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1 de Maio de 2024

Jurisprudência - STJ - Civil - Sucessão - Cônjuge sobrevivente e filha do falecido - Concorrência - Casamento - Comunhão parcial de bens - Bens particulares

Civil ¿ Sucessão ¿ Cônjuge sobrevivente e filha do falecido ¿ Concorrência ¿ Casamento ¿ Comunhão parcial de bens ¿ Bens particulares ¿ Código Civil, art. 1829, inc. I ¿ Dissídio não configurado ¿ 1. No regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente não concorre com os descendentes em relação aos bens integrantes da meação do falecido. Interpretação do art. 1829, inc. I, do Código Civil ¿ 2. Tendo em vista as circunstâncias da causa, restaura-se a decisão que determinou a partilha, entre o cônjuge sobrevivente e a descendente, apenas dos bens particulares do falecido ¿ 3. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido. (Nota da Redação INR: ementa oficial)

EMENTA

CIVIL. SUCESSÃO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE E FILHA DO FALECIDO. CONCORRÊNCIA. CASAMENTO. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. BENS PARTICULARES. CÓDIGO CIVIL, ART. 1829, INC. I. DISSÍDIO NÃO CONFIGURADO. 1. No regime da comunhão parcial de bens, o cônjuge sobrevivente não concorre com os descendentes em relação aos bens integrantes da meação do falecido. Interpretação do art. 1829, inc. I, do Código Civil. 2. Tendo em vista as circunstâncias da causa, restaura-se a decisão que determinou a partilha, entre o cônjuge sobrevivente e a descendente, apenas dos bens particulares do falecido. 3. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, provido. (STJ ¿ REsp nº 974.241 ¿ DF ¿ 4ª Turma ¿ Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro ¿ Rel. para o acórdão Min. Maria Isabel Gallotti ¿ DJ 05.10.2011)

ACÓRDÃO

Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Ministro Luis Felipe Salomão, conhecendo parcialmente do recurso e, nessa parte, dando-lhe provimento, acompanhando o Relator, e o voto do Ministro João Otávio de Noronha, no mesmo sentido, a Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso especial e, nesta parte, deu-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Lavrará o acórdão a Ministra Maria Isabel Gallotti, nos termos do art. 52, IV, a, do RISTJ. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha e Luis Felipe Salomão (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator.

Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti.

Brasília (DF), 07 de junho de 2011 (data do julgamento).

MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI ¿ Relatora p/ acórdão.

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP) (Relator):

L. L. , menor impúbere representada por sua genitora, C. M. P. L. , interpõe o presente Recurso Especial com fulcro no art. 105, III, alíneas a e c do permissivo constitucional, contra v. acórdão proferido pelo Eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal, cuja ementa assentou:

"CIVIL. SUCESSÃO. CÔNJUGE SUPÉRSTITE CASADO NO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. BENS PARTICULARES DEIXADOS PELO AUTOR DA HERANÇA. PARTICIPAÇÃO COMO HERDEIRO NA SUCESSÃO LEGÍTIMA. - O CÔNJUGE SUPÉRSTITE CASADO NO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL COM O FALECIDO, TENDO ESTE DEIXADO BENS PARTICULARES, ALÉM DE SUA MEAÇÃO, CONCORRE COM OS DESCENDENTES, NA SUCESSÃO LEGÍTIMA, PARTICIPANDO DA TOTALIDADE DO ACERVO DA HERANÇA, CONSOANTE A ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA ESTABELECIDA NO ARTIGO 1829, I DO CÓDIGO CIVIL DE 2002." (f. 254).

Opostos Embargos de Declaração (fs. 269/273), foram eles rejeitados, uma vez inexistente qualquer obscuridade, contradição ou omissão no v. acórdão recorrido (fs. 287/294).

Através da presente via especial, a recorrente, única filha do de cujus e herdeira, alega violação ao artigo 1.829, inciso I, do Código Civil de 2002, além de dissídio jurisprudencial.

Sustenta, em resumo, o desacerto da decisão proferida pelo Tribunal a quo na medida em que, ao modificar a decisão de primeiro grau, permitiu ao cônjuge supérstite, casado em regime de comunhão parcial de bens, concorresse na sucessão legítima participando da totalidade da herança. Entende a recorrente que, além da meação, o cônjuge sobrevivente somente concorre em relação aos bens particulares do de cujus (sic) , conforme decisão interlocutória proferida pela juíza de primeiro grau (fs. 208/210) . Nesse particular, para abalizar sua tese, aponta precedente jurisprudencial do Eg. TJ/RS - Agravo nº 70013227533, utilizando-o como paradigma.

A recorrida, por sua vez, em contrarrazões (fs. 323/338), alega que a norma não restringe o alcance da herança devida ao cônjuge. Aduz que é perfeitamente legal o cônjuge sobrevivente concorrer com o descendente herdeiro sobre todo o acervo da herança. Destaca, ainda, a interpretação sistemática ao art. 1.790, CC, que trata da sucessão entre companheiros, cuja norma conduz ao direito da companheira em receber a herança e sua meação. Permitir tratamentos distintos, com prejuízo ao cônjuge em detrimento da companheira, ofenderia o princípio da isonomia.

Aponta, por fim, a descaracterização do dissenso pretoriano, tendo em vista a não similaridade entre as bases fáticas dos acórdãos confrontados.

O i. Subprocurador-Geral da República, Dr. Antônio Carlos Pessoa Lins, através de r. parecer de fs. 367/372, opinou pelo parcial provimento do recurso especial, assentando a seguinte ementa:

"RECURSO ESPECIAL. SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA. ART. 1829, I, DO CÓDIGO CIVIL. ADEQUADA INTERPRETAÇÃO. - Na hipótese de o autor da herança ter deixado bens particulares, deve o cônjuge sobrevivente concorrer com os descendentes, apenas quanto a estes bens, uma vez que já está preservada sua meação sobre os bens comuns constituídos pelo casal. - Parecer pelo conhecimento parcial e, na parte, pelo provimento do presente recurso especial." .

É, no essencial, o relatório.

EMENTA (VOTO)

DIREITO CIVIL. SUCESSÕES. ORDEM DE VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. CONCORRÊNCIA ENTRE O CÔNJUGE SUPÉRSTITE E DESCENDENTE FILHA EXCLUSIVA DO DE CUJUS. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO FALECIDO. CASAMENTO SOB O REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. EXEGESE DO ART. 1829, INCISO I, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. I - Em razão da incongruência da redação do art. 1.829, inciso I, do CC/02, a doutrina brasileira possui relevantes vozes defendendo correntes distintas acerca da interpretação da sucessão do cônjuge quando casado sob o regime comunhão parcial de bens. II - Ao enfrentar o presente tema, este Colendo Superior Tribunal de Justiça, diante de seu papel de unificador do direito federal, deve manter a integridade do sistema normativo de modo a prevalecer o seu entendimento por ser o intérprete oficial dos enunciados normativos. A Corte Especial deste STJ decidiu que "... o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é." (Corte Especial, AI nos ERESP 644.736/PE, MIN. TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 06.06.2007). III - A jurisprudência desta Eg. Corte de Justiça cada vez mais se firma no sentido de que não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de bens do casamento, de modo que se tenha após a morte, o que, em vida, não se pretendeu. IV - Malfere legislação federal, portanto, a decisão que confere ao cônjuge supérstite, além de sua meação, direitos sobre todo o acervo da herança do de cujus, desrespeitando a autonomia de vontade do casal quando da escolha do regime de comunhão parcial de bens. V - Na nova ordem de vocação hereditária do Código Civil de 2002, o caráter protecionista da lei ao cônjuge sobrevivente não deve ser confundida como um privilégio de modo a prejudicar os demais herdeiros necessários na ordem de sucessão. VI - Na sucessão legítima sob o regime de comunhão parcial de bens, a regra é: ocorrendo o evento morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é garantida a meação dos bens comuns (havidos na constância do casamento). Não concorre ele com os descendentes em relação à herança (bens comuns do falecido), tampouco em relação aos bens particulares, pois o sobrevivo, por força do regime de casamento (comunhão parcial), já encontra-se amparado pela meação. Os bens particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do regime convencionado em vida pelo casal. VII - A máxima que prevalece no direito sucessório é no sentido de "quem é meeiro não deve ser herdeiro", conforme ensinamentos do Professor MIGUEL REALE (Citado por EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, in A Nova Ordem de Vocação Hereditária e a Sucessão dos Cônjuges, RT, 815, São Paulo, Set. 2003. pg. 33). VIII - E excepcional a concorrência entre os descendentes e o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de comunhão parcial de bens com o de cujus , prevista na parte final do art. 1.829, inciso I, do CC/02. Subsiste a concorrência, e tão-somente nessas hipóteses, se inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens particulares, tendo em vista o caráter protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente nessas situações excepcionais. IX - Todavia, na hipótese sub examine , nos estreitos limites estabelecidos pelo pedido em sede de recurso especial, embora entenda como não devidos, a única filha do de cujus, ora recorrente, expressamente pugna para que os bens anteriores do falecido ( particulares ) sejam divididos entre ela própria e o cônjuge sobrevivente, não se tem como obstaculizar essa pretensão em sede recursal, pois o direito lhe é concedido por livre vontade e de natureza renunciável. X - Recurso Especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/AP) (Relator):

A quaestio cinge-se em definir, consoante interpretação do art. 1829, inciso I, do Código Civil Brasileiro , que trata da ordem de vocação hereditária na sucessão legítima, se o cônjuge supérstite, uma vez existindo bens particulares do de cujus , concorre com o descendente na totalidade do acervo da herança ou apenas em relação a esses bens particulares.

