamento incriminado não constitua exercício legítimo de um direito fundamental e que haja proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal.

No caso aqui analisado, está em discussão a tipificação penal do crime de aborto voluntário nos arts. 124 a 126 do Código Penal, que punem tanto o aborto provocado pela gestante quanto por terceiros com o consentimento da gestante. O bem jurídico protegido vida potencial do feto é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. É o que se demonstrará a seguir

Antes de avançar, porém, cumpre estabelecer uma premissa importante para o raciocínio a ser desenvolvido: o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que ser pretende é que ele seja raro e seguro.

VIOLAÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES

1) A relevância e delicadeza da matéria justifica uma brevíssima incursão na teoria geral dos direitos fundamentais. A história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo em face do poder político, do poder econômico e do poder religioso, sendo que este último procura conformar a moral social dominante. O produto deste embate milenar são os direitos fundamentais, aqui entendidos como os direitos humanos incorporados ao ordenamento constitucional

2) Os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes estatais, representam uma abertura do sistema jurídico perante o sistema moral e funcionam como uma reserva mínima de justiça assegurada a todas as pessoas. Deles resultam certos deveres abstenção e de atuação por parte do Estado e da sociedade. Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos fundamentais passaram a ser tratados como uma emanação da dignidade humana, na linha de uma das proposições do imperativo categórico kantiano: toda pessoa deve ser tratada como um fim em si mesmo, e não um meio para satisfazer interesses de outrem ou interesses coletivos. Dignidade significa, do ponto de vista subjetivo, que todo indivíduo tem valor intrínseco e autonomia.

3) Característica essencial dos direitos fundamentais é que eles são oponíveis às maiorias políticas. Isso significa que eles funcionam como limite ao legislador e até mesmo ao poder constituinte reformador (CF, art. 60, § 4º). Além disso, são eles dotados de aplicabilidade direta e imediata, o que legitima a atuação da jurisdição constitucional para a sua proteção, tanto em caso de ação como de omissão legislativa.

4) Direitos fundamentais estão sujeitos a limites imanentes e a restrições expressas. E podem, eventualmente, entrar em rota de colisão entre si ou com princípios constitucionais ou fins estatais. Tanto nos casos de restrição quanto nos de colisão, a solução das situações concretas deverá valer-se do princípio instrumental da razoabilidade ou proporcionalidade.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS AFETADOS

1.1.Violação à autonomia da mulher.

A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana (CF/1988, art. , III). A autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida. Todo indivíduo–homem ou mulher–tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm o direito de interferir.

Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado–isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito–impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?

1.2.Violaçãodo direito à integridade física e psíquica

Em segundo lugar, a criminalização afeta integridade física e psíquica da mulher. O direito integridade psicofísica (CF/1988, art. , caput III) protege os indivíduos contra interferências indevidas e lesões aos seus corpos e mentes, relacionando-se, ainda, ao direito à saúde e à segurança. A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada. Integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação aparatosa a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.

1.3.Violação aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher

A criminalização viola, também, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que incluem o direito de toda mulher de decidir sobres e quando deseja ter filhos, sem discriminação, coerção e violência, bem como de obter o maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade.

O reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos percorreu uma longa trajetória, que teve como momentos decisivos a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994,conhecida como Conferência do Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995, em Pequim. A partir desses marcos, vem se desenvolvendo a ideia de liberdade sexual feminina em sentido positivo e emancipatório. Para os fins aqui relevantes, cabe destacar que do Relatório da Conferência do Cairo constou, do Capítulo VIA a seguinte definição de direitos reprodutivos:“

Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre número, espaçamento a oportunidade de seus filhos e deter informação os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”.

O tratamento penal dado ao tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940,afetaa capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação o indesejada. E mais: prejudica sua saúde reprodutiva, aumentando os índices de mortalidade11maternae outras complicações relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde adequada.

1.4.Violaçãoà igualdade de gênero

A norma repressiva traduz-se, ainda, em quebra d a igualdade de gênero. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequipar ações infundadas, impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina e do seu papel social. Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres13.Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não. A propósito, como bem observou o Ministro Carlos Ayres Britto, valendo-se de frase histórica do movimento feminista, “se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente aborto seria descriminalizado de ponta a ponta”

1.5.Discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres

Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou procedimentos precários primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito. Em suma: na linha do que se sustentou no presente capítulo, a criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis. No próximo capítulo, procede-se, de todo modo, a um teste desproporcionalidade, para demonstrar que, também por esta linha argumentativa, criminalização não é compatível com a Constituição.