Enfrento, em separado, a admissibilidade recursal.

I - Da divergência jurisprudencial:

De início, afasto a alegada divergência. Enquanto o acórdão paradigma afirma a inexistência de bens particulares do de cujus , o acórdão recorrido é claro ao afirmar a existência deles para fins de definição da ordem de sucessão. Desatendida, portanto, a regra do art. 541, parágrafo único, do CPC, porquanto os arestos confrontados não possuem similitude fática.

Não conheço, pois, do recurso pelo dissídio pretoriano. II - Da exegese do art. 1.829, inciso I, do CC/02:

Quanto à interpretação da norma (alínea a), o recurso merece conhecimento, pois preenchidos os requisitos de admissibilidade.

O assunto é extremamente polêmico. A doutrina brasileira possui relevantes vozes defendendo correntes distintas.

Ao enfrentar o presente tema, este Colendo Superior Tribunal de Justiça, diante de seu papel de unificador do direito federal, deve manter a integridade do sistema normativo de modo a prevalecer o seu entendimento por ser o intérprete oficial dos enunciados normativos.

Destaca-se que a Eg. Corte Especial deste STJ decidiu que "... o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é." (Corte Especial, AI nos ERESP 644.736/PE, Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 06.06.2007).

Rendo, pois, minhas homenagens aos ilustres doutrinadores diante de suas relevantes contribuições para a solução da lide. Contudo, em última instância, face a devolução da matéria em sede de recurso especial, cabe a este C. Superior Tribunal de Justiça definir a interpretação da norma em evidência.

Com efeito, o dispositivo legal assim dispõe:

"Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;"

Trata-se, como visto, de ordem de vocação hereditária na sucessão legítima, conforme previsão do Código Civil de 2002.

Nos ensinamentos de SILVIO RODRIGUES, citado por MARIA HELENA DINIZ, "a ordem de vocação hereditária é uma relação preferencial, estabelecida pela lei, das pessoas que são chamadas a suceder o finado." (in Código Civil Comentado, 14ª Edição: Ed. Saraiva, 2009, pg. 1292).

A relação é, portanto, de preferência. Sendo assim, extrai-se a regra de que: "convocam-se os herdeiros segundo tal ordem legal, de forma que uma classe só será chamada quando faltarem herdeiros da classe precedente." (Ob. cit.).

Há, portanto, quatro classes para a sucessão: 1) os descendentes , 2) os ascendentes , 3) o cônjuge sobrevivente e, finalmente, 4) os colaterais .

As classes, repiso, obedecem a ordem legal.

Sucede que o Código Civil de 2002, ao contrário do Código de Beviláqua ( tido este como patrimonialista ), alçou caráter protecionista ao Direito de Família e Sucessões, atribuindo ao cônjuge um privilégio: de concorrer na herança com os descendentes e ascendentes , conforme previsão do art. 1.829, incisos I e II do CC/02. Todavia, condicionou ao preenchimento de requisitos.

A controvérsia dos autos diz respeito ao alcance da palavra "concorrência". Se atinge a herança na sua totalidade ou apenas bens particulares do falecido.

Adianto que a Egrégia 3ª Turma deste Colendo Superior Tribunal de Justiça possui importante precedente, REsp nº 1.117.563-SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi , que bem expõe a controvérsia.

Nesse substancioso acórdão, este Colendo STJ enfrentou, entre outros dispositivos, o art. 1.829, inciso I, do CC/02 . Entretanto, longe de por fim ao debate, a Eg. 3ª Turma alertou que referida decisão não exauriria a polêmica que envolve o assunto, haja vista as peculiaridades que o envolvem.

O Ministro Sidnei Beneti , em voto de vista, deixou bem claro o alcance daquele julgamento, ao afirmar que não se estava julgando "...sucessão que envolva quem tenha se casado com pessoa viúva com filho do primeiro casamento, matéria diversa, trazida várias vezes à comparação." Por outro lado, o eminente Ministro afirmou também que "Não há como como deixar de definir agora a complexa situação hereditária com que o novo Código Civil brindou a sociedade nacional." (sic).

Observo, com isso, que naquele precedente o tema foi abordado de forma pontual. Há similitude, ainda que parcial, com o presente caso, notadamente pela fundamentação trazida pela parte recorrida nestes autos em contrarrazões no tocante a interpretação sistêmica ao art. 1.790, CC/02 , que trata da sucessão entre companheiros.

A recorrida ( cônjuge sobrevivente ) sustenta, nesse ponto específico, que ao prevalecer o entendimento de que o cônjuge supérstite não concorre na totalidade do acervo da herança, violaria-se o princípio da isonomia, porque na união estável a companheira possui esse direito . O sistema civil geraria perplexidade ao conferir mais vantagem à companheira que ao cônjuge.

Sob essa ótica, o tema foi enfrentado pela eminente Ministra Nancy Andrighi , sendo, portanto, esse precedente de suma importância para o exame do presente recurso (nesse aspecto), vez que enfrenta a hipotética vantagem ou desvantagem na opção de contrair matrimônio ou de se conviver em união estável.

Com efeito, a ementa do REsp. nº 1.117.563-SP , nesse particular, assentou:

"Direito das sucessões. Recurso especial. Inventário. De cujus que, após o falecimento de sua esposa, com quem tivera uma filha, vivia, em união estável, há mais de trinta anos, com sua companheira, sem contrair matrimônio. Incidência, quanto à vocação hereditária, da regra do art. 1.790 do CC/02. Alegação, pela filha, de que a regra é mais favorável para a convivente que a norma do art. 1829, I, do CC/02, que incidiria caso o falecido e sua companheira tivessem se casado pelo regime da comunhão parcial. Afirmação de que a Lei não pode privilegiar a união estável, em detrimento do casamento.

- O art. 1.790 do CC/02, que regula a sucessão do 'de cujus' que vivia em comunhão parcial com sua companheira, estabelece que esta concorre com os filhos daquele na herança, calculada sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência.

- A regra do art. 1.829, I, do CC/02, que seria aplicável caso a companheira tivesse se casado com o 'de cujus' pelo regime da comunhão parcial de bens, tem interpretação muito controvertida na doutrina, identificando-se três correntes de pensamento sobre a matéria: (i) a primeira, baseada no Enunciado 270 das Jornadas de Direito Civil, estabelece que a sucessão do cônjuge, pela comunhão parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens; (ii) a segunda, capitaneada por parte da doutrina, defende que a sucessão na comunhão parcial também ocorre apenas se o 'de cujus' tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção; (iii) a terceira defende que a sucessão do cônjuge, na comunhão parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares.

- Não é possível dizer, aprioristicamente e com as vistas voltadas apenas para as regras de sucessão, que a união estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil.

- É possível encontrar, paralelamente às três linhas de interpretação do art. 1.829, I, do CC/02 defendidas pela doutrina, um quarta linha de interpretação, que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento, como norte para a interpretação das regras sucessórias.

- Impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia privada e da conseqüente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

- Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.

- Preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes.

Recurso especial improvido." (Grifei)

Note-se que, em se tratando de sucessão, essa suposta vantagem (ou desvantagem) entre casar ou constituir união estável limita-se a um campo incerto. Não há como confrontar os benefícios ou prejuízos entre um ou outro instituto. A questão é, portanto, imensurável como afirma o voto condutor supracitado. Ademais, no caso ora sub examine , não se trata de companheira, mas de cônjuge.

Sem razão, portanto, a recorrida (cônjuge sobrevivente) em argüir isonomia entre o cônjuge e a companheira.

Reporto-me, outrossim, ao tema principal: a regra de preferência do art. 1.829, I, do CC/02.

Há, repiso, uma incongruência na redação do artigo, notadamente a parte final que trata do deferimento da sucessão aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente quando este for casado com o de cujus sob o regime de comunhão parcial de bens.

A eminente Ministra Nancy Andrighi , com propriedade, expõe essa controvérsia. Apresenta quadros demonstrativos destacando três correntes doutrinárias . O valoroso precedente assentou, litteris :

"(...)

A redação ambígua dessa norma tem suscitado muitas dúvidas na doutrina, e três correntes se estabeleceram, interpretando tal dispositivo de maneira completamente diferente. São elas:

III.1) Primeira corrente: Enunciado 270, da III Jornada de Direito Civil

A primeira corrente deriva do Enunciado 270, da III Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, que dispõe: Enunciado 270

Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aqüestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes. ¿

De acordo com esse entendimento, a sucessão do cônjuge obedeceria as seguintes regras: (i) se os cônjuges se casaram pelo regime da comunhão universal, o sobrevivente não concorre com os filhos na sucessão, já que recebeu suficiente patrimônio em decorrência da meação (incidente, nesta hipótese, sobre todo o patrimônio do casal, independentemente da data de aquisição); (ii) se o casamento se deu pela separação obrigatória , entendida essa como a separação legal de bens, também não concorrem cônjuge e filhos, porque isso burlaria o sistema legal; (iii) finalmente, se o casamento tiver sido realizado na comunhão parcial (ou nos demais regimes de bens), há duas possibilidades: (iii.1) se o falecido deixou bens particulares (a semelhança do que ocorre nestes autos), o cônjuge sobrevivente participa da sucessão, porém só quanto a tais bens, excluindo-se os bens adquiridos na constância do matrimônio, porque eles já são objeto da meação; (iii.2) se não houver bens particulares, o cônjuge sobrevivente não participa da sucessão (porquanto sua meação seria suficiente e se daria, aqui, hipótese semelhante à da comunhão universal de bens).

Para maior clareza, pode-se elaborar um quadro, demonstrativo das regras gerais de sucessão legítima, conforme a 1ª corrente estudada, nas hipóteses em que o falecido tenha deixado descendentes e cônjuge/companheiro (a) :

Regimes Meação Cônjuge/companheiro herda bens particulares? Cônjuge/companheiro herda bens comuns?

União estável Sim Não Sim, em concurso com os descendentes

Comunhão universal Sim Não Não

Comunhão parcial Sim Sim, em concurso com os descendentes. Não

Separação obrigatória Não definido Não Não

Separação convencional Não, em princípio Sim, em concurso com os descendentes Não há, em princípio, bens comuns.

Também corroboram esse entendimento ANA CRISTINA DE BARROS MONTEIRO FRANÇA PINTO (atualizadora do Curso de Direito Civil de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Vol. 6 ¿ 37ª Ed. ¿ São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 97), NEY DE MELLO ALMADA (Sucessões , São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 175), entre outros.

Frise-se que esse quadro tem, como objetivo, apenas pinçar orientações gerais sobre a matéria, sem pretensão de debruçar-se sobre as peculiaridades de cada um dos regimes de bens, ou esgotar discussões doutrinárias e jurisprudenciais que cada um deles pode suscitar. É de conhecimento geral que a interpretação das novas regras de sucessão, notadamente o art. 1.829, I, do CC/02, tem gerado intensa controvérsia que, por não ser objeto especificamente deste processo, não será, aqui, esgotada .

III.2) Segunda corrente: Herança sobre o patrimônio total

A segunda e majoritária corrente doutrinária acerca da interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, defende uma idéia substancialmente diferente. Os seus partidários, a exemplo dos defensores do Enunciado 270 das Jornadas, separam, no casamento pela comunhão parcial, a hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, e a hipótese em que ele não tenha deixado bens particulares (sempre considerando a existência de descendentes). Se o cônjuge pré-morto não tiver deixado bens particulares, o supérstite não recebe nada, a título de herança. Contudo, se o autor da herança tiver deixado bens particulares, o cônjuge herda, nas proporções fixadas pela Lei (arts. 1830, 1832 e 1837), não apenas os bens particulares, mas todo o acervo hereditário.

MARIA HELENA DINIZ defende essa tese com os seguintes fundamentos (Curso de Direito Civil Brasileiro , v. 6: direito das sucessões ¿ 20a ed. rev. e atual. De acordo com o Novo Código Civil ¿ São Paulo: Saraiva, 2006, págs. 124 e ss.):

(i) a herança é indivisível, deferindo-se como um todo unitário (art. 1.791).

Assim, não há sentido em dividi-la apenas nas hipóteses em que o cônjuge concorre, na sucessão;

(ii) se o cônjuge sobrevivente for ascendente dos demais herdeiros, terá a garantia de 1/4 da herança. Essa garantia é incompatível com sua quase-exclusão, na hipótese em que o falecido tiver deixado poucos bens;

(iii) o cônjuge supérstite é herdeiro necessário, e não há sentido em lhe garantir a legítima se ele não herdará, no futuro, esse patrimônio;

(iv) em um regime de separação convencional , as partes podem firmar pacto antenupcial disciplinando a comunicação dos aquestos, e não obstante o cônjuge sobrevivente os herdará. Não há sentido em restringir tal direito apenas na comunhão parcial;

(v) meação e herança são institutos diversos. No falecimento, a meação do falecido passa a integrar seu patrimônio, não havendo razão para destacá-la para fins de herança.

Para os defensores dessa corrente, o quadro supra referido restaria da seguinte forma (sempre na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares e filhos):

Regimes Meação Cônjuge/companheiro herda bens particulares? Cônjuge/companheiro herda bens comuns?

União estável Sim Não Sim, em concurso com os descendentes

Comunhão universal Sim Não Não

Comunhão parcial Sim Sim, em concurso com os descendentes. Sim, em concurso com os descendentes

Separação obrigatória Não definido Não Não

Separação Convencional Não, em princípio Sim, em concurso com os descendentes Sim, se os houver, em concurso com os descendentes

III.3) Terceira corrente: Interpretação Invertida

A terceira corrente que se formou para a interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, inverte as idéias defendidas pelas anteriores. Encabeçada por MARIA BERENICE DIAS, defende que a sucessão do cônjuge fica excluída na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares (Ponto Final, disponível em: Acesso 23 Set. 2009). Enquanto os defensores da primeira e da segunda correntes apenas reconheciam, ao cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens, o direito à sucessão na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares, esta terceira linha de pensamento defende que só há sucessão na hipótese em que ele não os deixou, concorrendo o cônjuge sobrevivente com os descendentes, na herança dos bens comuns.

Pelo sistema defendido por esta corrente, o quadro, para as hipóteses em que o falecido deixou bens particulares e filhos, ficaria da seguinte forma:

Regimes Meação Cônjuge/companheiro herda bens particulares? Cônjuge/companheiro herda bens comuns?

União estável Sim Não Sim, em concurso com os descendentes

Comunhão universal Sim Não Não

Comunhão parcial Sim Não há herança do cônjuge, se houver bens particulares. Sim, em concurso com os descendentes

Separação legal Não definido Não Não

Separação Convencional Não, em princípio Sim, em concurso com os descendentes Sim, se os houver, em concurso com os descendentes

A despeito dessas notáveis correntes doutrinárias, a eminente Ministra Nancy Andrighi apresenta solução sem se filiar a qualquer uma delas. Ao contrário, a respeitável Julgadora apresenta uma quarta corrente , verbis:

"IV - Solução da controvérsia

Na hipótese dos autos, o cerne da controvérsia diz respeito a apurar se é admissível, no panorama constitucional brasileiro, que a regra, quanto à sucessão, seja mais favorável à companheira supérstite do que seria caso ela tivesse contraído matrimônio, dadas as diferenças entre o art. 1.790 e o art. 1.829, I, do CC/02.

Nesse contexto, a exposição das três teorias existentes para a interpretação do art. 1.829, I, do CC/02, assume importância para se apurar se realmente a regra do art. 1.790 é, para a companheira, mais vantajosa que a disciplina de sucessão do cônjuge.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que não se pode dizer que há vantagem em um ou em outro regime familiar, tomando-se em consideração somente para as regras de sucessão legítima. Ainda que, em dados momentos, a regra de sucessão legítima seja mais vantajosa para o companheiro, isso não significa que o regime da União Estável seja necessariamente mais vantajoso que o casamento, do ponto de vista global. Há diversos benefícios conferidos pela lei ao casamento que não se estendem à união estável. Basta pensar, por exemplo, que a prova do casamento é direta, decorrendo meramente do registro (art. 1.543 do CC/02), ao passo que a união estável deve ser demonstrada caso a caso; que o cônjuge é herdeiro necessário, contando com a garantia da legítima que, em princípio, não assiste ao companheiro; que, protegendo o patrimônio do casal, a Lei condiciona à autorização do cônjuge a prática de determinados negócios jurídicos; que a ordem de vocação hereditária coloca o cônjuge antes dos colaterais na sucessão exclusiva; e assim por diante.

Em segundo lugar, é muito difícil antecipar o quanto representariam essas vantagens, aferíveis, não no momento da sucessão, mas durante a relação mantida entre os cônjuges, na decisão de contrair ou não casamento. É temerário afirmar, apressadamente e com os olhos voltados apenas para uma situação pontual, que os arts. 1.790 e 1.829 podem tornar mais vantajoso viver sob o regime da união estável sob o regime do casamento. As variáveis são muito numerosas.

De todo modo, é importante frisar que não há, neste processo, vantagem para a companheira, para efeitos sucessórios, com relação à situação hipotética da cônjuge.

Isso porque, ao lado das três correntes supra mencionadas, todas elas insatisfatórias para solucionar a perplexidade que este processo suscita, é necessário se estabelecer ainda uma quarta, mais inovadora, baseada na ideia de que a vontade do cônjuge, manifestada no casamento, deve ser tomada em consideração também no momento de interpretar as regras sucessórias. Essa nova idéia, como se verá adiante, estende, quanto aos efeitos práticos, a regra aplicável à União Estável à do regra casamento, eliminando, nesse aspecto, a diferença entre os regimes. Note-se que aqui se faz-se exatamente o contrário do que pretende o recorrente: em vez de restringir a regra do art. 1.790 do CC/02, para adapta-la à regra do art. 1.829, inova-se na própria interpretação do art. 1.829, aproximando-a do art. 1.790. Explica-se. IV.1) Quarta corrente interpretativa do art. 1829, I do CC/02: a consideração da vontade manifestada no casamento, para a interpretação das regras sucessórias.

De início, torna-se impositiva a análise do art. 1.829, I, do CC/02, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente, a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia da vontade, da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa fé. A eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

Até o advento da Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio), considerada a importância dos reflexos do elemento histórico na interpretação da lei, vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança, por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal. A partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial, o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/02.

Assim, quando os nubentes silenciam a respeito de qual regime de bens irão adotar, a lei presume que será o da comunhão parcial, pelo qual se comunicam os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, consideradas as exceções legais previstas no art. 1.659 do CC/02. Se em vida os cônjuges assumiram, por vontade própria, o regime da comunhão parcial de bens, na morte de um deles, deve essa vontade permanecer respeitada, sob pena de ocorrer, por ocasião do óbito, o retorno ao antigo regime legal: o da comunhão universal, em que todo acervo patrimonial, adquirido na constância ou anteriormente ao casamento, é considerado para efeitos de meação.