2.Violação ao princípio da proporcionalidade.

O legislador, com fundamento e nos limites da Constituição, tem liberdade de conformação para definir crimes e penas. Ao fazê-lo, deverá ter em conta dois vetores essenciais: o respeito aos direitos fundamentais dos acusados, tanto no plano material como no processual; e os deveres de proteção para com a sociedade, cabendo-lhe resguardar valores, bens e direitos fundamentais dos seus integrantes. Nesse ambiente, o princípio da razoabilidade-proporcionalidade, além de critério de aferição da validade das restrições direitos fundamentais, funciona também na dupla dimensão de proibição do excesso e dainsuficiência.33.Cabe acrescentar, ainda, que o Código Penal brasileiro data de 1940. E, a despeito de inúmeras atualizações ao longo dos anos, em relação aos crimes aqui versados–arts. 124 a 128–ele conserva a mesma redação. Prova da defasagem da legislação em relação aos valores contemporâneos foi a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 54,descriminalizando a interrupção da gestação na hipótese de fetos anencefálicos. Também a questão do aborto até o terceiro mês de gravidez precisa ser revista à luz dos novos valores constitucionais trazidos pela Constituição de 1988, das transformações dos costumes e de uma perspectiva mais cosmopolita. Feita esta breve introdução, e na linha do que foi exposto acerca dos três subprincípios que dão conteúdo à proporcionalidade, a tipificação penal nesse caso somente estará então justificada se: (i) for adequada à tutela do direito à vida do feto (adequação);(ii) não houver outro meio que proteja igualmente esse bem jurídico e que seja menos restritivo dos direitos das mulheres (necessidade); e (iii) a tipificação se justificara partir da análise de seus custos e benefícios (proporcionalidade em sentido estrito).

2.1.Subprincípio da adequação

Em relação à adequação, é preciso analisar se e em que medida a criminalização protege a vida do feto. É, porém, notório que as taxas de aborto nos países onde esse procedimento é permitido são muito semelhantes àquelas encontradas nos países em que ele é ilegal16.RecenteestudodoGuttmacher Instituto da Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstra que a criminalização não produz impacto relevante sobre o número de abortos. Ao contrário, enquanto a taxa anual de abortos em países onde o procedimento pode ser realizado legalmente é de 34 a cada 1 mil mulheres em idade reprodutiva, nos países em que o aborto é criminalizado, a taxa sobe para a cada 1 mil mulheres. E estima-se que56milhões de abortos voluntários tenham ocorrido por ano no mundo apenas entre 2010 e 201419.Na verdade, o que a criminalização de fato afeta é a quantidade de abortos seguros, consequentemente, o número de mulheres que têm complicações de saúde ou que morrem devido à realização do procedimento. Trata-se de um grave problema de saúde pública, oficialmente reconhecido. Sem contar que há dificuldade em conferir efetividade proibição, na medida em que se difundiu uso de medicamentos para a interrupção da gestação, consumidos privadamente, sem que o Poder Público tenha meios para tomar conhecimento e impedira sua realização

Na prática, portanto, a criminalização do aborto é ineficaz para proteger o direito ávida do feto. Do ponto de vista penal, ela constitui apenas uma reprovação “simbólica “da conduta. Mas, do ponto de vista médico, como assinalado, há um efeito perverso sobre as mulheres pobres, privadas de assistência. Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoga razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro. Em temas moralmente divise-vos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja–geralmente porque não pode–ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um.39.Portanto, a criminalização do aborto não é capaz de evitara interrupção da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para tutelada vida do feto. É preciso reconhecer, como fez o Tribunal Federal Alemão, que, considerando “o sigilo relativo ao nascituro, sua impotência e sua dependência e ligação única com a mãe, as chances do Estado de protegê-lo serão maiores se trabalhar em conjunto com a mãe”, e não tratando a mulher que deseja abortar como uma criminosa.