A permanecer a interpretação conferida pela doutrina majoritária de que o cônjuge casado sob o regime da comunhão parcial herda em concorrência com os descendentes, inclusive no tocante aos bens particulares, teremos no Direito das Sucessões, na verdade, a transmutação do regime escolhido em vida ¿ comunhão parcial de bens ¿ nos moldes do Direito Patrimonial de Família, para o da comunhão universal, somente possível de ser celebrado por meio de pacto antenupcial por escritura pública.

Não se pode ter após a morte o que não se queria em vida. A adoção do entendimento de que o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes do falecido a todo o acervo hereditário, viola, além do mais, a essência do próprio regime estipulado. Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges . Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis, estes unicamente entre os descendentes.

A separação de bens, que pode ser convencional ou legal, em ambas as hipóteses é obrigatória, porquanto na primeira, os nubentes se obrigam por meio de pacto antenupcial ¿ contrato solene ¿ lavrado por escritura pública, enquanto na segunda, a obrigação é imposta por meio de previsão legal.

Sob essa perspectiva, o regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

Dessa forma, não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, salvo previsão diversa no pacto antenupcial, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário.

Entendimento em sentido diverso, suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, entre uma interpretação que torna ausente de significado o art. 1.687 do CC/02, e outra que conjuga e torna complementares os citados dispositivos, não é crível que seja conferida preferência à primeira solução.

Importante mencionar, no tocante ao caráter balizador do regime matrimonial de bens no que concerne ao direito sucessório, julgado desta 3ª Turma, do qual se extraem as seguintes ponderações:

¿(...) o regime matrimonial de bens atua como elemento direcionador do direito de herança concorrente do cônjuge.

(...)

O regramento sucessório é de suma importância enquanto complexo de ordem pública, em virtude de seus reflexos no organismo familiar e no âmbito social, que vão além do simples direito individual à pertença de bens.¿ (RMS 22.684/RJ, de minha relatoria, DJ de 28/5/2007.

Com as considerações acima, o quadro, para as hipóteses em que o falecido deixou bens particulares e filhos, ficaria da seguinte forma:

Regimes Meação Cônjuge/companheiro herda bens particulares? Cônjuge/companheiro herda bens comuns?

União estável Sim Não Sim, em concurso com os descendentes

Comunhão universal Sim Não Não

Comunhão parcial Sim Não Sim, em concurso com os descendentes

Separação de bens, que pode ser legal ou convencional. Não Não Não

Essa é a forma pela qual deve ser interpretado o art. 1.829, I, do CC/02.

Preserva-se, com isso, a vontade das partes, manifestada no momento da celebração do casamento, também para fins de interpretação das regras de sucessão. E elimina-se, para fins de cálculo do montante partilhável, as diferenças entre União Estável e Casamento.

Especificamente para os fins do processo sob julgamento, a adoção dessa quarta linha de pensamento retira, de maneira integral, os fundamentos da irresignação da recorrente. Se a recorrida tivesse contraído matrimônio com o de cujus, as regras quanto ao cálculo do montante sobre o qual se calcularia sua sucessão seriam exatamente as mesmas.

Forte em tais razões, conheço do recurso especial e nego-lhe provimento."(...)"

O substancioso voto conclui que no regime de comunhão parcial de bens o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes tão-somente em relação aos bens comuns.

Permissa vênia, em que pese os sólidos fundamentos da decisão supra, não comungo de sua conclusão.

Entendo, pois, que a concorrência entre os descendentes e o cônjuge supérstite em hipótese alguma alcança os bens comuns do de cujus . Os bens particulares, ao contrário, podem ser objeto de concorrência, mas de forma condicionada à inexistência de patrimônio comum do casal. E explico o por quê.

Reconheço que os bens particulares do de cujus não devam integrar o acervo da herança, pois adquiridos anteriormente ao casamento. Já em relação aos bens comuns, no entanto, o cônjuge supérstite já recebe a meação, ficando em extrema vantagem se concorrer com os descendentes naquele patrimônio que está intrinsecamente incomunicável pelo regime escolhido em vida ( o de comunhão "parcial" de bens ).

Nessa esteira de entendimento, aliás, a jurisprudência deste Colendo Superior Tribunal de Justiça cada vez mais se firma no sentido de que não há como dissociar o direito sucessório dos regimes de bens do casamento, de modo que se tenha após a morte, o que, em vida, não se pretendeu.

Com efeito, esta Egrégia 4ª Turma , nos autos do REsp. nº 1.111.095 - RJ (Rel. p/acórdão Min. Fernando Gonçalves ), conferiu inegável relação entre o direito sucessório e o regime de casamento . Embora nesse julgado a matéria corresponda às disposições de última vontade do testador, extrai-se de seu bojo fundamentos que corroboram o entendimento ora sufragado.

Destaca-se que no julgamento citado, proferido por esta Eg. 4ª Turma, em voto de vista o eminente Ministro Luis Felipe Salomão , com propriedade que lhe é peculiar, após transcrever renomados posicionamentos doutrinários, afirma que:

"- existe no plano sucessório, influência inegável do regime de bens no casamento, não se podendo afirmar que são absolutamente independentes e sem relacionamento no tocante às causas e aos efeitos esses institutos que a lei particulariza nos direitos de família e das sucessões ;"

O emin. Ministro Fernando Gonçalves , também no mesmo sentido, após explanação judiciosa, conferiu interpretação ao art. 1829, inciso I, do CC, assentando, no que interessa, que:

"(...)

Essa não parece, porém, a melhor exegese a ser dada ao art. 1829, inciso I, do Código Civil de 2002.

De fato, o legislador reconhece aos nubentes, já desde o Código Civil de 1916, a possibilidade de autodeterminação no que se refere ao seu patrimônio, autorizando-lhes a escolha do regime de bens, dentre os quais o da separação total, no qual, segundo Pontes de Miranda,"os patrimônios dos cônjuges permanecem incomunicáveis, de ordinário sob a administração exclusiva de cada cônjuge, que só precisa da outorga do outro cônjuge, para a alienação dos bens de raiz"(Tratado de Direito Privado. São Paulo: Ed. Borsói, tomo 8, p. 343), incomunicabilidade que se perpetua com o falecimento de um deles, dada a possibilidade de se excluir o cônjuge sobrevivente da qualidade de herdeiro, através de testamento, como no caso em comento.

Assim, qualquer que seja a razão pela qual os cônjuges decidem por renunciar um ao patrimônio do outro, essa determinação é respeitada pela lei anterior. No novo Código Civil, porém, adotada interpretação literal do art. 1829, se conclui pela inclusão do cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário, o que no caso de separação convencional de bens, significa que é concedido aos consortes liberdade de autodeterminação em vida, retirada essa, porém, com o advento da morte, transformando a sucessão em uma espécie de proteção previdenciária.

Cuida-se, iniludivelmente, de quebra na estrutura do sistema codificado. Com efeito, não há como compatibilizar as disposições do art. 1639, que autoriza os nubentes a estipular o que lhes aprouver em relação a seus bens, bem como do art. 1687, que permite a adoção do regime de separação absoluta de bens (afastando, inclusive, a necessidade de outorga do outro cônjuge para a alienação de bens), com os termos do art. 1829, que eleva o cônjuge sobrevivente à qualidade de herdeiro necessário, determinando, inexoravelmente, a comunicabilidade dos patrimônios. De fato, seria de se questionar o porquê de se escolher a incomunicabilidade de bens, se eles necessariamente se somarão no futuro.

Tal inconsistência é apontada pelo Professor Miguel Reale, que a respeito do tema assim se pronuncia, verbis:

" Em um código os artigos se interpretam uns pelos outros ", eis a primeira regra de Hermenêutica Jurídica estabelecida pelo Jurisconsulto Jean Portalis, um dos principais elaboradores do Código Napoleão.

Desse entendimento básico me lembrei ao surgirem dúvidas quanto ao verdadeiro sentido do inciso I do art. 1.829 do novo Código Civil, segundo o qual a sucessão legítima cabe, em primeira linha, aos"descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares".

Há quem entenda que, desse modo, o cônjuge seria herdeiro necessário também na hipótese de ter casado no regime de separação de bens (art. 1.687), o que não me parece aceitável.

Essa dúvida resulta do fato de ter o art. 1.829, supratranscrito, excluído o cônjuge somente no caso de" separação obrigatória ". A interpretação desse dispositivo isoladamente pode levar a uma conclusão errônea, devendo, porém, o intérprete situa-lo no contexto sistemático das regras pertinentes à questão que está sendo examinada." (Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 61 e 62).

Tecidas essas considerações, o ilustre professor faz um aparte para explicar que a razão pela qual se teve por bem incluir o cônjuge como herdeiro necessário foi a alteração do regime legal de bens, da comunhão para a comunhão parcial, o que pode resultar em nada sobrar para o meeiro, se o patrimônio do falecido se compuser exclusivamente de bens particulares. De todo modo, sobre a interpretação do art. 1829, I, conclui:

"Recordada a razão pela qual o cônjuge se tornou herdeiro, não é demais salientar a importância que o elemento histórico tem no processo interpretativo. Tendo, pois, presente a finalidade que o legislador tinha em vista alcançar, estamos em condições de analisar melhor o sentido do mencionado inciso, mantida que seja sua redação atual.

Nessa ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens.

A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão" separação obrigatória "aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1641.

Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que - se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança, estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens, em razão de conflito inadmissível entre esse artigo e o art. 1829, inc. I, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática.

Entre uma interpretação que esvazia o art. 1687 no momento crucial da morte de um dos cônjuges e uma outra que interpreta de maneira complementar os dois citados artigos, não se pode deixar de dar preferência à segunda solução, a qual, ademais, atende à interpretação sistemática, essencial á exegese jurídica" (Op. cit, p. 62 e 63).

Pouco resta a acrescentar.

De fato, a interpretação ampliativa do termo "separação obrigatória", constante do art. 1829, inciso I, do Código Civil de 2002, para abranger não somente as hipóteses elencadas no art. 1640, parágrafo único, mas também os casos em que os cônjuges estipulam a separação absoluta de seus patrimônios, não esbarra na intenção do legislador quando decide corrigir eventuais injustiças decorrentes da alteração do regime legal, ao mesmo tempo em que respeita o direito de autodeterminação concedido aos cônjuges no atinente a seu patrimônio tanto pela legislação anterior, quanto pela presente.

Além disso, se evita a perplexidade retratada no caso em comento, no qual os cônjuges de maneira cristalina e reiterada estipulam a forma de destinação de seus bens e acabam por ter suas determinações feridas, ainda que post mortem . (...)"Ve-se, pois, que o art. 1829, inciso I, do CC/02 não pode ser a interpretado de forma estanque, isolada, ou até mesmo "em tiras", consoante expressão utilizada pelo Ministro e Professor EROS ROBERTO GRAU , verbis :

"Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.

A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele - do texto - até a Constituição.

Por isso insisto em que um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo algum. As normas - afirma Bobbio [1960:3] - só têm existência em um contexto de normas, isto é, no sistema normativo .

A interpretação do direito - lembre-se - desenrola-se no âmbito de três distintos contextos: o lingüístico, o sistêmico e o funcional [Wróblewski 1985:38 e ss.]. No contexto lingüístico é discernida a semântica dos enunciados normativos. Mas o significado normativo de cada texto somente é detectável no momento em que se o toma como inserido no contexto do sistema, para após afirmar-se, plenamente, no contexto funcional."(in ensaio e discurso sobre a INTERPRETAÇÃO / APLICAÇÃO DO DIREITO, 5a Edição, rev. e ampliada, - Ed. Malheiros - São Paulo, pg. 132).

De sorte que a decisão recorrida, a meu ver, malfere legislação federal, porque confere ao cônjuge supérstite, além de sua meação, direitos sobre todo o acervo da herança, ou seja, "ativo, passivo, bens particulares e bens de meação"(f. 264), desrespeitando a autonomia de vontade do casal quando da escolha do regime de comunhão parcial de bens, ignorando, ainda, a sistemática do atual Código Civil vigente quanto à ordem de vocação hereditária.

Na nova ordem de vocação hereditária do Código Civil de 2002, o caráter protecionista da lei ao cônjuge sobrevivente não deve ser confundida como um privilégio de modo a prejudicar os demais herdeiros necessários na ordem de sucessão.

Ora, como afirmado alhures, os descendentes e o cônjuge pertencem a classes distintas. Aqueles são herdeiros de primeira classe, este, por outro lado, pertence à terceira. Ou seja, o cônjuge somente é chamado na ausência de descendentes e de ascendentes. Essa é a regra do Direito Sucessório. A concorrência entre classes distintas é exceção.

Nessa linha de excepcionalidade, destacam-se as lições de RICARDO FIUZA, quando afirma que na sucessão do cônjuge a regra do Direito Brasileiro se inspira no Direito Alemão (§ 1.931, do BGB), que, na tradução livre, dispõe:

"§ 1.931 [direito do cônjuge] 1) O cônjuge sobrevivente do autor da herança, se concorrer com parentes da primeira ordem (descendentes), terá direito a um quarto da herança; se concorrer com parentes da segunda ordem (pais) ou com avós, terá direito à metade da herança. Se concorrerem com os avós, descendentes de algum avô pré-morto, o cônjuge terá direito, nessa outra metade, a quinhão equivalente ao que for atribuído aos descendentes de acordo com o § 1926"(in, Direito Civil: curso completo - 11. ed. revista, atualizada e ampliada. - Belo Horizonte: Del Rey, 2008, pgs. 1004/1005). [destaquei e grifei]

E prossegue o renomado Professor da UFMG, litteris:

"Em nosso sistema, as situações se resolvem de modo semelhante. Se o cônjuge sobrevivente concorrer com os descendentes do autor da herança, terá direito ao mesmo quinhão que cada um deles for conferido por cabeça. Este direito não subsiste, ou seja, o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes em três hipóteses:

1ª) se o regime do casamento era o da comunhão universal;

2ª) se o regime do casamento era o da separação obrigatória de bens;

3ª) se o regime do casamento era o da comunhão parcial de bens, e o falecido não houver deixado bens particulares.

O que se percebe é que, à exceção do regime de separação obrigatória de bens, não havendo, em princípio, patrimônio particular do autor da herança, o cônjuge não concorrerá com o descendentes. Só concorrerá, se o regime propiciar a existência de patrimônio individual.

Por que isso? Porque havendo patrimônio comum, ao cônjuge já tocará a meação . (...)"(Ob, cit, pg. 1005). [destaquei e grifei]

Observa-se, assim, que na sucessão legítima sob o regime de comunhão parcial de bens, a regra é: ocorrendo o evento morte de um dos cônjuges, ao sobrevivente é garantida a meação dos bens comuns (havidos na constância do casamento). A concorrência não se opera em relação à herança (bens comuns do falecido), tampouco em relação aos bens particulares, pois o sobrevivo, por força do regime de casamento ( comunhão parcial ), já encontra-se amparado pela meação. Os bens particulares dos cônjuges são, em regra, incomunicáveis em razão do regime convencionado em vida pelo casal.

A máxima que prevalece no Direito Sucessório é no sentido de " quem é meeiro não deve ser herdeiro ", conforme ensinamentos do Professor MIGUEL REALE. (Citado por EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, in A Nova Ordem de Vocação Hereditária e a Sucessão dos Cônjuges, RT, 815, São Paulo, Set. 2003. pg. 33).

Penso, destarte, que é excepcional a concorrência entre os descendentes e o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de comunhão parcial de bens com o de cujus , prevista na parte final do art. 1.829, inciso I, do CC/02. Subsiste a concorrência, e tão-somente nessas hipóteses, se inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e o falecido deixar apenas bens particulares, tendo em vista o caráter protecionista da norma que visa não desamparar o sobrevivente nessas situações excepcionais.

Nessa mesma linha de entendimento, não se acolheria também a tese defendida pela recorrente de que a concorrência, nessa hipótese, recairia somente em relação aos bens particulares do de cujus (anteriores ao casamento), pois, o regime de comunhão parcial de bens convencionado pelo casal seria desrespeitado ao incluir esses bens particulares na partilha, o que não se harmoniza ao sistema jurídico brasileiro frente aos precedentes citados.

Assim, repiso, a regra é que no regime de comunhão parcial de bens , ocorrendo o evento morte de um dos cônjuges, o sobrevivente possui direito tão-somente à meação dos bens comuns, não concorrendo com o descendente em relação à herança (parcela de bens comuns do falecido), muito menos em relação aos bens particulares, uma vez que estes últimos bens são, exclusivamente, destinados aos seus descendentes, porque incomunicáveis.

Os descendentes possuem essa preferência porque " são os herdeiros por excelência ", pois," é pelos filhos que, historicamente, nasceu a sucessão hereditária. "(Professor RICARDO FIUZA, Ob. cit. pgs. 1002/1006).

Reforça-se, assim, a tese de que há concorrência entre o cônjuge e os descendentes do de cujus"se, celebrado o casamento pelo regime da comunhão parcial, deixou o finado apenas bens particulares como herança. Na hipótese de existência de bens comuns, afastada está a participação do viúvo nos bens particulares do finado eis que, com a meação que lhe cabe, assegurada está a sua sobrevivência, objetivo do legislador ao criar a regra de concorrência". (Professora LIA PALAZZO RODRIGUES, in Direito Sucessório do Cônjuge Sobrevivente, Juris Sintese nº 55, Set/Out de 2005, pg. 12).

Essa é, no meu sentir, a interpretação do sistema normativo civil brasileiro.

Evidencia-se, então, que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo ao dispositivo legal em evidência (art. 1829, I, do CC/02), especificamente a parte final da norma (que trata da sucessão no regime de comunhão parcial de bens), não se harmoniza com a autonomia de vontade do casal que, em vida, convenciona a não comunicabilidade do patrimônio particular de cada um.

Na hipótese sub examine , nos estreitos limites estabelecidos pelo pedido em sede de recurso especial, embora entenda como não devidos, a única filha do de cujusi , ora recorrente, expressamente concorda que os bens anteriores do falecido (particulares) sejam divididos entre ela própria e o cônjuge sobrevivente, não se tem como obstaculizar essa pretensão em sede recursal, pois o direito lhe é concedido por livre vontade e de natureza renunciável. Na essência, a recorrente pede o restabelecimento da decisão proferida pela Juíza de primeiro grau que determinou justamente a concorrência dos bens particulares do de cujus, o que está de pleno acordo a filha-herdeira.

Ante os fundamentos expostos , conheço parcialmente do Recurso Especial e, nesta extensão, lhe dou provimento para, reformando o v. acórdão recorrido, restabelecer a decisão interlocutória de fs. 208/210, permitindo, com isso, tendo em vista a vontade expressa e renunciada da recorrente, a concorrência entre o cônjuge sobrevivente e a descendente, relativamente aos bens particulares do de cujus (àqueles havidos antes do matrimônio) , respeitada a meação quanto aos bens comuns.