Por Murilo Antunes


Referências

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O texto traz apenas a ideia de quem deseja o aborto, não é um texto científico, pois, não apresenta as várias possibilidades para se chegar a um resultado, apenas com estatísticas falaciosas e falsas, pseudo conceitos científicos, pois, se utiliza de argumentos de ONGS abortistas e não faz uma comparação científica verdadeira, digo apenas um exemplo citado, pois o autor diz que a chamada "pílula do dia seguinte", não é abortista, é um erro achar isso, pois, não se aprofundou no assunto, já que há estudos que comprovam que em 50% dos casos pode provocar o aborto, porque dependerá de cada caso e ovulação, assim, O ABORTO DEVE CONTINUAR SENDO CRIME SIM, pois temo uma vida que foi concebida (lembrando, a vida se inicia na fecundação e não na concepção que é algo posterior, o problema é que há autores que confundem como se fossem sinônimos, a concepção ocorre no útero, quando já foi feito a união entre espermatozoide que se fundiu ao óvulo e formou o zigoto, isto é, a própria vida que posteriormente "caminhará ao útero" para ser formado, mas, a vida, o ser, já começou na fecundação). continuar lendo

A mulher tem direto ao próprio corpo sim!!! O que ela não tem, é o direito de dispor sobre a vida do feto que carrega!!! Isso não tem nada com religião!!! Trata-se da defesa do direito a vida e do direito de nascer!! Todos nós tivemos esse direito, senão, não estaríamos aqui debatendo.

O feto é a parte mais frágil, não é um mero objeto que se pode dispor. Deve ser garantido o seu direito de nascer. A mulher tem o direito de escolher ser mãe, contudo, não pode ter o direito de matar a criança que foi gerada e se desenvolve em seu ventre. continuar lendo

Verdade o que você escreveu; eu digo mais, na maioria dos casos, o aborto é utilizado para tentar esconder a devassidão e promiscuidade de muitos, pois, depois de uma noite com qualquer um, se vê grávida e como não foi feito de forma planejada, então, para esconder tal situação inesperada, resolve simplesmente abortar como se um objeto fosse, todos sabemos que há uma conseqüência natural e lógica para quem se relaciona sexualmente, é a possibilidade de gravidez. continuar lendo

Mas se o feto é um ser separadamente da mulher, o aborto seria apenas deixá-lo vir ao mundo mais cedo tirando-o de dentro do corpo dela. Se ele não conseguir sobreviver sozinho, então ele não é um ser tão individual assim. continuar lendo

Ninguém a favor do assalto, mas existindo ou não leis que proíbam, o assalto continua a ser praticado. E continua a matar muitas pessoas. Se é contrário ao assalto, simplesmente não assalte. Mesmo princípio usado para pedir o aborto, não? Se acha que não, qual a diferença?

A questão não é religiosa, mas de aceitação popular. Porque não há candidatos com esta proposta?? Veja a ex presidente Dilma, tão favorável ao aborto, quando em campanha negou de pés juntos legalizar. Motivos? Sabe que a população como um todo rejeita esta proposta.

A maternidade é compulsória e a paternidade não? O curioso é que uma das poucas coisas que de fato leva a pessoa à prisão é justamente o não pagamento de pensão. Ah, mas isto não é paternidade. Bem, mas ter filhos também não quer dizer maternidade.

Homens opinam onde não é chamado? A menos que esteja propondo mudar a pensão de compulsória para OPCIONAL, sim o homem é chamado à responsabilidade, nem que seja por meios legais. Mais ainda, o homem, gostem ou não, participa no momento de fazer, então não vejo motivos para ele não ser chamado na hora de discutir o aborto. Ou, como falei, a menos que estejamos falando em retirar do homem a obrigação do pagamento da pensão, pode ser?

Como tantos pais abandonam filhos? O país tem 200 milhões de habitantes, há cerca de 6 milhões sem registro do pai. Isso dá 3% e partindo do princípio que todas as mães procuraram o homem. Aí vem a pergunta: A mulher não sabe de quem é o filho? Ou por VONTADE própria não quer obrigar o homem a fazer a parte dele (acho errado, pois tem que assumir a responsabilidade sim)?

Que candidatos venham com esta proposta e então mude a Lei. Vou continuar contrário? SIM. Mas o debate estará ocorrendo no lugar correto. O que não pode é o Judiciário entrar onde não há dúvidas para o que está escrito. Aí fica a pergunta: se é o corpo da mulher e por isto ela pode decidir, no caso de pensão, como é o salário do homem, também ele poderá escolher? continuar lendo

Aborto é uma questão social e política, jamais religiosa.
Em minha modesta opinião Aborto é como Pena de Morte, com algumas diferencas:
Não há crime atribuido ao executado, não existe processo penal, apenas um lado tem direito a ser ouvido e o assassino sai livre.
Tempos difíceis estes em que temos tanta informação, liberdades conquistadas mas a Irresponsabilidade continuar lendo