É como voto.

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:

1. Noticiam os autos que Taciana Nassif, em 26.02.2003, requereu a abertura de inventário dos bens deixados pelo seu cônjuge, Helder Pinheiro Dias, com quem era casada sob regime de comunhão parcial, tendo sido nomeada inventariante. No curso de ação de inventário, surgiu notícia sobre o reconhecimento da paternidade do de cujus em relação à L.L. (fls. 192-194), menor impúbere representada pela genitora. Em seguida, a inventariante alterou a proposta de partilha, pois antes havia apenas ascendente vivo, mas ainda assim reiterou seu direito, na condição de cônjuge supérstite, a todos os bens inventariados, requerendo também a inclusão ao monte de uma linha telefônica, como bem particular (fls. 204-206).

O Juízo singular, às fls. 208-210, determinou a retificação do plano de partilha, no sentido de que "somente herdará o cônjuge que era casado sob o regime de comunhão parcial de bens, como na hipótese presente, se houver bens particulares. Em havendo tais bens, recairá a meação sobre os bens comuns e a herança apenas sobre os bens particulares."Desse modo, o veículo Astra, devido à aquisição na constância do casamento, foi considerado como bem comum, e a linha telefônica como bem particular.

Interposto agravo de instrumento pela inventariante, ora recorrida (fls. 2-17), o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios deu-lhe provimento, nos termos da seguinte ementa (fls. 254-268):

Civil. sucessão. cônjuge supérstite casado no regime da comunhão parcial. bens particulares deixados pelo autor da herança. participação como herdeiro na sucessão legítima.

- O cônjuge supérstite casado no regime da comunhão parcial com o falecido, tendo este deixado bens particulares, além de sua meação, concorre com os descendentes, na sucessão legítima, participando da totalidade do acervo da herança, consoante a ordem de vocação hereditária estabelecida no artigo 1829, I do Código Civil de 2002.

Opostos embargos de declaração (fls. 264-272), foram rejeitados (fls. 287-295).

A recorrente, nas razões do especial interposto com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, alegou, em suma, violação do art. 1.829, I, do CC, uma vez que, na nova ordem de vocação hereditária, o cônjuge casado em regime de comunhão parcial de bens, sendo meeiro, não concorreria com os descendentes do falecido quanto aos bens comuns, exatamente o contrário do decidido pelo Tribunal estadual. Aduziu dissídio jurisprudencial com acórdãos de outros Tribunais (fls. 298-316).

Foram apresentadas contrarrazões ao especial (fls. 323-338), reiterando a condição de herdeiro necessário atribuída pelo novo Código Civil ao consorte sobrevivente, casado em regime de comunhão parcial de bens, a abranger a totalidade do patrimônio do de cujus. Outrossim, trouxe à baila a necessidade de interpretação conjunta do art. 1.829, I, com o art. 1.790, ambos do CC, uma vez que o companheiro tem direito sucessório sobre todo o espólio, independente do fato de ser meeiro. Por isso que, em nome do princípio da isonomia, os mesmos direitos devem ser reconhecidos ao cônjuge sobrevivente. Sustentou, ainda, a ausência de comprovação do dissídio jurisprudencial.

O recurso foi admitido na instância originária (fls. 347-349).

Parecer do Ministério Público Federal no sentido do parcial conhecimento do recurso e, nesta parte, pelo seu provimento (fls. 367-372), nos termos da seguinte ementa:

RECURSO ESPECIAL. SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA. ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. ADEQUADA INTERPRETAÇÃO. - Na hipótese de o autor da herança ter deixado bens particulares, deve o cônjuge sobrevivente concorrer com os descendentes, apenas quanto a estes bens, uma vez que já está preservada sua meação sobre os bens comuns constituídos pelo casal. - Parecer pelo conhecimento parcial e, na parte, pelo provimento do presente recurso especial.

Iniciado o julgamento, o eminente Relator, Ministro Honildo Mello Castro, perfilhou entendimento no sentido de que a concorrência entre os descendentes e o consorte sobrevivente, casado sob o regime de comunhão parcial de bens, apenas ocorre se inexistentes bens comuns ou herança a partilhar, e ainda se o falecido deixar bens particulares. Não obstante, afirmou que, no caso em tela, a filha do de cujus pugnou expressamente no recurso especial pela divisão dos bens particulares, por isso que, conhecendo parcialmente do recurso especial, deu-lhe provimento na extensão do pedido formulado.

É o relatório.

2. O cerne da controvérsia reside na definição da base de cálculo do direito sucessório do cônjuge supérstite, quando o falecimento ocorre na vigência do Código Civil de 2002, e o casal vivia sob o regime de comunhão parcial de bens, sobretudo quando em concorrência com descendente.

A redação do art. 1829, I, C. Civil é a seguinte:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

3. Primeiro, cabe salientar que os bens particulares encontram-se enumerados taxativamente no art. 1.659 do Código Civil, sendo assim considerados aqueles que, pertencendo a apenas um dos cônjuges, não integram a meação, ou seja, são incomunicáveis entre os consortes.

A meação, instituto do direito de família, é direito próprio do cônjuge em relação à metade dos bens comuns do casal, advindo do regime patrimonial do casamento, momento em que é efetivamente adquirido, por isso que preexistente à abertura da sucessão.

O direito do consorte à herança, a seu turno, é instituto do direito das sucessões, sendo composto, no regime de comunhão parcial, apenas de uma quota-parte dos bens particulares do autor da herança, haja vista que, em relação aos bens comuns, se encontra protegido pela meação.

É que, a despeito da inegável conexão entre a modalidade de regime de bens do casamento e o direito hereditário, ressoa indubitável tratar-se de conjuntos de regras e princípios diversos.

A distinção entre os aludidos institutos foi destacada em voto proferido na data de 5/5/2011, por ocasião do julgamento do REsp 887.990/PE, desta relatoria, acórdão ainda pendente de publicação:

Com efeito, os dispositivos mencionados cuidam de matéria diversa: o primeiro refere-se ao regime de comunhão parcial de bens no casamento, enquanto o segundo direciona-se à disciplina dos direitos sucessórios, razão pela qual não devem ser interpretados conjuntamente, da forma como pleiteia o recorrente, porquanto inconfundíveis os institutos da herança e da participação na sociedade conjugal.

Consoante doutrina sobre o tema, verbis:

Primeiramente, antes de tratarmos dos direitos sucessórios dos companheiros, é necessário esclarecer a diferença entre meação e herança, para definir qual patrimônio será objeto de sucessão causa mortis. Apenas a herança, isto é, os bens deixados pelo falecido é que serão objeto de transmissão por morte. A meação não o será.

A meação é a parte do patrimônio comum do casal que pertence a cada um dos consortes . No regime da comunhão universal, por exemplo, (que também pode ser adotado pelos companheiros se assim estipularem em contrato escrito, conforme art. 1.725), todos os bens são comuns (exceto com relação aos bens descritos no art. 1.668 do CC) e, sendo assim, cada um dos consorte é dono da metade de todo esse patrimônio comum. Se o regime for de comunhão parcial, haverá, igualmente, um patrimônio comum. Porém, o patrimônio comum será apenas aquele adquirido durante o casamento ou a união estável (exceto com relação aos bens descritos no art. 1.659). De qualquer forma, independente do regime de bens, havendo patrimônio comum, cada uma das duas metades deste patrimônio pertence a cada um dos consortes e recebe o nome de meação.

A meação não se confunde com herança. A herança é o patrimônio (e as dívidas) deixado pelo falecido. Esse patrimônio inclui seus bens particulares e a metade dos bens que possuía em comum com sua companheira ou cônjuge, isto é, sua meação. A outra metade dos bens comuns constitui a meação do consorte e, portanto, não serão por este herdados, pois não é possível que alguém herde o que já é seu. (grifo no original)

4. Com efeito, o art. 1.829, I, do CC, em sua parte inicial, estabelece a regra geral da concorrência entre cônjuge viúvo e descendente, condicionando o direito sucessório daquele ao regime matrimonial de bens.

É irrefutável a evolução da proteção conferida ao consorte sobrevivente, consoante dessume-se dos diversos diplomas legais que se sucederam ao longo do tempo: da Lei Feliciano Pena (Lei 1.839/1907), que o colocou no lugar antes destinado aos colaterais, e cuja norma foi reproduzida no art. 1.611 do Código Civil de 1916; passando pela Lei 883/1949, que lhe concedeu o direito de concorrência com os filhos extramatrimoniais reconhecidos, e pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962), que, alterando o Código de Beviláqua, outorgou-lhe o usufruto e a habitação como legados; à Lei 10.406/2008, que o alçou à condição de herdeiro necessário (art. 1.845) e, a depender do regime de casamento, de herdeiro concorrente com descendentes e ascendentes (art. 1.829, I e II).

Outrossim, essa ascensão gradativa do nível de proteção legal conferido ao cônjuge supérstite já aponta para a lógica norteadora do legislador de 2002 nos casos previstos no inciso I, do art. 1.829, qual seja: a de não deixar desamparada a parte casada em comunhão parcial de bens, na hipótese da inexistência de bens comuns. Por isso que tornou herdeiro aquele que nada recebeu a título de meação.

É que, se o regime patrimonial pressupõe a existência de bens em comum, cabe ao cônjuge sobrevivente a meação, razão pela qual é dispensada sua participação na quota hereditária, de modo a não resultar em uma duplicidade de direitos prejudicial aos descendentes, que teriam a sua parcela da herança diminuída em prol daquele que assumiu parte considerável do patrimônio - em virtude dos efeitos do próprio vínculo matrimonial.

Por outro lado, pressupondo o legislador a comunicabilidade total de bens no regime da comunhão universal e a completa incomunicabilidade na separação obrigatória (sob pena de fraude ao regime imposto pela própria lei), excluiu o cônjuge da vocação hereditária nessas situações.

Doutrina de escol identifica a regra que inspirou o legislador, por ocasião da elaboração do art. 1.829:

O cônjuge não concorre com os descendentes se casado no regime da comunhão universal de bens. Não concorre, nesse caso, porque, pela comunhão universal, tem meação de todo o patrimônio. Recorde-se que a meação não é direito hereditário, mas próprio do cônjuge, preexistente à abertura da sucessão, que decorre não da morte do de cujus, mas da comunhão resultante do regime de bens do casamento, matéria do Direito de Família. Protegido o cônjuge pela meação, a outra metade é que compõe a herança, deferida, nesse caso, aos descendentes sem concorrência do cônjuge.

A segunda exceção do inciso I, explicando o critério que orientou o legislador, é a de não concorrer com os descendentes o cônjuge casado pela comunhão parcial se não há bens particulares do de cujus. Se não há bens particulares, todos são comuns e, portanto, o cônjuge tem meação em face de todos eles. Como está protegido pela meação em todos os bens, o cônjuge não necessita ser duplamente beneficiado, com meação e herança. (Coordenador PELUSO, Cezar. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 2ed. Barueri, SP: Manole, 2008. p. 1985)

Comentando o Novo Código Civil, Eduardo de Oliveira Leite destaca a lição de Miguel Reale acerca do escopo visado pelo legislador, por ocasião da elaboração da citada norma jurídica:

É realmente, a nova posição do cônjuge sobrevivente, na primeira e na segunda classes dos sucessíveis legítimos necessários, ao lado dos descendentes e dos ascendentes do de cujus, e a consequente eliminação da sua colocação na terceira classe dos sucessíveis que marca, decisivamente, o novo perfil do artigo 1.829.

Talvez, como pretende Miguel Reale, a razão primeira de tal mudança, remonte à alteração radical no tocante ao regime de bens, antes prevalecendo o da comunhão universal, de tal maneira que cada cônjuge era meeiro, não havendo razão alguma para ser herdeiro."Tendo já a metade do patrimônio, ficava excluída a idéia de herança. Mas, desde o momento em que passamos do regime de comunhão universal para o regime parcial de bens, sem comunicação dos aquestos, a situação mudou completamente. Seria injusto que o cônjuge somente participasse daquilo que é produto comum do trabalho quando outros bens podem vir a integrar o patrimônio a ser objeto da sucessão. Nesse caso, o cônjuge, quando casado no regime da separação parcial de bens (note-se), concorre com os descendentes e com os ascendentes até a quarta parte da herança. De maneira que são duas as razões que justificam esse entendimento: de um lado, uma razão de ordem jurídica, que é a mudança do regime de bens do casamento; e a outra, a absoluta equiparação do homem e da mulher, pois a grande beneficiada com tal dispositivo é, no fundo, mais a mulher do que o homem."(REALE, Miguel. O Projeto do Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p.18). (LEITE, Eduardo Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das sucessões, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 216)

5. Em sua parte final, o art. 1.829, I, do CC, afirma que os descendentes concorrem com o cônjuge casado no regime patrimonial da comunhão parcial de bens, se o autor da herança deixou bens particulares.

A contrario sensu , se o autor da herança não deixou bens particulares, só há bens comuns, razão pela qual o cônjuge não concorre (pois já tem a meação), e a totalidade do acervo hereditário será de propriedade exclusiva dos descendentes.

Nesse momento, diante da redação pouco clara do texto legal, é que surge a dúvida: sobre quais bens incide o direito de concorrência do cônjuge supérstite?

A doutrina diverge quanto ao ponto, oscilando entre posições diametralmente opostas, algumas das quais baseadas na interpretação literal do dispositivo em questão.

Não obstante, é cediço que, na interpretação das normas jurídicas, o julgador não deve pautar-se por exegese literal e isolada.

Ao revés, partindo do texto da norma, deve orientar-se por uma interpretação não só construtiva, mas também sistemática e teleológica, em busca do espírito da lei.

Consoante lição do mestre Carlos Maximiliano, o intérprete não pode ignorar o significado lingüístico do texto normativo, mas, por outro lado, deve aliar a análise linguística do texto à busca do sentido da norma nele contida, utilizando-se, sobretudo, das noções de sistema e finalidade.

Sob o enfoque lógico-sistêmico, conclui-se que só assiste à parte sobreviva o direito à herança (composta pelos bens particulares do falecido, somados à metade dos bens comuns), no tocante aos bens sobre os quais não tenha o direito à meação, vale dizer: o cônjuge tem meação nos bens comuns e cota hereditária nos particulares.

Corroborando esse entendimento, Euclides de Oliveira leciona que:

Mais adequado e harmônico, portanto, entender que a concorrência hereditária do cônjuge com descendentes ocorre apenas quando, no casamento sob o regime de comunhão parcial, houver bens particulares, porque sobre estes, então sim, é que incidirá o direito sucessório concorrente, da mesma forma como se dá no regime da separação convencional de bens.

Quanto a esse aspecto, pairam outras divergências, decorrentes da ambiguidade do texto legal. Se enunciado é de que o direito de herança do cônjuge, em concorrência com os descendentes, ocorre se o autor da herança houver deixado bens particulares, mas não diz se a incidência daquele direito paira sobre todos os bens ou somente sobre os bens não comunicáveis. Também aqui há de imperar a lógica do sistema. Não teria sentido atribuir ao cônjuge aquinhoado com a meação participação na herança sobre todos os bens, pois então receberia mais do que se tivesse sido casado no regime de comunhão universal. Por isso o entendimento de que, predominante na doutrina, beneficia o cônjuge tão-somente sobre os bens particulares, exatamente como seria se casado fosse no regime da separação convencional de bens, já que, sobre esses mesmos bens, não lhe assiste o direito de meação. ( Direito de Herança , A Nova Ordem da Sucessão. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 108-109)

Outro não é o posicionamento de José Carlos Teixeira Giorgis:

Na situação em exame, a posição majoritária cogita que a parte sobrevivente participa por direito próprio dos bens comuns do casal, adquirindo a meação que lhe cabia, mas que se encontrava em propriedade condominial dissolvida pela morte do outro integrante do casal, e herda, enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrente de primeira classe, uma quota parte dos bens particulares exclusivos do cônjuge falecido, sempre que não foi obrigatória a separação completa de bens; ou seja, os bens exclusivos do autor da herança, relativamente aos quais o cônjuge sobrevivente não tem direito à meação, serão partilhados entre ele, sobrevivo, e os descendentes do finado, por motivo de sucessão causa mortis . (Os direitos sucessórios do cônjuge sobrevivo. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Síntese/IBDFam, ano 7, n. 29, p. 116, abr/maio 2005.)

E também José Luiz Gavião de Almeida, ao comentar sobre o direito de herança do consorte viúvo:

Ainda não há direito sucessório concorrente quando o regime for o da comunhão parcial de bens, e o autor da herança não houver deixado bens particulares. A princípio, parece haver dito o artigo que, em havendo apenas bens comuns, não há direito sucessório concorrente. Ao contrário, havendo bens comuns e particulares do falecido, haverá direito sucessório concorrente.

A questão é mais complexa. Quando inexistem bens particulares, na prática o regime patrimonial é o da comunhão universal. Se já recolheu o supérstite, a meação, não tem necessidade de aumentar seu patrimônio com o recebimento da herança que reduz a quota dos demais herdeiros descendentes.

Uma interpretação a contrário senso poderia levar a equívoco. Assim, havendo bens particulares, o cônjuge sobrevivente participa da sucessão concorrente. Mas, como não fez o legislador diferenciação em relação a quais bens o direito alcança, poder-se-ia imaginar que a quota parte se calculará sobre toda a herança. Mas assim não se pode entender.

A regra é que o cônjuge sobrevivo recolha na existência de bens particulares. Mas, por óbvio, tem sucessão concorrente apenas em relação a esses bens particulares, não aos comuns, pois desses já retirou sua meação. Não se concebe que viesse participar duas vezes do mesmo acervo patrimonial, mesmo porque seria ilógico que isso se desse se o legislador estabeleceu que ele nada levaria se o regime fosse o da comunhão, ou da comunhão parcial em que exclusivamente existissem bens comuns. ( Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão legítima: arts. 1.784 a 1.856, volume XVIII; Álvaro Villaça Azevedo (coordenador). São Paulo: Atlas, 2003, p. 227) (grifo no original)

6. Quanto ao tema, Sílvio Venosa, criticando a redação tortuosa do art. 1.829, I, do CC, alerta para a possibilidade de ocorrência de iniquidades no sistema, quando, no regime da comunhão parcial de bens, o autor da herança tiver deixado apenas bens particulares de ínfimo valor, situação que demandará do julgador um cuidado maior para encontrar o espírito da lei, sendo-lhe facultada, como"válvula de escape", a utilização das regras de experiência e da boa interpretação, de modo a"balancear"o quinhão de cada herdeiro.

Destaca o autor que:

A redação legal é horrível. Nem sempre essas situações que afastam o sobrevivente da herança concorrente com os descendentes significarão sua proteção, se essa foi, como parece, a intenção do legislador. Certamente haverá oportunidades nas quais a jurisprudência deverá aparar as arestas. Esse texto é um dos que merecem ser aprimorados. A intenção do legislador foi tornar o cônjuge sobrevivente herdeiro quando não existir bens decorrentes de meação. Pode ter sido o casamento regido pela comunhão parcial e o morto ter deixado apenas bens particulares de pouco valor. Ainda, não se mostrará justa, em muitas oportunidades, a exclusão do cônjuge da herança, na hipótese legal, quando o casamento foi realizado sob o regime da separação obrigatória. Muito trabalho terão, sem dúvida, a jurisprudência e a doutrina, sob o prisma desse artigo.

O sentido da lei foi, sem dúvida, proteger o cônjuge, em princípio, quando este nada recebe a título de meação. Assim, quando casado em comunhão de bens, porque o patrimônio é dividido, o cônjuge não será herdeiro em concorrência com os descendentes. No regime de separação obrigatória, tantas vezes referido, o cônjuge também não herda nessa situação, pois haveria, em tese, fraude a esse regime imposto por lei. Tudo leva a crer que, no futuro, a jurisprudência se encarregará de de abrandar esse rigor, como no passado, levando em consideração profundas iniquidades no caso concreto. Questão mais complexa é saber da condição de herdeiro do cônjuge, quando casado em regime de comunhão parcial, se o autor da herança não houver deixado bens particulares. Pode ocorrer que o de cujus tenha deixado bens particulares de ínfimo valor, o que exigirá um cuiaddo maior do julgador para alcançar o espírito buscado pela nova lei.

Desse modo, embora não seja esse o tema a decidir no recurso, creio que será conveniente estabelecer que, para se evitar uma situação de iniquidade, poderá o juiz se valer das regras de experiência e boa interpretação para" balancear "a base de cálculo.

Pode-se tomar como exemplo o caso concreto em julgamento.

O patrimônio comum é suficiente para a partilha com a viúva, adequado, portanto, que a base de cálculo leve em conta apenas o bem particular (direito ao uso de linha telefônica).

Em situações diferentes, e observadas as peculiariedades do caso, poderá o Juiz distribuir diferente a base de cálculo.

7. Em arremate, é bem de ver que o pedido declinado nas razões recursais cingiu-se à cassação do acórdão recorrido, com vistas à manutenção da decisão interlocutória que determinou a retificação do plano de partilha, para que a recorrida - casada com o autor da herança sob o regime de comunhão parcial de bens -, somente concorresse com a recorrente em relação aos bens particulares, ou seja, à linha telefônica, uma vez que, no tocante ao restante do acervo da herança - um veículo e uma casa -, já teria sido beneficiada com a meação, ou seja, já faria jus a 50% desses bens.

O Ministro Relator perfilhou posicionamento no sentido de que a concorrência entre descendentes e cônjuge supérstite dar-se-ia tão somente quanto aos bens particulares, mas de forma condicionada à inexistência de patrimônio comum do casal, hipótese a que não se subsume o caso sob análise.

Isso em virtude da necessária observância do regime de casamento escolhido pelas partes, "de modo que se tenha após a morte o que, em vida, não se pretendeu."Destarte, tendo sido o pedido recursal menos favorável ao recorrente, mas limitador da extensão da decisão judicial, julgou-o procedente, na medida em que conhecido.

Sem embargo do entendimento do nobre Ministro, há se atentar para o fato de que o soerguimento da inexistência de patrimônio comum, à condição de único critério jurídico justificador do direito sucessório do cônjuge sobrevivente aos bens particulares do falecido, acaba por gerar antagonismo com o sistema de proteção do consorte sobrevivo, tal qual pretendido pelo novo Código Civil.

Com efeito, o Código vigente, abandonando a perspectiva eminentemente patrimonialista e individualista da codificação anterior, inaugura um novo paradigma no âmbito das relações privadas com vistas à incorporação de valores engendrados pela Constituição da República de 1988, fundando-o em três pilares básicos: a socialidade, a eticidade e a operabilidade.

As relações civis passam a ser orientadas, então: (a) pela manutenção de uma relação de cooperação entre os sujeitos de uma relação jurídica, de modo a realizar-se não apenas o interesse individual, mas também o bem comum; (b) pela inserção de valores éticos, sociológicos e filosóficos no ordenamento jurídico privado, de forma a torna-lo mais justo, dinâmico e, por conseguinte com maior eficácia social; (c) pela tutela da pessoa humana (e não mais do seu patrimônio), tornando-a destinatária direta da norma.

Tanto é assim que a inclusão do cônjuge sobrevivo entre os herdeiros necessários (art. 1.845, CC), faz entrever a intenção do legislador de aumentar a proteção ao consorte viúvo, em nítida manifestação do caráter assistencial do novo regramento civil, devendo ser essa a ótica de interpretação das normas do atual Código, consoante anteriormente expendido.

Por isso, observada a devida vênia, a conclusão é a de que o ilustre Relator procedeu a uma interpretação invertida do art. 1.829, I, em descompasso com os valores constitucionais albergados pelo Código Civil: ao invés de estender o direito sucessório (sobre os bens particulares) conferido ao cônjuge viúvo casado em comunhão parcial àquele casado em regime de comunhão universal de bens, quando inexistente patrimônio comum, de modo a não deixa-lo desamparado, optou por retirar o direito daqueloutro, equiparando-o, para fins de efeitos hereditários, à regra geral da comunhão universal.

É que, no referido dispositivo legal, o legislador considerou, como regra geral, a total comunicabilidade do patrimônio na comunhão universal, por isso excluiu o cônjuge supérstite meeiro do chamamento hereditário, sob pena de configurar-se verdadeiro" bis in idem ".

Olvidou-se, entretanto, de que pode existir bens incomunicáveis (art. 1.668, CC) e tão somente esses, hipótese em que, por coerência lógica com a solução dada ao caso em que o casamento é celebrado pelo regime da comunhão parcial, deve-se-lhe estender o direito à concorrência sucessória.

Doutrina abalizada comunga o mesmo entendimento:

Comunhão universal em que há bens particulares: um segundo problema relevante é, na comunhão universal, poder haver bens particulares. São os excluídos da comunhão nas hipóteses do art. 1.668. Por interpretação literal, não seria o caso de concorrência, pois dela está excluído o casado pela comunhão universal. No entanto, como visto, na comunhão parcial em que há bens particulares, o cônjuge tem meação nos bens comuns e cota hereditária nos particulares. É preciso adotar o mesmo princípio para a comunhão universal, assegurando-se cota hereditária nos bens particulares, preservando-se a coerência do sistema nas duas situações. Pois não se pode tratar pior o casado pela comunhão universal do que o pela parcial. O casamento pela comunhão universal revela intuito muito mais acentuado de completa integração patrimonial entre os cônjuges. Seria absurdo, no momento da sucessão, tratar pior o que optou por esse regime do que o casado pela comunhão parcial.

Como salientado, o intuito do atual Código foi conferir proteção muito mais efetiva ao viúvo, razão pela qual não se pode interpretar a norma de modo a deixar flanco que possa dar margem à falta de proteção do cônjuge. É o que poderia ocorrer, por exemplo, se o de cujus, casado pela comunhão universal, deixasse somente bens excluídos da comunhão. O cônjuge ficaria desprotegido, situação que o atual Código procurou evitar. (grifo no original) (Coordenador PELUSO, Cezar. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 2ed. Barueri, SP: Manole, 2008. p. 1986-1987)

Em síntese, entende-se que a interpretação do art. 1.829, I, do CC, mais consentânea com a novel feição da codificação civil, deve ser a seguinte:

REGIME DE BENS COMPOSIÇÃO DO ACERVO CÔNJUGE DESCENDENTE

Comunhão Parcial Bens comuns meação Herda a meação do de cujus

Bens comuns e bens particulares Meação e quota-parte dos bens particulares Herda a meação do de cujus e quota-parte dos bens particulares

Bens particulares Herda quota-parte Herda quota-parte

Comunhão Universal Bens comuns meação Herda a meação do autor da herança

Bens comuns e bens particulares (art. 1.668, CC) Só a meação Herda a meação do autor da herança e 100% dos bens particulares

Bens particulares (art. 1.668, CC) Herda quota-parte Herda quota-parte

Separação obrigatória Bens particulares Não há direito sucessório Herda 100% do acervo hereditário

Impende reiterar a possibilidade de o juiz, frente ao caso concreto, valendo-se das regras de experiência e da boa interpretação, adequar a distribuição da quota-parte dos descendentes e do cônjuge, de modo a evitar eventual subversão no sistema de proteção engendrado pela nova codificação civil.

8. Ante o exposto, acompanhando o voto do relator, mas por diferentes fundamentos, conheço parcialmente do recurso e, nesta parte, dou-lhe provimento para restabelecer a decisão interlocutória de fls. 208-210.

É o voto.

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Na comunhão parcial, cônjuge só tem direito aos bens adquiridos antes do casamento

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Excelente o assunto abordado, porém eu gostaria de receber jurisprudência atual sobre o tema.
Por outro lado, insisto em comentário e jurisprudência sobre a abertura da sucessão no momento da morte, ocasião em que é transmitida a herança aos sucesso legítimos. Portanto, sentença de adoção com data posterior ao óbito não tem legitimidade para atribuir a condição de descendente ao adotado pelo cônjuge sobrevivente, embora deferindo a adoção plena. continuar lendo